Pandemia acentua consumo de drogas lícitas e ilícitas

Apenas uma em cada oito pessoas buscam ajuda para tratar o vício, entre recaídas e reduções de dano

Henrique Tedesco
Redação Beta
7 min readJun 24, 2022

--

Por Mariana Necchi e Henrique Tedesco

Pessoas estariam optando pelo uso de drogas para lidar com as crises econômicas e sociais decorrentes da Covid-19. (Imagem: Divulgação/Freepik)

O relatório mundial de 2021 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), aponta uma estatística alarmante: 275 milhões de pessoas usaram algum tipo de entorpecente no ano de 2020, número que deve aumentar 11% até 2030.

De acordo com a assistente social aposentada Ana Lori Ely Quintana, “ninguém se torna dependente por acaso, e para cada tratamento, há uma linha de intervenção diferente e capaz de recuperar pessoas”, afirma a profissional com experiência de 20 anos no acompanhamento de dependentes químicos a partir da identificação das causas da doença.

A dependência química é definida pela OMS como um conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos que se desenvolvem após o uso repetido de determinada substância. A dependência pode dizer respeito a um conjunto de substâncias psicoativas como fumo, álcool, cocaína e opiáceos, entre tantas outras.

O relatório da UNODC traz também outro número preocupante: apenas uma em cada oito pessoas no mundo buscaram assistência profissional para tratar os transtornos mentais e comportamentais em 2020 devido à dependência química. No Brasil, o Ministério da Saúde publicou que o SUS registrou 400,3 mil atendimentos em 2021 a pessoas que estavam enfrentando os efeitos negativos do uso de drogas ilícitas ou álcool.

O SUS atua através dos Centros de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (CAPS AD). No entanto, há outros meios disponíveis, como os Alcoólicos Anônimos e os Narcóticos Anônimos. Ana Quintana explica que cada pessoa apresenta um perfil sócio-cultural diferente, tornando o tratamento multifatorial, ou seja, que envolve diversas linhas de conhecimento, como a psicologia. Enquanto no CAPS há um suporte focado no trabalho médico, os demais grupos são voltados para a espiritualidade e o compartilhamento de experiências para o bem comum.

A assistente social destaca também o aspecto cultural como um dos fatores que podem tornar mais propício o acesso aos entorpecentes. “Na minha geração, o uso do cigarro era bonito e viril, dificilmente uma mulher fazia uso. Ou seja, o pai usuário introduziu ao filho essa cultura, e a da bebida também”, avalia.

O relatório do UNODC aponta o crescimento do consumo de drogas devido à pandemia da Covid-19. O estudo projeta que o aumento do desemprego poderá facilitar a busca por serviços de cultivo à drogas ilícitas, como a folha de coca e a goma de ópio. Além disso, a cannabis (maconha) e outros entorpecentes sedativos também serão mais buscados para o tratamento da saúde mental e para lidar com a crise social e econômica.

“Para cada tratamento, há uma linha de intervenção diferente e capaz de recuperar pessoas“ explica a assistente social Ana Quintana (Imagem: Divulgação/Freepik).

Abstinência como tratamento

Entre as alternativas que possibilitam a retomada da qualidade de vida das pessoas dependentes, a abstinência é a mais frequente. Reconhecida pela OMS, ela recomenda evitar o uso da droga ou álcool nos níveis secundário e terciário de acordo com o International Narcotics Control Board (INCB) da ONU, ou seja, aqueles no quais se deve impedir a progressão do uso, uma vez já iniciado, ou mesmo impedir as piores consequências do uso contínuo.

No Alcoólicos Anônimos (AA), a estratégia adotada é a metodologia dos doze passos, que consiste em um conjunto de princípios espirituais que se praticados como um modo de vida, podem levar ao abandono da compulsão pelo beber destrutivo e possibilitar que o indivíduo tenha uma vida íntegra, feliz e útil.

Para Roberta PR*, as recaídas são parte do processo de sobriedade. A primeira vez que fez tratamento foi em 2001, e a recaída aconteceu em 2018. Durante a pandemia, em 2020, buscou ajuda novamente: “Sou uma alcóolica em reingresso no programa, com um grupo totalmente on-line”, conta Roberta*. “Tive uma recaída após quatro meses sóbria. Hoje eu digo que não há vontade que seja pior do que a dor de uma recaída”, afirma. Atualmente, Roberta PR* está há um ano e quatro meses sem consumir bebida alcoólica, graças às reuniões e apoio dos familiares, como o da sua madrinha: “No início precisei utilizar algumas sugestões como comer um doce, ligar para um companheiro e tomar água tônica. Essa compulsão para mim durou exatamente um mês, depois a vontade de beber desapareceu”.

Já Arthur* é membro participante do Alcoólicos Anônimos há 39 anos e não teve nenhum episódio de recaída. “Consegui permanecer sem beber, submetendo-me voluntariamente ao Programa de Recuperação. O pilar fundamental, no meu caso, foi a admissão de que era um alcoólico, que havia perdido o controle sobre a minha vida e que era dominado pela compulsão pela bebida alcoólica”, afirma. Ele destaca que os pilares para não ter recaídas estão justamente na metodologia dos doze passos: “Os principais são a admissão pessoal, ter a mente aberta e a humildade. A participação nas reuniões e o trabalho de ajudar outros a alcançarem a sobriedade também é algo muito importante”, sublinha.

Dentre os entrevistados, Ricco* participa há menos tempo do Alcoólicos Anônimos. Com 10 meses e meio, ele conta que não teve nenhuma recaída. “Alcoolismo é uma doença incurável. Para um alcoólico buscar beber socialmente é impossível. Passei mais de 20 anos tentando com terapia, psicopedagogia, remédios, religião, esportes… nada funcionou”, afirma. Segundo ele, evitar o consumo de goles e ter frequência nas reuniões são os principais fatores que estão o mantendo sóbrio.

Se pudesse deixar uma mensagem às pessoas, Roberta PR* enfatiza a importância da divulgação do trabalho do A.A.: “Muitas vidas poderiam ser salvas, e isso é super real. Perdi uma companheira da irmandade que eu amadrinhava. Ela estava sóbria há 20 dias e acabou falecendo não diretamente por causa do álcool, mas pelas complicações. Ela tinha 43 anos”.

Reconhecer a doença e apoio sem julgamento são os pilares para recuperação (Imagem: Divulgação/Freepik).

A redução de danos como alternativa

Também reconhecida pela OMS, outra forma de tratamento é a redução de danos, que propõe um trabalho particular entre o paciente e o profissional que o acompanha para o controle da doença a partir do uso restrito de alguma substância, utilizada apenas a partir do nível terciário de dependência química.

Heitor*, estudante de psicologia de 26 anos, é adepto à estratégia de redução de danos para lidar com o vício de substâncias como cocaína, maconha, benzodiazepínicos e álcool. Ele conta que lida com a dependência há seis anos, e nesse período já participou do grupo Narcóticos Anônimos (N.A) por quatro anos e considera o acolhimento e disposição dos membros para ajudar como os maiores atributos do grupo.

Atualmente, frequenta um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS AD) e faz consultas com terapeuta e psiquiatra. A decisão de fazer essa mudança de linha de tratamento foi após não conseguir manter a sobriedade e questionar uma das lógicas do N.A.: “Eu considerei essa alternativa porque eu estava me colocando em risco de vida enorme sempre que recaía, depois de um longo tempo em abstinência e usava a culpa por ter recaído como uma justificativa para usar. Hoje em dia eu sei que quando eu uso algumas drogas eu tenho mais compulsão e quando eu uso outras eu tenho menos. Por exemplo, a cocaína está fora de cogitação, justamente por o efeito durar pouco tempo, o efeito rebote ser horrível e eu ir correndo buscar mais. Eu tenho estratégias de redução de danos que me ajudam a lidar com a obsessão por usar e com a compulsão depois que eu comecei a usar”, declarou.

Uma das metodologias que ele afirma não ter conseguido se adaptar é a de “evitar pessoas, lugares e hábitos”. De acordo com Heitor*, “não faz sentido tu te distanciar do teu círculo social, só porque os teus amigos usam drogas. Já que justamente o círculo social é uma enorme fonte de apoio”, aponta.

Mesmo com os questionamentos e troca de tratamento, Heitor* enfatiza a importância de grupos como o A.A. e N.A.: “Hoje em dia eu acredito que a melhor alternativa para quem quer buscar ajuda com o seu problema com drogas está nos CAPS AD, mas ao mesmo tempo acho que o NA, ou AA, podem ser de grande ajuda para algumas pessoas. Acho que abordar uma pessoa nunca é uma boa ideia, mas informá-la dos serviços do CAPS, dos grupos de apoio (NA, AA) e da importância do acompanhamento psicológico e psiquiátrico pode ser uma excelente alternativa”.

Reuniões podem ser realizadas no formato presencial ou virtual (Imagem: Divulgação/Freepik).

Onde buscar apoio e atenção profissional?

Alcóolicos Anônimos online. https://www.aaonline.com.br/

Narcóticos Anônimos online. https://www.na.org.br/virtual

Encontre o CAPS mais próximo aqui.

Disk Saúde: 136.

Centro de apoio 24h aqui ou (51) 996545321.

*Em respeito à privacidade das fontes e também às regras estabelecidas pelo A.A, CAPS e N.A., os nomes dos entrevistados foram trocados.

--

--