Pedal inclusivo cresce em Porto Alegre

Grupos locais promovem eventos de ciclismo com bicicletas adaptadas para pessoas com deficiência

Gabriela Stähler
Redação Beta
8 min readMay 5, 2019

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Condutores voluntários levam pessoas com mobilidade reduzida nos passeios de final de semana (Foto: Gabriela Stähler/Beta Redação)

O domingo começa cedo para um grupo de ciclistas de Porto Alegre. A manhã quente e tranquila está propícia para fazer o que eles mais gostam: pedalar. Mas basta vê-los pelas ruas da capital para saber que não se trata de atletas comuns: além da paixão pelas bicicletas, eles têm amor ao próximo. Aqui, o verdadeiro esporte é a inclusão. Fazem parte do pedal crianças e adultos com deficiência, que participam em bikes adaptadas. O evento, realizado no dia 5 de maio, integra o projeto Pedal da Inclusão, que oportuniza que cadeirantes e pessoas cegas ou com baixa visão possam ter a experiência de pedalar.

O projeto foi criado em 2016 por Rita Siminovích, apaixonada por bicicletas desde criança. Ela desenvolveu a proposta para proporcionar aos outros o prazer que sente ao pedalar.

No início, o grupo se organizou em parceria com a Associação de Cegos do Rio Grande do Sul (ACERGS) e atendia apenas ciclistas com deficiência visual. Em pouco tempo, a demanda cresceu e a iniciativa passou a incluir todos os tipos de PCDs. Hoje, o projeto também promove eventos voltados para a terceira idade, chamados de Pedal dos Coroas.

O Pedal da Inclusão promove passeios mensalmente. As bicicletas utilizadas são do modelo Tandem, que são operadas por mais de uma pessoa, com adaptações para ciclistas com mobilidade reduzida.

Rita acompanha de perto as experiências dos participantes ao longo dos passeios. Ela lembra que, um dia, viu uma pessoa com deficiência visual dar um verdadeiro susto na mãe. “Uma Tandem parou e o pedaleiro comentou que o celular da pessoa com deficiência visual não parava de tocar. Quando ele atendeu, ele disse: mãe, eu estou pedalando, depois te ligo” relembra. Rita achou a situação cômica, afinal, a família nem imaginava que ele poderia sair para pedalar.

A ACERGS, que auxiliou na criação do Pedal da Inclusão, agora conta com sua própria iniciativa, focada em pessoas com deficiência visual. Segundo o coordenador do grupo, Rafael Martins dos Santos, o projeto tem cerca de 60 participantes regulares. “São adolescentes, adultos, idosos e também pais de crianças com deficiência”, relata.

Rafael garante que pessoas com baixa visão também podem ser condutoras nos passeios. “Há casos de adultos que, com o auxílio de batedores, conseguem conduzir uma criança na bicicleta”, conta. Esses chamados batedores são ciclistas em bicicletas tradicionais, que guiam verbalmente quem está no veículo ao lado.

O Pedal da ACERGS já realizou 30 passeios em lugares como túneis e viadutos, além do percurso entre o Estádio Beira-Rio e a Arena do Grêmio. Em abril de 2019, o grupo levou os participantes para pedalar em Nova Petrópolis, na serra gaúcha, durante a ChocoFest.

Iniciativas contam com ajuda da comunidade

O último passeio do Pedal da Inclusão foi realizado, no dia 5 de maio, em parceria com o grupo Autismo e Vida (Foto: Gabriela Stähler/Beta Redação)

As 14 bicicletas Tandem do Pedal da ACERGS foram adquiridas por meio da reciclagem de tampinhas plásticas, arrecadadas pela comunidade e pelos participantes do grupo.

A prática também é utilizada pelo Pedal da Inclusão, que coleta tampinhas em diversos pontos de Porto Alegre para ajudar na arrecadação de recursos financeiros. O grupo conta com a parceria da União de Cegos do Rio Grande do Sul (UCERGS), presidida por Adilso Corlassoli, 49. A entidade leva pessoas cegas ou com baixa visão para os eventos de ciclismo.

Adilso, inclusive, assume os pedais quando sobra vaga nas bicicletas. “Se há muita gente, eu tiro meu nome para que todos possam ter a experiência de participar”, conta.

A UCERGS também auxilia na arrecadação de tampinhas plásticas. “Nossa ideia é conseguir o maior número de bikes”, garante o presidente. Ele conta que a União mantém um grupo de WhatsApp para conectar as pessoas com deficiência e os pedaleiros, além de divulgar as datas dos passeios.

Adilso descreve os pedais como “uma experiência fantástica”. Ele destaca que os encontros unem pessoas que já nasceram com baixa visão e outras que desenvolveram a deficiência ao longo da vida. “As pessoas com e sem deficiência partilham da emoção de sentir o vento no rosto. Muitas vezes o pedaleiro descreve os lugares por onde a dupla está passando”, explica.

Um parceiro mais recente do Pedal da Inclusão é o Instituto Autismo e Vida. Além de acompanhar alguns passeios, o grupo promove palestras e bate-papos sobre o autismo em Porto Alegre. O público-alvo são pais e familiares de crianças autistas.

Ciclismo dá sensação de autonomia

Uma das primeiras integrantes do Pedal da Inclusão, Isabel Kaiser perdeu a visão na infância. O contato com o ciclismo começou cedo: no colégio em que estudava, o Instituto Santa Luiza, ela já realiza os primeiros passeios sozinha na bicicleta adaptada. Com a bicicleta, andou na Redenção com uma amiga. “Andamos nos lugares menos movimentados e colocamos um barulho no raio. Eu me orientava por esse som”, relata.

Passeios do Pedal da Inclusão passam por diversos pontos de Porto Alegre (Vídeo: Isabel Kaiser/Acervo Pessoal)

Isabel comprou a primeira bicicleta dupla ainda na década de 1980, quando começou a sentir os benefícios dos passeios para o bem-estar e a autonomia no cotidiano. Porém, logo teve de vender o veículo por não achar condutores que a acompanhassem. “Poucas pessoas se disponibilizam para esta atividade semanalmente”, comenta. Isabel também relata que muitos condutores sentem medo de se responsabilizar pelas pessoas com deficiência durante o passeio.

Ela conheceu o Pedal da Inclusão por meio da ACERGS e, desde então, frequenta os passeios promovidos pelo grupo. Inclusive, uma das bicicletas do projeto foi cedida a ela, para que possa pedalar sempre que conseguir um condutor, pois a frequência dos eventos oficiais ainda é mensal. Nesse intervalo, Isabel utiliza a bike ocasionalmente e faz caminhadas para cuidar da saúde.

Outro ciclista que se beneficia das bicicletas inclusivas é Juemir Ameri, 37. Ele mora em Pinhalzinho, no interior de São Paulo, e acompanha ativamente o Pedal da Inclusão pelas redes sociais. Juemir já gostava de bicicletas antes do acidente que lhe deixou sem um braço e, agora, o veículo é seu principal meio de locomoção. O uso da bicicleta é indicado pelos médicos para ajudar no condicionamento físico, junto com a natação.

Juemir comprou a primeira bicicleta adaptada há cinco anos, com freios e marchas de um lado só. “Meu primeiro pedal longo foi até Aparecida (SP). Foram 210 km aproximadamente, sozinho e com uma mochila nas costas. Foi um percurso de dois dias”, lembra.

Para ele, a bicicleta faz diferença na hora de lidar com a deficiência, além de diminuir as dores, a ansiedade e os sintomas da depressão. “É difícil ter vagas para fisioterapia, e existe um custo financeiro para academia. A bike é uma boa opção, além de oferecer uma ligação direta com a natureza”, declara.

A experiência de quem conduz

A filha de Rita, a designer Sabrina Soares, também se sensibilizou com a causa. “A pessoa que plantou a semente da inclusão e da sustentabilidade foi a minha mãe. Ver a dedicação dela me fez querer ajudar mais o próximo”, conta.

Ela já participou de eventos do Pedal da Inclusão como condutora das bicicletas compartilhadas. “É uma experiência inexplicável. No decorrer do passeio, tu te dá conta que está ganhando muito mais do que a pessoa”, relata.

Entre as amizades que fez nos eventos, ela destaca o Egídio, um senhor que adora exercícios e está sempre bem-humorado. “Mesmo cego, ele leva a vida melhor que muita gente”. Sabrina também menciona Tobias, um cadeirante que recolhe tampinhas para ajudar na compra das bicicletas adaptadas.

O engajamento com a causa é tão grande que Sabrina desenvolveu o seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre o Pedal da Inclusão, trabalhando com a identidade visual e alguns materiais do projeto. Apesar de ter se mudado para o Rio de Janeiro em 2018, ela ainda ajuda com o recolhimento de tampinhas plásticas, que traz à capital gaúcha quando visita a família.

A bicicleta no desenvolvimento das crianças

Não são apenas os adultos que se beneficiam dos passeios com a bicicleta. Gabriel Schonardie da Silva, 9, é morador de Sapiranga e tem tetraparesia espástica, o que faz com que ele não consiga caminhar. O menino começou a ter contato com um triciclo em uma clínica e os pais, Nina Schonardie e Lucas Silva, investiram R$ 1.200, mais o frete, para que o filho pudesse praticar em casa.

“Não ensinamos, mas precisamos ficar sempre junto, auxiliando, às vezes, na direção”, explica Nina. O casal leva Gabriel para passear com o triciclo quase todos os dias. “Ele adora, se diverte e fica feliz por estar livre, fazendo algo sozinho”, diz a mãe, orgulhosa. Além do benefício emocional, o hábito de andar com o triciclo ajuda no alongamento, na força, no equilíbrio e na noção espacial.

Gabriel nasceu com prematuridade de 29 semanas e ficou internado na UTI neonatal por 46 dias (Foto: Nina Schonardie/Acervo Pessoal)

Cultura biker cresce no país

Só no Brasil existem 70 milhões de bicicletas, com um interesse crescente por esse meio de transporte. Os dados são da pesquisa “O uso de bicicletas no Brasil: Qual o melhor modelo de incentivo?”, publicada em 2015 pela Abraciclo. O estudo também mostra que o País ocupa o quinto lugar do ranking mundial em produção do veículo.

Segundo o bacharel em Administração Luiz Augusto Ritta, no artigo “Motivos de uso e não-uso de bicicletas em Porto Alegre: um estudo descritivo com estudantes da UFRGS”, 45,9% dos estudantes da universidade usam a bicicleta por lazer. Ainda segundo a pesquisa, os motivos mais apontados são a saúde e o estilo de vida de quem usa.

Participe dos pedais em Porto Alegre

Para acompanhar os próximos eventos do Pedal da Inclusão e participar do grupo, você pode conferir as datas e locais na página do Facebook e no site. No portal da ACERGS também é possível conhecer os projetos e eventos da associação.

Não há custo para participar dos passeios. O único recurso arrecadado pelas instituições que promovem os pedais é o plástico, principalmente tampinhas, que são recolhidas em diversos pontos de Porto Alegre.

Se você quer ser um pedaleiro independente e conduzir pessoas com deficiência, uma boa dica é conferir o Mapa Cicloviário de Porto Alegre. Ele indica quais são os melhores locais para andar de bicicleta, para que o pedaleiro e a “carona” possam estar mais confortáveis e seguros.

Os passeios do Pedal da Inclusão são abertos ao público, basta levar uma bicicleta ou usar uma de serviços compartilhados, como Yellow e Itaú (Foto: Gabriela Stähler/Beta Redação)

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