PEC do Plebiscito expõe contradições de Eduardo Leite e revolta oposição

Projeto, que tramita na Assembleia Legislativa, retira a exigência de votação popular para a privatização de três estatais

Gustavo Bauer
Redação Beta
12 min readApr 16, 2019

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Servidores estaduais protestam contra a retirada do plebiscito para privatizações. (Foto: Guerreiro/ALRS)

Pauta que se arrasta há décadas no cenário político gaúcho, as privatizações estão de volta ao centro do debate público, reforçando a divisão ideológica entre privatistas e estatistas. No atual governo, comandado por Eduardo Leite (PSDB), um novo elemento incluído na pauta gera embates na Casa do Povo.

Ao assumir o cargo, Leite enviou à Assembleia Legislativa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 272/2019, que derruba a exigência da realização de um plebiscito para a privatização de três estatais: Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), Companhia Riograndense de Mineração (CRM) e Sul Gás. A medida expõe contradições do governador, que, antes de eleito, reconheceu publicamente a importância do plebiscito.

A matéria deve ir à votação em plenário no dia 23 de abril. Com as privatizações, o Estado pretende reestruturar as finanças públicas para concentrar esforços em áreas consideradas essenciais, como a segurança, a saúde e a educação. No projeto de retirada do plebiscito, o governo justifica que o debate sobre a privatização continua sendo democrático ao ser realizado pelos deputados. Caso a mudança da legislação seja confirmada, a possibilidade de votação popular será enterrada de vez.

Rodeada de polêmica e jogo político, a articulação tucana sobre o tema iniciou ainda no ano passado. Basta voltar a junho de 2018, quando o plebiscito proposto pelo então governador José Ivo Sartori (MDB) foi rejeitado pela maioria da AL. Na época, Sartori queria realizar a consulta sobre as privatizações junto ao período eleitoral, o que reduziria de cinco para três meses o tempo de debate.

Entre os partidos que votaram contra a proposta, estava o PSDB. A sigla alegou que o plebiscito não deveria ocorrer junto às eleições e que o prazo seria pequeno para o debate — naquela época ainda defendido pelos tucanos.

Eduardo Leite apresenta contradições em discurso sobre o plebiscito antes e após o período eleitoral. (Foto: Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini)

No dia 8 de junho de 2018, o PSDB gaúcho divulgou uma nota em que apontou motivos para justificar a rejeição à proposta de Sartori. Assinado pelo então presidente do partido, Eduardo Leite, ainda pré-candidato a governador, o documento trouxe declarações favoráveis à realização da consulta à população, desde que não fosse simultânea à eleição.

Em momento algum, na nota, Leite negou levar ao povo a discussão sobre a privatização das estatais. Pelo contrário, indicou que faria o plebiscito caso vencesse as eleições, o que não ocorreu quando chegou ao Piratini. Os dois trechos abaixo atestam qual era a posição de Leite.

“É preciso ficar claro que não se negou a realização de um plebiscito, que continua a ser proposto para 2019, e tampouco se negou a pauta da privatização.”

“O plebiscito é, de todos os instrumentos da democracia, o que melhor representa a vontade popular. E é exatamente por isso que necessita do debate mais amplo.”

Na mesma nota, Leite afirmou que o custo de R$ 18 milhões para a realização de plebiscito em ano não eleitoral seria “absolutamente compatível e necessário”. Ele acrescentou que isso aumentaria o potencial de vitória do sim para a privatização da CEEE, dando mais credibilidade ao processo. No entanto, foram apenas declarações. O pensamento mudou sete meses depois, com o envio da PEC à Assembleia Legislativa.

Contatada pela Beta Redação no dia 9/4, a Assessoria de Imprensa do Piratini pediu mais prazo para responder e enviou como resposta nesta terça (16/4), sem citar a fonte, um texto com trechos de entrevista feita pelo Sul 21 com Eduardo Leite, publicada na segunda-feira (15/4). Sobre a nota do PSDB assinada por Leite no ano passado, não há qualquer menção. A entrevista do Sul21 pode ser lida aqui — e a íntegra da resposta enviada pela Assessoria de Imprensa do Piratini pode ser conferida no final desta matéria.

Na entrevista ao site Sul21, Leite sustenta que falou “para a população claramente na eleição a intenção de encaminhar essas empresas à privatização” e que agora encontrou “espaço político na atual composição da Assembleia para fazer o encaminhamento sem plebiscito”. Sobre a necessidade de consultar a população, o governador avaliou que “a questão do plebiscito e das privatizações envolve temas muito rebuscados, refinados, de conhecimento de oportunidade de negócios, do quadro fiscal das empresas” e que “quem tem o tempo disponível, a capacidade de fazer as análises, são os representantes da população”.

“Leite quer fugir porque tem medo de perder junto à opinião pública”

Deputado Luiz Fernando Mainardi (PT) defende a manutenção das estatais. (Foto: Vinicius Reis/ALRS)

Líder da oposição na Assembleia Legislativa, o deputado Luiz Fernando Mainardi (PT) ataca fortemente a postura adotada pelo atual governo. O parlamentar afirma que a retirada do plebiscito é um recurso para fugir do debate, pois, segundo ele, pesquisas indicam que mais de 60% da população gaúcha seria contra as privatizações. Mainardi lamenta a mudança de posição de Eduardo Leite, critica os privatistas e apresenta elementos contrários à privatização da CEEE, CRM e Sul Gás.

Assim como outros partidos, o PT também rejeitou o plebiscito proposto por Sartori, pois preferia a realização de um debate amplo fora do período eleitoral. “O próprio governador [Eduardo Leite] disse que não era adequado, pois teria que ter mais tempo para debater um plebiscito com a comunidade. É lamentável que ele tenha mudado de opinião, negando ao povo o direito a decidir sobre isso. E lamento mais ainda que ele esteja conduzindo uma maioria aqui na Assembleia, que pode levar à retirada do plebiscito”, destaca.

Em relação às privatizações, Mainardi sugere, em primeiro lugar, olhar para a estatais privatizadas no governo de Antônio Britto (MDB), entre 1995 e 1998. Na época, a Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT) e dois terços da CEEE foram vendidos à iniciativa privada. Segundo o parlamentar, os serviços prestados hoje pela RGE e empresas de telefonia e internet são de péssima qualidade.

O deputado também se mostra preocupado com a formação de um monopólio privado nas áreas da energia elétrica, mineração e gás — segmentos das três estatais a serem privatizadas no governo Leite. Caso a PEC 272 seja aprovada, o artigo que trata sobre o monopólio também será retirado da Constituição. Atualmente, o texto afirma que “os serviços públicos considerados essenciais não poderão ser objeto de monopólio privado” e que “a distribuição e comercialização do gás canalizado é monopólio do Estado”.

Mainardi argumenta que a CEEE, a CRM e a Sul Gás sempre foram empresas lucrativas. Na sua avaliação, preocupa o fato de a distribuição de energia elétrica poder ficar na mão de uma só companhia. “A legislação diz que é proibido monopólio privado, mas o governador pretende tirar isso. Ou seja, ele está entendendo que a RGE, comandada sob capital de uma multinacional chinesa, possa comprar a CEEE e ficar com o monopólio. Nós somos contrários, pois isso é entregar para a iniciativa privada aquilo que é do Estado”, afirma.

“O resultado das eleições demonstra a convicção da população gaúcha quanto à necessidade das privatizações”

Deputado Mateus Wesp entende que o resultado das urnas oferece legitimidade para o governo definir privatizações sem plebiscito. (Foto: Michael Paz/ALRS)

Do outro lado do conflito ideológico, o deputado estadual Mateus Wesp, líder do PSDB na Assembleia Legislativa, defende as privatizações e a derrubada do plebiscito. O parlamentar lembra que, antigamente, a exigência do plebiscito foi colocada na Constituição Estadual por meio de emenda. Dessa forma, acredita que os deputados têm plena legitimidade para discutir o assunto e eventualmente removê-la, também por emenda.

Wesp afirma que a decisão popular sobre as privatizações foi dada nas urnas no ano passado, e por isso não seria necessário escutar novamente o povo, que teve condições de avaliar as propostas dos candidatos durante a campanha.

“Hoje, cremos que o resultado das eleições de 2018 demonstra com inequívoca clareza a convicção da população gaúcha quanto à necessidade das privatizações. O povo já foi ouvido sobre esse assunto nas últimas eleições estaduais. Dois candidatos favoráveis às privatizações foram escolhidos para disputar o segundo turno das eleições e as candidaturas contrárias a elas foram fragorosamente derrotadas já no primeiro turno”, justifica o tucano.

Cientista político define retirada do plebiscito como retrocesso

Para fugir do embate partidário, a Beta Redação conversou com o cientista político Alfredo Alejandro Gugliano, professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFRGS, que comanda o grupo de pesquisa em Processos Participativos na Gestão Pública. Ele defende a consulta à população gaúcha em temas como o das privatizações.

O especialista condena as seguidas emendas à Legislação Estadual, que perpassam governos e geram desconfiança na sociedade. “Particularmente, não vejo com bons olhos que a Constituição gaúcha seja modificada a cada momento que um governo tenha interesses específicos. Isso não só cria espaços de desestabilização do Legislativo, mas também transmite para a população a imagem de que as leis pouco importam”, avalia.

Alfredo Gugliano afirma que a população gaúcha deve ser consultada em temas complexos como o das privatizações. (Foto: Ramon Moser/UFRGS)

Para o cientista político, a gestão de Eduardo Leite não reflete a imagem construída ao longo da campanha eleitoral. “Sobre a PEC 272, eu não somente vejo a proposta como um retrocesso, como considero que caminha na contramão das concepções mais avançadas de gestão do Estado, inclusive as de cunho gerencial. Não deixa de me surpreender que um governador que tenta transmitir para a sociedade um perfil tão arrojado e moderno adote uma estratégia política desse porte”, salienta.

Segundo Gugliano, o plebiscito é aplicado para questões previamente estabelecidas nos textos constitucionais e expressa temas de relevância em termos legislativos ou administrativos. O instrumento também pode ser aplicado para questões que, consensualmente, representam possibilidade de dano para o patrimônio público, como, no caso da Constituição gaúcha, o debate sobre a privatização.

“Atualmente não vejo nenhum empecilho para levar adiante um plebiscito. Também penso que, se a população tem condições de eleger quem governa, também tem condições de opinar sobre projetos de grande impacto social. É uma questão de vontade política do governador e cumprimento da atual Constituição. E aí precisamente está o problema. Eduardo Leite vem dando inúmeras declarações sobre sua indisposição em levar adiante uma consulta com cunho popular”, analisa.

O cientista político também avalia de forma negativa dois argumentos apresentados pelo governo sobre o tema do plebiscito. O primeiro seria o apoio incondicional dos eleitores às propostas. “Nenhum eleitor dá apoio incondicional ao seu candidato. Ademais, pelo que me consta, o governador representa, arredondando, 3 milhões de eleitores que votaram nele e concordaram com o seu programa, mas também pouco mais de 3 milhões de eleitores que não votaram nele, possivelmente discordaram do seu programa”, contextualiza.

Já o segundo argumento é dizer que os cidadãos não teriam condições de opinar sobre questões tão complexas como as privatizações. Ele lamenta que a ideia não tenha sido apresentada por Eduardo Leite durante a campanha eleitoral, antes de o mesmo ser eleito.

“Isso quiçá mudaria o voto de muitos cidadãos, porque, na prática, é um argumento preconceituoso, despreza a capacidade e inteligência dos eleitores tomarem posição sobre temas que afetam o seu dia a dia. Reflete o que há de mais atrasado e tradicional no espectro político brasileiro, apesar da juventude do nosso governador”, completa o especialista.

Confira a resposta do Piratini na íntegra

Abaixo, confira o texto enviado como resposta à Beta Redação pela Assessoria de Imprensa do governo do Estado, que, sem citar a fonte, compila trechos da entrevista feita pelo site Sul21 com Eduardo Leite:

Primeiramente, não procede a afirmação de que eu tenha dito que iria encaminhar o plebiscito. Em entrevistas ao Jornal do Almoço e ao Jornal do Comércio, deixei claro que, havendo espaço para retirar a exigência do plebiscito, isso seria feito. Se identificássemos esse espaço com a Assembleia Legislativa, não faríamos o plebiscito. Se não, chamaríamos o plebiscito nos primeiros seis meses do governo. O que disse é que é um assunto que precisa ser resolvido, encaminhado, dentro dos primeiros seis meses de governo.

A questão do plebiscito e das privatizações envolve temas muito rebuscados, refinados, de conhecimento de oportunidade de negócios, do quadro fiscal das empresas, das tecnologias que ameaçam inclusive a existência dessas empresas nas condições que elas operam, da dificuldade de uma empresa estatal atualizar tecnologicamente, da estabilidade no emprego que dificulta também processo de qualificação e gestão. Então, você tem que analisar todos esses pontos para definir se uma empresa deve permanecer pública ou não. Quem tem o tempo disponível, a capacidade de fazer as análises, são os representantes da população.

Os setores que mais nos criticam a respeito da retirada da exigência do plebiscito são naturalmente aqueles partidos à esquerda. Pois bem, por que esses partidos também não defendem então fazer plebiscito para fazer a redução ou não da maioridade penal? Por que não defendem plebiscito para pena de morte no Brasil? Porque a gente sabe que possivelmente a posição que vencerá no plebiscito nesses casos não será as posições que eles defendem, e que também nem eu defendo que haja pena de morte e redução da maioridade penal. Mas, se nós colocarmos isso à decisão do povo sem haver uma correta análise das consequências dessas decisões, poderemos levar a uma decisão inconsequente no final das contas. Então, se a gente lança para decisão de todos, se coloca sob a responsabilidade de ninguém esses assuntos.

Nós encontramos espaço político na atual composição da Assembleia para fazer o encaminhamento sem plebiscito. E falamos para a população claramente na eleição a intenção de encaminhar essas empresas à privatização. O outro candidato que foi conosco ao segundo turno também defendia. Então, já no primeiro turno, as candidaturas que 70% da população votou defendiam a privatização dessas empresas. De certa forma, entendemos chancelada a ideia do encaminhamento das privatizações.

Queremos e podemos fazer um RS que reassume papel de protagonismo econômico e político no cenário brasileiro. Com governo e economia modernos, capacidade de inovação e produção, serviços qualificados e qualidade de vida. O objetivo é que o Estado possa se dedicar exclusivamente às áreas que a população espera e precisa: saúde, educação, segurança, infraestrutura e políticas sociais. Hoje, o RS tem que tirar dinheiro destas áreas para cobrir os rombos de empresas que teriam resultados muito melhores se estivessem sendo geridas, por exemplo, pela iniciativa privada. Além da questão financeira, há risco de descontinuidade nos serviços prestados, o que seria drástico para o cidadão.

A CRM é uma empresa dedicada à mineração, setor que exige constante investimento. Por problemas operacionais e financeiros, a companhia nunca conseguiu diversificar sua produção e seus fornecedores. A empresa possui apenas um contrato, com a CGTEE — Eletrobrás, que está em vias de privatização pela União devido a complicações econômicas. Esses problemas forçaram a CGTEE a reduzir o contrato com a CRM em 60%. Mesmo com a diminuição, a estatal gaúcha continua com o mesmo quadro de funcionários. O resultado não poderia ser outro, um déficit estrutural que se mantém ano após ano: — R$ 18,2 milhões (2015); — R$ 37,7 milhões (2016); — R$ 31,8 milhões (2017) (referência junho/2018). O contrato com a CGTEE tem vigência até 2024. Após esse período, os seus ativos serão insuficientes para o pagamento das dívidas e ajustes trabalhistas. A situação funcional da empresa foi agravada na gestão 2011–2014, que inchou o quadro de funcionários com mais 100 servidores concursados. Em março de 2018, a empresa contava com 411 pessoas em seu quadro, com salário médio bruto de R$ 5.920,00 (com encargos). A CRM atua em um setor onde a iniciativa privada tem desempenho muito superior, com mais tecnologia e menores custos.

A decisão de privatizar a Sulgás leva em consideração diversos fatores. Embora superavitário, o desempenho da companhia é bem aquém do que poderia (o Resultado Líquido foi de R$ 72 milhões em 2017). Apesar de atuar num setor altamente competitivo, possui baixo apetite comercial. As projeções apontam que a companhia tem mercado para fornecer mais de 12 milhões de m3/dia (2030). Atualmente, a Sulgás comercializa cerca de 2 milhões de m3/dia. Para atingir o patamar potencial projetado para 2030, a companhia teria que investir R$ 1,8 bilhão, recursos que não dispõe. Não atingir seu potencial significa menor arrecadação de ICMS para o Estado e menos recursos disponíveis para os municípios

A CEEE Distribuição é uma companhia que enfrenta graves dificuldades financeiras e operacionais. Para atender às metas da ANEEL, a CEEE precisaria de um aporte de recursos de R$ 2,1 bilhões até 2020. Caso contrário, perderá seu maior patrimônio, que é a concessão. A empresa tem gerado prejuízos operacionais em sequência. O patrimônio líquido da CEEE é negativo: — R$ 1,2 bilhão (referência junho de 2018). Nos últimos 10 anos, a empresa já pagou R$ 1,4 bilhão de passivo trabalhista. Atualmente, tem provisionados para pagar mais R$ 793 milhões. Neste cenário, a CEEE não consegue mais investir para qualificação dos serviços prestados. A precarização do atendimento, assim como a perda de concessão, são consequências praticamente inevitáveis.

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