CRÍTICA: Olhamos para a genital nua do ator, mesmo sem autorização

Segunda temporada da peça Arena Selvagem, que aconteceu no Teatro de Arena, arrancou aplausos incansáveis do público

Tina Borba
Redação Beta
5 min readOct 28, 2019

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Fim de exibição da peça Arena Selvagem. (Foto: Adriana Marchiori/Facebook Grupo Cerco)

Na terceira sexta-feira do mês de outubro, às 20h, uma moça loira elevou a voz no foyer do Teatro de Arena anunciando a abertura iminente das portas e pedindo que os celulares fossem desligados. A peça que iria começar tinha inúmeros momentos de blackout e para uma experiência completa exigia dedicação total da nossa atenção. Assim o fizemos. As portas se abriram e era hora de assistir o espetáculo ganhador do Prêmio Açorianos de Teatro 2018 de Melhor Direção, para a diretora Inês Marocco, e do 14º Prêmio Braskem em Cena 2019 de Melhor Espetáculo do Júri Oficial e do Júri Popular.

A montagem tem autoria do Grupo Cerco, e foi feita especialmente para comemorar os dez anos do grupo (celebrados em 2018) e os 50 anos do teatro, que atingiu meio século de fundação em 2017. O Arena está localizado na escadaria da Av. Borges de Medeiros, no Centro Histórico da Capital. Foi fundado em outubro de 1967, e desde então é reconhecido por receber espetáculos politicamente engajados, tendo sofrido várias investidas dos censores durante a Ditadura. Até hoje é palco de peças com viés político, o que atualmente é comum, considerando que a própria arte virou objeto de repúdio do atual governo e que expressar-se por meio dela é um ato de resistência.

Encontramos uma sala escura, um tanto claustrofóbica como se espera de um teatro que recebe pouco mais de 100 pessoas em suas dependências. Nos dirigimos aos assentos vermelhos, em busca de um lugar privilegiado para assistir a já polêmica peça. Pois as informações iniciais davam conta de que os atores ficariam nus em cena, o que por si só causa no ser humano curiosidade extra e um certo frenesi. Nos cantos das arquibancadas, atores e atrizes usando roupas escuras, que pareciam capas, e máscaras brancas imitando crânios de animais, encaravam o público e faziam grunhidos eventuais, que conferiam um tom entre o nonsense e o aterrorizador ao ambiente. No palco, uma mulher que parecia grávida, gemia, simulando um trabalho de parto bastante doloroso.

“O que é ser selvagem?” é a frase inicial da sinopse e foi proferida por um ator em uma das esquetes que causaram maior burburinho no público. No monólogo, ele questiona a nossa capacidade de controlar os sentidos. A nossa capacidade de controlar a respiração, os movimentos intestinais, os membros, o olhar. O ator nos desafia a controlar o nosso olhar enquanto vai tirando a sua roupa. Por fim fica completamente nu, no meio do palco, e rapidamente é acompanhado por outras cinco mulheres e dois homens, igualmente nus. Ele segue a nos desafiar, dizendo quando devemos ou não olhar para suas genitais, sugerindo que não somos capazes de conter o impulso selvagem pelo sexo alheio, em comparar os tamanhos dos seios e dos pênis, em eleger quem nos causa mais ou menos desejo dentre os/as artistas.

A verdade, não só pra mim, pelo que pude ver, foi a nossa falha completa em reprimir a libido, a curiosidade, a luxúria. Fomos incapazes de seguir as ordens claras e simples de não olhar para os genitais, de não encontrar nossos objetos de desejo, e organicamente começamos a ver em nós mesmos o quanto a selvageria ainda pulsa em nossos corpos.

Os oito atores e atrizes que fizeram parte da peça estavam absolutamente entregues, eloquentes, viscerais. No palco, o cenário minimalista era apenas apoio para que a potência das atuações se sobressaísse. Foram poemas, monólogos, trechos de textos de Carlos Carvalho, Franz Kafka, Carlos Drummond de Andrade e outros criados especialmente para o espetáculo. Acompanhamos atônitos o parto normal e o cirúrgico; uma “macaca” contando como foi fácil ser “civilizada” após ser capturada; uma família que enlouquece a sua empregada ~ escrava ~ doméstica; um estupro na Redenção, numa narrativa sem linearidade. Me perdoe se você tem problemas com spoilers, mas não ter o ineditismo desta narrativa não vai atrapalhar em nada a sua experiência, caso se proponha a ver essa obra.

O público interagiu, ora surpreso, ora exultante. Logo de cara a minha primeira sensação foi: sim, somos todos selvagens. E mais selvagens ainda são aqueles que se dizem civilizados e fazem coisas como as barbáries que praticamos contra o meio ambiente e contra nossos semelhantes.

Só que, conforme a narrativa avançava, parecia nos desafiar, dizendo: não são “aqueles” que são selvagens, não é o outro, somos nós, é cada um sentado nessa sala.

Fomos confrontados com a nossa animalidade, com a selvageria de certos rituais “civilizados” e, ainda que envergonhados, tivemos que reconhecer a veracidade disso. O ápice foi quando montaram um ringue no palco com duas mulheres brigando em cima dele por um motivo banal, nos instigando a escolher um lado, a tocar sacos de lixo nelas, a bater palmas e gritar a nossa preferência enquanto uma era massacrada em cena. E nós o fizemos, bradamos, comemoramos!

O fim não poderia ser outro. Na voz incisiva de um dos atores, as arquibancadas lotadas se emocionaram ouvindo o artigo 5º da Constituição Federal, inciso IX: "É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".

Felizmente, apesar de todos os retrocessos desde Outubro passado, ainda é livre a expressão artística. A peça Arena Selvagem volta a cartaz durante o Festival Porto Verão Alegre, no início do ano que vem. Sugiro que vejam, não sairão alheios, tenho certeza.

A montagem foi feita em comemoração ao aniversário de 10 anos da criação do Grupo Cerco e tem direção de Inês Marocco. (Fotos acima: Grupo Cerco/Divulgação)
(Foto: Adriana Marchiori/Facebook Grupo Cerco), (Fotos acima: Grupo Cerco/Divulgação), (Foto: Morgana Mazzon/Facebook Grupo Cerco)

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Tina Borba
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Brand&Content Creative na LEADedu | Apresentadora e Produtora de Vídeos na Zero Vídeo | Jornalista | Poetisa