Paralisado pelo governo, audiovisual sobrevive como pode com Lei Aldir Blanc

Setor, já castigado pelo desmonte da Ancine, teve dificuldades ampliadas na pandemia. Legislação emergencial permitiu produções menores

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Redação Beta
9 min readJul 2, 2021

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Após crise na Agência Nacional de Cinema (Ancine), o governo federal extinguiu as políticas públicas para o setor, vindas do Fundo Setorial do Audiovisual. (Foto: Julien Andrieux/Unsplash).

Por ângelo gabriel santos, Bibiana Faleiro, Bruna Lago, Lisandra Steffen e Thariany Mendelski

Da roteirização à pós-produção, os processos para a criação audiovisual envolvem diferentes profissionais. Seja o tema que for, as possibilidades são inúmeras dentro do setor. Mesmo assim, o cenário é de desafio com a busca por alternativas e incentivos às produções, especialmente em um ano de pandemia.

Audiovisual é toda a produção artística, cultural e multimídia que circula em diferentes meios de comunicação. Produtores, roteiristas e diretores se unem a figurinistas, maquiadores, iluminadores e editores em uma extensa cadeia criativa que gera conteúdos para cinema, TV, streaming e internet. Por trás de cada uma das profissões, existem inúmeros rostos. São pessoas que não vivem a estabilidade de um trabalho visto como “essencial”. E que, entretanto, fazem parte de um dos setores mais afetados pela pandemia.

Além disso, as políticas de incentivo ao setor também sofrem oscilações. A jornalista, pesquisadora e roteirista Eli Ramos é coordenadora de comunicação da Associação Brasileira de Autores Roteiristas (Abra). De acordo com ela, hoje, com o desmonte da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o desenvolvimento de produções audiovisuais no cenário nacional foi comprometido.

Assim, as produções ficaram reduzidas às grandes produtoras. O que, segundo ela, resultou no fechamento do micro produtor e no agravamento da situação do médio produtor. “O que há hoje em dia são as grandes produções aliadas aos players ligados a streamings cujo orçamento advém de recursos próprios”, destaca.

Eli ainda acredita que embora a crise exista, o mercado está aquecido, com muitas ofertas de investimentos destinados às séries de TV, às comédias e aos longas documentários com enfoque na cultura local.

De acordo com a coordenadora da Associação Brasileira de Autores Roteiristas (Abra), Eli Ramos, o segmento de podcast tem sido uma área em crescimento. (Foto: Arquivo pessoal)

“Há também um forte interesse por parte dos players em fomentar séries de true crime surgidos no formato podcast. Com isso, o segmento de podcast tem sido uma área em franco crescimento”, ressalta.

Embora não se tenha um levantamento quanto às áreas de maior atuação do setor hoje, grande parte dos associados da Abra trabalha em séries e longas de ficção, longas e séries no formato de documentários, talk shows, realities e programas de variedades. Em menor número, há também os podcasters.

Com a crise na Ancine, o governo federal congelou as políticas públicas para o setor, vindas do Fundo Setorial do Audiovisual. Essa é uma categoria específica do Fundo Nacional da Cultura, destinada ao desenvolvimento da indústria audiovisual no Brasil.

Por outro lado, conforme explica Eli, com a pandemia, foi criada a Lei Aldir Blanc para contemplar os artistas que foram afetados pela paralisação do período. “Este mecanismo de fomento é gerenciado pelos governos estaduais, porém com recursos orçamentários reduzidos. Como há uma enorme procura, o fomento acaba não contemplando a demanda como um todo”, argumenta a coordenadora.

Ela ainda destaca quatro projetos parceiros da Abra que foram contemplados pela lei de incentivo: o Rota — Festival de Roteiro, do Rio de Janeiro, que pôde realizar sua 5ª edição; o SSA Adapta, que surgiu na Bahia; o Fade To Black, no Rio Grande do Sul; e o Películas Negras, da Bahia.

Trabalhar com audiovisual no Brasil é a meta de muitos jovens produtores, mas a realidade é bastante difícil sem as bases necessárias. O cinema brasileiro, apesar de conhecido internacionalmente pela qualidade, ainda encontra dificuldades, especialmente para realizadores que estão dando seus primeiros passos.

É nesse cenário que os editais culturais e leis de incentivo à cultura se tornam fundamentais para que os projetos sejam tirados do papel e finalmente cheguem às telas. É o caso do documentário Intransitivo, do curta Em nome do pai, do filme Danças Tradicionais do Rio Grande do Sul e da série on-line Papo de Criança, que você pode conhecer logo abaixo.

Uma narrativa trans que nasceu em sonho

Durante o sono, Gustavo Deon imaginava estar viajando de carro pelo Rio Grande do Sul, contando histórias de pessoas trans, assim como ele é. Dessa forma, ao lado dos amigos Gabz 404, Lau Graef e Luka Machado, surgiu o projeto para desenvolver e produzir o documentário Intransitivo, que contará a história de oito pessoas trans, dentro de suas singularidades.

Atualmente em fase de produção, o filme já levou o grupo de amigos a sete cidades do estado para realizar a captação de entrevistas. (Foto: Gabz 404/Arte: Luka Machado).

Com recursos da Lei Aldir Blanc (n° 14.017/20), o projeto é executado por meio do Edital Criação e Formação — Diversidade das Culturas, na região do Vale do Caí. O grupo de amigos trans foi contemplado com um valor de R$ 50 mil, mas a artista e produtora do documentário, Luka Machado, afirma que os custos com produção, equipamentos e acessibilidade são altos. Assim, planejam outras formas de arrecadar valores para continuar com a produção.

Luka também explica a necessidade de gravar um documentário que conta as narrativas trans: “Nas nossas rodas de conversas, falar sobre as nossas vidas e sobre como a sociedade nos enxerga é algo muito recorrente, e a gente quer criar uma representatividade verdadeira, através da diversidade de quem somos”. Além do grupo de amigos, outras duas pessoas são voluntárias no projeto e ajudam nas captações audiovisuais: Marine Bataglin e Bernardo Kroeff.

Da esquerda à direita: Luka Machado, Gustavo Deon e Lau Graef. (Foto: Gabz 404/Arte: Luka Machado).

Ainda em fase de produção e sem data oficial de lançamento, o documentário teve captações feitas em Porto Alegre, Gravataí, Novo Hamburgo, Caxias do Sul, Rio Grande, Pelotas e Bagé. Na busca por visibilidade, os amigos se preocupam com a acessibilidade e pretendem traduzir o filme para outras línguas, além de interpretá-lo para Libras e fazer uma versão para pessoas com deficiência visual. A ideia é poder contar a história para todas as pessoas.

“A maioria dos nossos projetos são de impacto social, voltados para a comunidade LGBTQIA+, principalmente a letra T da sigla, porque é a letra que se encontra hoje em um lugar muito marginalizado, de precariedade, de não-oportunidades, de impossibilidades. Então a gente está lutando muito para mudar essa realidade”, conclui a artista.

Quem tiver interesse em contribuir financeiramente com o projeto, pode entrar em contato com o grupo pelo Instagram: @intransitivo.doc, ou pelo e-mail: intransitivodoc@gmail.com.

Amigos do teatro estreiam no cinema

Também contemplado com o edital Criação e Formação — Diversidade das Culturas, um grupo de amigos e produtores de Porto Alegre conseguiu trazer para o cinema a ideia que construíram juntos.

Para os produtores, voltar aos palcos com uma obra cinematográfica foi um sonho realizado. (Foto: Instagram pessoal Santiago Vieira).

“A ideia principal do projeto surgiu de nós cinco, os produtores. Eu (Santiago Vieira), o Ariel Medeiros, o Luís Henrique Leite, a Natália Severo e a Roberta Jorge. Somos amigos por causa do teatro, nos conhecemos através da arte. Então, neste período da pandemia, onde as coisas estavam muito paradas, começamos a pensar no que fazer para voltar aos palcos”, conta Santiago.

“Em cima disso, surgiu a oportunidade de reviver a história de uma escritora gaúcha, que coincidentemente é a minha avó. E com o edital, pensamos: por que não levar isso para o audiovisual?”, explica o artista.

O edital proporcionou a participação de artistas de projeção nacional, como Werner Schünemann. (Foto: Instagram Santiago Vieira)

Contemplados com a verba de R$ 50 mil, o projeto pôde sair do papel e tem data de pré-estreia ainda para este ano. Em nome do pai foi gravado durante sete dias em Pareci Novo, no interior do estado, e contou com nomes como Werner Schünemann, Evelyn Ligocki, Gabriela Munhoz, Anderson Vieira, Luis Frank e Roberta Oliveira.

Apesar do auxílio financeiro do edital, a produção cinematográfica é bastante cara e, agora, enquanto o filme está em processo de edição, os jovens procuram por patrocínio e parcerias com marcas para finalizar o processo. “O filme vai rodar em festivais nacionais e internacionais e queremos também que seja disponível em plataformas de streaming, como Netflix e Globoplay”, explica Santiago. Esse é um diferencial que pode atrair marcas parceiras que gostariam de ajudar no setor cultural, segundo ele.

Foram sete dias de gravação em Pareci Novo, no interior do Rio Grande do Sul. (Foto: Instagram pessoal Santiago Vieira).

Apesar das dificuldades e do trabalho intensivo, o projeto foi um sonho realizado para o grupo. “Nós cinco sempre fomos muito conectados com a arte, todos já fizemos algum trabalho em relação ao teatro, mas com o cinema foi a primeira vez”, vibra Santiago.

Ele reforça a importância da Lei Aldir Blanc: “Nós construímos tudo desde o início, então foi uma grande experiência e estamos bem felizes com tudo isso. Mas, sem o edital e essa lei, que surge em um momento emergencial, não seria possível tirar o projeto do papel”.

Maurício Schneider é diretor do projeto Papo de Criança, peça adaptada para a produção audiovisual. (Foto: Arquivo pessoal/Divulgação)

Peça infantil vira série on-line

Com a pandemia, espaços culturais foram obrigados a fechar as portas para evitar aglomeração nos ambientes. Peças de teatro tiveram que se reinventar para alcançar o público e fazer com que os artistas continuassem trabalhando. Papo de Criança é um exemplo. A série on-line é produzida em Porto Alegre e tem previsão de ser finalizada ainda no segundo semestre de 2021.

O grupo que produz a série é composto por Maurício Schneider, na direção, e mais 13 artistas que se dividem entre produção, captação e atuação no projeto audiovisual. “A ideia surgiu a partir da nossa necessidade de trabalhar com a profissão que escolhemos e pela nossa trajetória com trabalhos voltados para o público infantil”, conta Maurício. O desafio, segundo o diretor, é passar o conhecimento do teatro para a frente das câmeras.

Diretor vê a Lei Aldir Blanc como uma maneira de artistas tirarem projetos do papel. (Foto: Arquivo pessoal/Divulgação)

O projeto foi contemplado pela Lei Aldir Blanc por meio do edital Criação e Formação — Diversidade das Culturas e se adequou ao orçamento de R$ 30 mil. “Se tivéssemos mais dinheiro, com certeza aumentaríamos o projeto e suas bases”, conta o diretor, que completa, confessando: “A criação do projeto foi feita de maneira coletiva com as colegas e não tínhamos certeza se passaríamos no edital, por isso houve uma dificuldade na produção”.

Apesar disso, Maurício enxerga a Lei Aldir Blanc como uma maneira de artistas tirarem projetos do papel. “No Brasil, infelizmente, a arte não é vista como necessidade social, mas sim como despesa. Isso é triste porque nós, profissionais dessa área, sabemos o quão importante é para a formação de crianças e adolescentes esse contato com uma peça de teatro”, finaliza.

No audiovisual, uma oportunidade para registrar a tradição

Documentar a cultura tradicionalista do estado é o objetivo do projeto Danças Tradicionais do Rio Grande do Sul — o filme, dirigido pelo porto-alegrense Guilherme Veladas. A produção foi contemplada com R$ 50 mil pela Lei Aldir Blanc, por meio do edital da Fundação Marcopolo, e percorre grande parte do RS para resgatar o costume ainda muito praticado pelo gaúcho. Algumas cidades de Santa Catarina também serão visitadas.

Guilherme Veladas é diretor do projeto Danças Tradicionais do Rio Grande do Sul — o filme. (Foto: Arquivo pessoal)

Guilherme é tradicionalista há três décadas, como dançarino, professor de danças e músico dos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) de todo o Brasil. Há alguns anos ele se dedica à produção audiovisual e viu no projeto uma oportunidade de unir a dança e as gravações para criar um produto que sentia falta de consumir.

“O processo de inscrição foi bem simples. O meu projeto foi contemplado por um edital que ainda está em andamento. O processo está acontecendo mesmo com a pandemia e estamos conseguindo fazer os registros. Tudo está dentro do prazo”, ressalta.

Durante a fase de produção, a equipe coleta depoimentos de pessoas que estiveram presentes no surgimento da cultura tradicionalista conhecida hoje. Depois são feitas gravações de danças tradicionais. O grupo viaja o estado para captar o material.

“Sem esse incentivo [da Lei Aldir Blanc] seria praticamente impossível dedicar nosso tempo e priorizar um projeto dessa grandeza. É um grande divisor de águas, e só ele torna tudo isso possível”, conta Guilherme.

O diretor acredita que a lei trouxe conforto aos artistas que passam por um momento difícil. A produção do filme pode ser acompanhada pelo Instagram: @ofilme.dancastradicionaisrs.

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A Beta Redação integra diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em cinco editorias.