CRÔNICA: Voltei à minha escola dez anos após o seu fim

Fechada em 2008, a Escola Padre Broggi, no interior de Pantano Grande, guarda resquícios de tempos felizes que hoje causam dor

Anderson Guerreiro
Redação Beta
5 min readNov 6, 2018

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Quando o Conselho de Planejamento da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul reuniu-se, em Porto Alegre, em 9 de dezembro de 2009, para sacramentar o fim da Escola Estadual de Ensino Fundamental Padre Carlos Thomaz Broggi, ela já estava morta. Um ano antes, em 23 de dezembro de 2008, os alunos saíram pela última vez daquela escola que durante mais de 70 anos acolheu estudantes da comunidade de Aroeiras, onde ficava, e arredores, no interior de Pantano Grande, no Vale do Rio Pardo.

Em março de 1998 entrei na Padre Broggi pela primeira vez. Eu e mais 15 colegas formaríamos a primeira turma de pré-escola daquela instituição. Uma sala foi toda preparada para nos receber. O alfabeto estava pintado acima do quadro. Na parede ao fundo da sala, personagens de contos de fadas e os números de 0 a 9. Mesas redondas baixinhas foram adquiridas. Balanços, gangorras e um escorregador instalados. A escola vivia seu ápice. Nossa formatura, em dezembro daquele ano, foi também a primeira da escola. Teve até gravação em vídeo, mas creio que tenha se perdido.

A escola ficava a cinco minutos a pé de onde morávamos. Meus pais vivem no mesmo lugar até hoje. Durante seis anos, da pré-escola à quinta série, a Padre Broggi foi a minha escola. Há dez anos ela deixou de fazer parte do cotidiano daquela comunidade que, aos poucos, também definha rumo ao desaparecimento. A escola era um ponto de encontro, era uma referência, uma espécie de fortaleza. As gincanas, festas juninas, homenagens em datas comemorativas… a escola movimentava aquele lugarejo. Sem ela, seu entorno murchou.

Há alguns dias, voltei ao que restou da escola. Ela fica em uma área alta de um campo, ao lado da igreja e do salão comunitário. Dez anos depois, as paredes externas ainda guardam a pintura cinza e pêssego e, intacto, o nome: E. E. de Ens. Fundamental Padre Carlos Thomaz Broggi. Apesar da designação, a escola sempre teve turmas somente até a quinta série e, até 2001, tinha a expressão Escola Estadual de 1º Grau Incompleto na sua nomenclatura.

A sala que abrigava a pré-escola ainda preserva as pinturas nas paredes (Foto: Anderson Guerreiro/Beta Redação)

Entrei na sala onde estudei os dois primeiros anos da minha vida. O alfabeto acima do quadro e os contos de fada permanecem nas paredes. O resto, apagou-se. Se naquele espaço centenas de crianças circularam por anos e foram alfabetizadas, agora bois e vacas usam a sala para defecar dando ao chão uma predominância preta. O forro já cede em algumas partes e nenhum vidro está mais inteiro. Esta era a sala da professora Valmira e foi a minha também em 1998 e 1999.

Ao lado, a “sala do meio”, quase sempre ocupada pela professora Lizete. Ela tinha um relógio grande acima do quadro. Para nós, algo diferente. Na terceira série chegaríamos ali. Havia uma rotina tanto na definição de quais professores trabalhariam com quais séries como em quais salas as aulas ocorreriam. Depois, a terceira sala tinha uma divisória de madeira que era aberta nos eventos, como na nossa formatura da pré-escola. Ali estudei em 2000, 2002 e 2003. Os dois primeiros anos com a professora Marina. Meses atrás a encontrei no Facebook. Ela se aposentou em 2006 e hoje mora no Mato Grosso.

A Escola Padre Broggi começou a perder alunos por duas razões básicas: famílias passaram a ir morar na cidade, a 20 km de Aroeiras, e alunos passaram a migrar de escola mesmo que a nossa ainda ofertasse as aulas correspondentes para a sua idade e série. Ou seja, havia turmas de quarta e quinta séries na Padre Broggi, mas algumas famílias preferiam matricular seus filhos na Escola Machado de Assis, da rede municipal, a cinco quilômetros de distância. Esta escola era nosso caminho natural a partir da sexta série. Muitos, então, antecipavam este processo. A Padre Broggi foi perdendo alunos ano a ano até que as salas mistas, ou multiseriadas, se impuseram como uma realidade.

A primeira turma mista foi exatamente a minha da quinta série, em 2003. Éramos cinco alunos e não haveria uma professora exclusiva para nós. Ocupávamos um cantinho da sala da quarta série, que tinha mais alunos. A partir dali, a cada final de ano letivo aumentava a suspeita de que a escola fecharia. Isso ocorreu em 2008, quando só restavam 15 alunos na Padre Broggi. Foi insustentável a sua manutenção. O município ensaiou um fajuto interesse no aproveitamento daquele prédio grande, de cerca de 500 metros quadrados, para realizar ali projetos sociais. Nada avançou. A burocracia estatal e a falta de interesse do setor público impediu que a Padre Broggi tivesse uma sobrevida.

Se a sua alma já não mais existia, o físico foi desaparecendo aos poucos. Portas, vasos sanitários, pias, fiação elétrica, o parquinho… tudo foi sendo saqueado. Não havia reação da comunidade, mas também não havia razão para existir um movimento de zelo por aquele prédio. Aroeiras é uma localidade pobre. Hoje devem viver umas 40 famílias lá. A média salarial, creio, deve ficar abaixo de um salário mínimo. Não haveria — e não há até hoje — forças para ressuscitar o “colégio”, como chamávamos, sem apoio do Estado. Não adiantava, portanto, impedir que aquele mobiliário restante, que não interessou ao Estado, ali ficasse porque não teria mais aproveitamento real.

Fachada da escola permanece visualmente inalterada dez anos após o fechamento (Foto: Anderson Guerreiro/Beta Redação)

As lembranças são inúmeras. Fiquei alguns minutos, quando voltei à escola há alguns dias, na sala onde fiz o pré e a primeira série. Pensei que foi naquele espaço que fui alfabetizado. É triste. Chegando em casa, à noite, fui buscar o que poderia haver sobre a escola na internet. Descobri um ranking publicado pelo jornal Zero Hora em 2007. Nele, a lista das 100 melhores escolas públicas do Rio Grande do Sul em português e matemática na segunda série do ensino fundamental. Eis que encontro a Padre Broggi como a 18ª melhor escola do Estado em matemática.

Para o poder público, uma escola é um número. Alunos, professores e funcionários são números. Lotam tabelas e, ao final, são custos. Na ponta, elas não são apenas números. São vida, movem comunidades, motivam famílias, compõem um cotidiano que luta para mostrar que vidas da roça, do interior, também importam. Uma escola é a identidade de uma comunidade, principalmente no interior.

Parte de Aroeiras morreu com a Padre Broggi, em 2008.

Vidraça da sala onde ficava a secretaria e a direção da escola, em um pequeno prédio anexo ao das salas de aula (Foto: Anderson Guerreiro/Beta Redação)

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