Os patins nos pés e a leveza no coração

Das dificuldades à glória de Talitha Haas, destaque feminino da patinação artística no Brasil

Carolina Zeni
Redação Beta
9 min readAug 29, 2017

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Carisma, concentração e sensibilidade em cada movimento (Foto: Reprodução)

Os movimentos acontecem em harmonia com o balanço do corpo, e a expressão do rosto se reflete em uma linha tênue entre a concentração e a felicidade — principalmente quando são executados com perfeição. A técnica é apurada e a prática pode ser feita por qualquer amador, mas não são todos que ganham o mesmo destaque.

E foi com esforço, dedicação e persistência que a hamburguense Talitha Haas, de 22 anos, se tornou uma das brasileiras que obteve maior destaque em competições mundiais na patinação artística.

Ela começou no esporte muito cedo, aos 7 anos. À época, foi influenciada por uma amiga de escola. Seus pais não acreditavam muito na aposta da menina, afinal, nesta idade, muitas atividades são apenas uma febre para a criançada. Contudo, mais do que um esporte do momento, a patinação acabou se tornando parte da rotina e da vida de Talitha.

Talitha conquistou a medalha de prata inédita para o Brasil nos Jogos Panamericanos de Toronto, em 2015 (Foto: Reprodução)

Mais de 150 medalhas

Em todos esses anos — ao todo, 15 de patinação artística — Talitha já soma mais de 150 medalhas conquistadas em torneios regionais, nacionais e internacionais. A última na categoria individual foi a medalha de prata, inédita para o Brasil, nos Jogos Panamericanos de Toronto, em 2015. No campeonato, a atleta foi a única representante brasileira na modalidade. Ela também teve a melhor colocação brasileira feminina de todos os tempos em Campeonato Mundial, na Colômbia, na categoria sênior do mesmo ano, sendo a quinta melhor do mundo. Não bastando, quatro anos antes, com apenas 16 anos, Talitha já havia conquistado o bronze no Pan de Guadalajara, no México. O último título da patinadora de quarteto foi o vice-campeonato sul-americano neste ano. Este foi seu título mais importante, além das duas medalhas em jogos panamericanos, a única medalha feminina individual do Brasil de todos os tempos — o bronze na Alemanha na categoria júnior.

A rotina como um balde de água fria

Atualmente, como a atleta não está mais competindo individualmente, mas em quartetos, os treinos com suas colegas acontecem cinco vezes por semana durante 2 horas com patins. Ela também faz preparo físico de 1 hora todos os dias.

Apesar da dedicação e de batalhas sem medir esforços para se manter firme no esporte, a realidade vem como um balde de água fria. Como ela mesmo relata, é extremamente difícil a falta de apoio no esporte. ““Ter que tirar do bolso para viajar, para competição, é bem complicado. E sendo assim, não é possível viver deste esporte, o que traz a dificuldade de conciliar trabalho, treinamento e estudo””, lamenta Talitha.

A atleta, recém graduada em Engenharia Química — mesma área de atuação de seu pai — pela Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, não consegue se manter da patinação. Vislumbrando um futuro próximo, as dificuldades aqui enfrentadas não permitem alçar voos apenas na patinação. Em meio à dura rotina de treinos, ela trabalha ainda como técnica de patinação em uma escola em Porto Alegre, junto a Marcel Stürmer, patinador artístico brasileiro considerado um dos mais importantes da história do país, dado o número de títulos acumulados durante a carreira.

Ainda que a paixão de sua vida seja a patinação, a atleta não sabe ao certo que trajetória seguir em sua carreira. ““Ainda estou dividida entre a Engenharia e a patinação, estou pensando ainda qual caminho seguir””, contou ela. Contrapondo sua própria fala, não nega: ““Patinar é a minha vida, não saberia viver sem”, declara.”

Campeonato sulamericano no Chile. (Foto: Reprodução)

“Paitrocinadores”

Que esse somatório de dificuldades não faça com que ela abandone a carreira brilhante precocemente. Pelo menos é o que sua família deseja. ““Nós gostaríamos de vê-la mais um tempo nas pistas competindo e inspirando uma nova geração””, destaca sua mãe, Nádia. Ela conta que, junto de seu esposo, Maurício, pai de Talitha, sempre gostou do esporte, e ver a menina chegar ao nível em que chegou é uma realização também familiar. ““Ela sempre se desdobrou entre estudos e treinos, e hoje se divide entre trabalho e treinos. Ela agora é engenheira e está procurando trabalho na área. Quando isso acontecer, certamente vai ficar mais difícil ou impossível conciliar esporte e trabalho””, lamenta Nádia. Aí é que entra a parte do patrocínio. A mãe de Talitha conclui que para ser um atleta de ponta não basta somente talento, mas também investimentos feitos pela família. ““Ela é nosso orgulho. O esporte, mesmo sem patrocínio, sempre vai formar pessoas de bem, com valores. Esse é o maior retorno que tivemos. Não consideramos gastos, mas sim investimento nela””, orgulha-se.

Apesar de toda a dificuldade, Talitha leva como incentivo uma frase dita por sua técnica individual de toda carreira, Janaína Espíndola:

“‘Quando se quer muito uma coisa, o universo conspira ao teu favor!’ Levo essa frase comigo”, afirma.”

A técnica reforça a importância da atleta ter tido apoio incondicional de seus pais para realizar o seu sonho na patinação. ““Nosso esporte é amador, sem nenhuma visibilidade. A Taly teve a sorte de contar com uma família que apoiou incondicionalmente o sonho dela! ‘Paitrocinadores’, torcedores, incentivadores, apaixonados, como ela, pelo esporte escolhido””, disse. A técnica ainda relembra que Talitha teve ainda o apoio da Rye Sports durante a caminhada, empresa especializada em patins e parceira de muitos anos que patrocinava todo o material que ela precisava. Mas, ainda assim, os custos para manter uma atleta deste nível são bem altos. ““Volto a repetir que se não fosse pelos pais dela, poderíamos ter perdido um grande talento da Patinação Artística””, reforça Janaína.

O quarteto compete há mais de dois anos. As meninas ficaram em segundo lugar neste ano no Campeonato Brasileiro que ocorreu em Brasília (Foto: Reprodução)

O quarteto e a preparação para o Mundial na China

Faz dois anos que ela, junto com as atletas Marcelle Guimarães, Nayara Simões e Nicolle Goi, está competindo em quartetos. A responsável técnica das meninas é Gabriela Bolognesi, e os coreógrafos são Paulo Santos, de Portugal, e Julinho Dancehall.

As meninas agora se preparam para o Campeonato Mundial em Nanjing, na China. A estimativa é das melhores. ““Nossa expectativa é ficar entre os cinco melhores do mundo, o que não é nada fácil. Mas acreditamos que o nível técnico da coreografia está alto e podemos chegar lá””, projeta Talitha.

Mesmo com uma rotina exaustiva de treinos, nos momentos de competir a atleta não se sente à vontade para pensar muito no campeonato. Diferentemente de muitos, que têm rituais de preparação para as competições, ela prefere ouvir música para se distrair e costuma colocar os patins pouco antes de entrar na pista.

O início de uma carreira de sucesso

O sucesso de Talitha em sua carreira individual é também consequência de todo o apoio recebido de sua técnica, Janaína, a quem estufa o peito para dedicar a seguinte afirmação: ““é minha segunda mãe””. A técnica, que acompanha Talitha desde os 7 anos, confirma que desde pequena ela já demonstrava talento, determinação e dedicação. Concentrada, tinha facilidade para o esporte. Uma vez orientada para um movimento técnico, executava com aptidão. “Ela era muito, muito magrinha. Tanto que, até hoje, carinhosamente chamo ela de ‘minha sequinha’, parecia que não aguentaria o peso dos patins”, lembra Janaína, orgulhosa.

Campeonato Mundial da atleta na Colômbia, em 2015 (Foto: Reprodução)

Mesmo com toda a predisposição, Janaína lembra que a atleta era bastante tímida e sua parte artística ainda não havia aflorado e que, por isso, logo nas primeiras competições e nas categorias iniciais, as medalhas não vieram. ““Lembro da mãe dela me perguntando quando a hora dela chegaria, e eu tinha certeza que ia chegar”, afirmou.

E assim, com tempo, horas de treino, preparação física, alimentação adequada, amadurecimento e garra — característica pulsante em Talitha — as medalhas foram chegando, e Janaína tem orgulho em dizer que ela se tornou “a primeira e a melhor atleta brasileira de todos os tempos”.

Talitha com sua técnica da carreira individual, Janaína Espíndola no último Campeonato Mundial da atleta na Colômbia, em 2015. Na categoria senior ela ficou em quinto, melhor classificação do Brasil de todos os tempos (Foto: Reprodução)

Fã número um

Orgulhosa por ter feito parte das conquistas da atleta, a treinadora ratifica, carinhosamente: “A Taly teve uma carreira brilhante! Conquistas nunca antes alcançadas e mérito dela, que realmente era muito dedicada e sabia exatamente onde queria chegar”, destaca. “Temos muito orgulho, amor e carinho pela nossa caminhada. Construída com muito suor, vitórias, derrotas, alegrias, muito choro, muita cumplicidade, muito puxão de orelha também”, brincou a técnica. Agora, Janaína acompanha Talitha de pertinho, mas não com cobranças em quadra, e sim com o carinho e constante desejo que as vitórias da vida continuem chegando. "Sou fã número um sempre. Orgulhosa de ter tido uma atleta como ela, de ser chamada de segunda mãe. Porque realmente considero como uma filha e me emociona saber que fiz parte da construção dela como pessoa."

Falta de incentivo e dificuldades

A patinação artística não é um esporte olímpico. Isso, de certa forma, afeta o interesse de investimentos. Diferentemente do que acontece no Brasil, em países da Europa — como Itália e Espanha — a modalidade é mais desenvolvida.

O diretor de marketing da Federação Gaúcha de Patinagem (FGP), Vladimir Alcorte, afirma que a patinação sobre rodas, justamente por ser uma modalidade amadora e por não fazer parte do hall dos esportes olímpicos, enfrenta problemas com incentivos. Poucas empresas e poder público investem efetivamente no esporte. Vale lembrar que, além de ser um esporte pouco difundido no país, apenas o Rio Grande do Sul e São Paulo contam com federações mais estruturadas. Segundo Alcorte, a FGP, estatutariamente, possui a obrigação de fomentar o esporte em todo o Rio Grande do Sul, promovendo a divulgação da modalidade por intermédio de competições, torneios, cursos técnicos e incentivo a prática da modalidade entre os desportistas. ““Mas com recursos limitados, provenientes das mensalidades dos clubes e das arrecadações das competições, não se consegue investir adequadamente no esporte sem o apoio de empresas e pessoas físicas””, pondera.

No Brasil, nos âmbitos federal, estadual e municipal, existem legislações específicas que tratam diretamente do incentivo ao esporte, que permitem a captação de recursos, da iniciativa privada, para aplicação no desenvolvimento dos atletas. Alcorte explica que essas Leis de Incentivo ao Esporte, no Estado (Pró-Esporte) e no Governo Federal (LIE), podem ser acessadas por qualquer entidade, devidamente registrada, mas com a restrição de apenas três projetos ao ano, por entidade. Desta forma, o diretor aponta algumas das dificuldades para a execução de um projeto de Lei de Incentivo, como a apresentação e aprovação do projeto, a captação dos recursos e a prestação de contas. ““A aprovação depende da apreciação de uma banca, que avaliará o trabalho técnico e a dotação orçamentária, na qual, para cada, despesa o proponente deve apresentar três orçamentos””, explica. Já a captação de recursos, conforme salienta Alcorte, torna-se um dos trabalhos mais difíceis, quando o proponente deverá bater de porta em porta oferecendo o seu projeto para empresas que, culturalmente, não investem recursos no esporte. Por fim, cita que a prestação de contas deve ser minuciosa. “Ou seja, não podendo faltar, sequer, uma nota. “Pois em caso de não aprovação das contas, a entidade poderá sofrer sanções por parte do governo””, complementou.

O diretor enfatiza que a FGP já aprovou alguns Projetos de Lei de Incentivo ao longo de sua história. Contudo, lamenta que, como a entidade não conta com uma equipe especializada para redação de projetos e captação de recursos, não consegue efetivamente promover este tipo de ação.

Desta forma, Talitha, por fim, tem razão em ter dúvidas sobre um futuro cheio de incertezas. É difícil para ela ter de tomar uma decisão agora. A expectativa se cria e sempre há esperança de que a situação melhore. Sem apoio, mesmo com aptidão em cada movimento, tantos títulos conquistados e tanta bravura, pode-se acabar deixando de lado um grande sonho. Que para Talitha não falte essa leveza no coração quando os patins estiverem em seus pés.

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