OPINIÃO: Pelo direito ao pão mas, também, à poesia

Marina Salazar
Redação Beta
Published in
5 min readMar 17, 2018

36 anos depois do Festival Cio da Terra, estudantes debatem transformações da sociedade através da política e da cultura

Palco do Cio da Terra, onde Geraldo Azevedo, Sivuca, Jorge Mautner, Nei Lisboa, Ednardo, entre outros, se apresentaram. (Foto: Documentário Cio da Terra/Arquivo)

O ano era 1982 e o Brasil vivia o início do processo de transição de um período de repressão, cerceamento de liberdades e impedimento a livres expressões de pensamento, corpo e alma. A ditadura militar que assombrava o país estava, depois de quase 20 anos, sendo vencida pelo direito ao diálogo, à cultura e à organização popular e intelectual da população brasileira e principalmente da juventude que sonhava com um mundo melhor.

A reorganização de coletivos começava a aparecer sem medo. Partidos políticos, entidades estudantis e sindicais iniciavam um movimento para reafirmar que o momento era de mudança, da construção de outro modelo de sociedade.

A juventude atuante e combatente no período da ditadura perdeu militantes, amigos e familiares. Mas também ganhou coragem para se reerguer e continuar debatendo o momento político brasileiro.

A União Estadual dos Estudantes do Rio Grande do Sul (UEE-RS), única entidade de representação dos estudantes gaúchos na época, viu a necessidade de reunir a juventude para debater política, ecologia, feminismo, combate ao racismo, sexualidade e cultura independente. E nada mais atrativo do que um festival onde ao final dos debates todas e todos pudessem se expressar e ter contato com diversas manifestações artísticas.

“Planta noite e dia, dentro do teu peito, irmão, todas as verdades. Que este é o nosso jeito de vencer.” Esta frase do músico Vitor Ramil estampava o cartaz oficial do Festival Cio da Terra, que aconteceu no parque da Festa da Uva, em Caxias do Sul, de 29 a 31 de outubro de 1982.

Convivência e troca de vivências também era uma das propostas do Woodstock brasileiro, como relatou o jornalista Juarez Fonseca em matéria no jornal Zero Hora de 1 e 2 de novembro do mesmo ano.

“Cerca de 15 mil jovens, durante três dias e três noites conviveram com plena liberdade, debatendo, ouvindo músicas, assistindo peças de teatro, dançando, ou apenas circulando pelo parque e tomando sol. Muita gente diferente de todo o Rio Grande do Sul, vestindo jeans, calções, biquinis, bombachas, e no frio da noite cobrindo-se com cobertores. Também um considerável consumo de álcool. E nenhum desentendimento, nenhuma briga. Alguns bem-humorados diziam que tudo estava na perfeita paz, porque não havia policiais no parque, ninguém para vigiar ou reprimir. ”

O festival foi baseado no Encontro da Juventude Mineira, que havia reunido em torno de 500 estudantes e era uma das propostas da chapa Travessia, que concorreu à presidência da entidade estudantil gaúcha em 1981. Com a vitória da chapa, os trabalhos de organização do Cio começaram a partir da criação da comissão de Cultura da UEE que contava com núcleos em Santa Maria e Caxias do Sul.

Em entrevista ao jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, na época, um dos organizadores do festival, Tarson Nuñes contou que o evento evidenciou a força da juventude. “Os jovens mostraram que estão aqui é para firmar seu movimento, abrir espaços que precisamos dentro da sociedade. Sabemos que não vai ser nada fácil, mas a luta já começou”.

E continua!

O mês é março de 2018. O debate cultural volta a centralidade da mobilização da juventude e estudantes gaúchos na luta pela transformação da sociedade. Em tempos diferentes, mas com sentimentos semelhantes, a União Estadual dos Estudantes do Rio Grande do Sul — Dr. Juca (UEE Livre/RS) realiza o I Festival de Cultura e Arte (FUCA) — Outras Frequências, que ocorre entre 16 e 18 de março, na Casa de Cultura Mário Quintana (CCMQ) em Porto Alegre.

Apesar da diferença na estrutura dos eventos, o FUCA resgata o espírito do Cio da Terra e provoca os estudantes gaúchos a debaterem a conjuntura política atual. Na programação estão várias atrações artístico-culturais produzidas por estudantes de diversas universidades do estado.

No festival também acontecerá o debate “O papel da cultura no processo de resistência”, que conta com a participação da atriz e cineasta Petra Costa e do músico Nei Lisboa — que também se apresentou no Cio da Terra. Para Aleff Fernando, um dos coordenadores Gerais da UEE Livre e Estudante de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), é importante que nomes relevantes, que vivenciaram e resistiram aos anos de chumbo, estejam presentes.

“Nei Lisboa se apresentou no Cio da Terra, viveu aquele momento e também resistiu ao período da ditadura militar. Convidar ele para participar do FUCA é uma forma de resgatar a memória da juventude e dos estudantes gaúchos”, comenta.

Um cortejo cultural encerrará o Festival, saindo da CCMQ, passando pelas ruas da Capital até chegar no Monumento das Cuias, na Orla do Guaíba, onde encontrará o ensaio do grupo Turucutá Batucada Coletiva Independente.

A juventude historicamente esteve atuante na resistência aos processos de ruptura democrática do país, travou lutas importantes para a garantia dos direitos sociais dos trabalhadores, das mulheres, negros e negras, LGBTs e no debate educacional, através da atuação de entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e as UEEs.

A capacidade que os jovens têm de se reinventar e mudar as estruturas da sociedade é um diferencial às velhas práticas políticas e ao sistema, que diariamente mata jovens negros e negras nas periferias do país, oprime e violenta mulheres e excluí a população LGBT. A cultura somos nós e as expressões artísticas se tornam ferramentas em nossas mãos, e não é à toa que através dela a gente se movimente e ache formas humanas de sobreviver.

O FUCA também é bem vindo por ser um dos primeiros espaços dedicados à juventude e aos estudantes e que servirá para debater o momento político em que vive o Brasil. Retrocessos brutais nas políticas culturais e sociais já foram anunciados desde que Temer assumiu a presidência da República através de um golpe jurídico-parlamentar.

A democracia está sendo substituída pelo conservadorismo, privatizações dos bens nacionais e tentativas nítidas de calar quem denuncia a desigualdade social que existe em nosso país.

Em tempos diferentes, chegamos cada vez mais perto de 1964 e a nossa resistência se fortalece pois não queremos conquistar só o pão mas, também, a poesia.

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