OPINIÃO: O perigoso ‘boom’ do movimento anticiência

O negacionismo da pandemia da Covid-19 é apenas o filho caçula de um movimento que há muito já existe, mas agora está ganhando protagonismo

Lucas Girardi Ott
Redação Beta
3 min readOct 20, 2020

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(Arte: Imageshack.com/Reprodução)

Corre a segunda semana de novembro. A Avenida Central se transforma em uma praça de guerra. Uma multidão enfurecida investe contra a polícia. O cenário é realmente o de uma guerra civil, com pessoas feridas, prédios depredados e lojas saqueadas. Os mais radicais pregam até mesmo resistência à bala, se for o caso, para não tomar a vacina. Os militares dão apoio, querendo usar a massa insatisfeita para derrubar o governo. Soa familiar?

O parágrafo acima poderia ser a descrição de um acontecimento recente em algum canto da Ásia ou da África Central, mas ocorreu no Rio de Janeiro em 1904. O episódio ficou conhecido como “A Revolta da Vacina”. Nos dias atuais, dentro de um contexto completamente diferente, em outro novembro, o do ano passado, uma milícia do leste da República Democrática do Congo realizou ataques contra centros de reação ao ebola, afirmando que a doença não existia e era um complô para eliminar a população local.

Estes são apenas dois dos muitos exemplos das consequências que o extremismo anticiência pode acarretar. O termo anticiência, aliás, faz referência a indivíduos que promovem a sua ideologia e/ou estilo de vida acima das evidências científicas, seja negando tais evidências ou substituindo-as pelas crenças particulares. Essas características estão presentes em diversos grupos, dentre eles os mais famosos: movimento antivacina, os terraplanistas, os que negam o aquecimento global e as mudanças climáticas e, agora, a filha caçula na figura dos negacionistas: a pandemia da covid-19.

É fato que o movimento anticientífico não é uma praga de nossos tempos pandêmicos pós-modernos. Talvez possamos afirmar que ele já exista desde quando surgiu a própria ciência. Porém, nos últimos anos, o seu crescimento se tornou constante, notório e barulhento em diversas partes do mundo.

Com um simples exercício de observação, percebemos um boom de grupos e ações que pregam, sem o mínimo pudor, a intolerância, o preconceito e a radicalização do discurso. Ainda que alguns desses fenômenos sejam mais da esfera política do que estritamente ligados aos grupos exclusivamente anticiência, todos eles estão conectados ao cordão umbilical da desinformação e da manipulação, devidamente embasados em teorias conspiratórias.

Se no passado esses grupos estavam à margem da sociedade, até mesmo sendo motivo de chacota, agora eles estão em espaços centrais das tomadas de decisões que refletem na vida de milhares de pessoas. Este é o fato novo e é aqui que mora o perigo. Parafraseando o renomadíssimo Umberto Eco: “As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”, e alguns deles agora estão no poder.

Tão perigosos e destrutivos para o patrimônio intelectual quanto a disseminação dessas ideias são os cortes de investimentos na ciência. Trazendo para a realidade do Brasil atual, não é difícil perceber os reais motivos por trás do sucateamento proposital por parte do governo federal, imbuído em seu completo falso moralismo-neopentecostal, à pesquisa científica brasileira. Apenas nos oito primeiros meses de gestão do atual governo, mais de 11 mil bolsas de estudos foram extintas, e a contenção de gastos por si só certamente não é a justificativa.

A liberdade trazida pela internet, em seus primeiros momentos tão celebrada por todos e fomentada pelas redes sociais, ocasionou em uma fragmentação do controle da narrativa, antes detida pela mídia tradicional e pela intelectualidade. O controle na disseminação da informação por esses dois grupos, apesar de suscetíveis a diversas críticas, tentava ao menos manter a razoabilidade. Estamos em uma crise informacional, e a anticiência é uma das facetas mais salientes dessa disputa, que encontrou no advento das fake news terreno fértil para crescer, se desenvolver e se reproduzir. Resta saber se um dia conseguiremos arrancá-la pela raiz.

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