Pequenos venezuelanos são inseridos na rede escolar

Esteio e Canoas se preparam para oferecer ensino público a 109 crianças imigrantes

Victória Lima
Redação Beta
6 min readSep 26, 2018

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Com Paula Câmara Ferreira

Arquimedes Enrique Palma Mendoza, Keila María Brito e Juan Enrique Palma Brito vieram para o Rio Grande do Sul junto de outros 664 refugiados da Venezuela (Foto: Victória Lima/Beta Redação)

Entre os dias 12 e 25 de setembro, 667 venezuelanos refugiados de seu país desembarcaram em Porto Alegre com destino às cidades de Canoas e Esteio, na Região Metropolitana. Deste número, 109 são crianças. Com a saúde debilitada e pouco conhecimento da língua portuguesa, a inserção dos pequenos na escola passa a ser um desafio para as prefeituras municipais.

Cidades vizinhas, Canoas e Esteio vivem realidades diferentes no acolhimento dos refugiados. A primeira, que recebeu 310 imigrantes da Venezuela, se depara com problemas relacionados à saúde. Já a segunda, que abrigou 211 imigrantes, iniciou nesta semana a adaptação das crianças no ensino público.

Oito crianças venezuelanas residentes em Esteio tiveram seu primeiro contato com o Centro Municipal de Educação Básica Vitorina Fabre, no dia 25 de setembro. De acordo com o secretário de educação, Marcos Dal’ Bo, os menores, acompanhados pelos pais, realizaram suas matrículas e conheceram os professores e colegas. A escola receberá crianças com idade acima de 5 anos.

Os pequenos de 4 a 5 anos serão encaminhados para o Centro Municipal de Educação Básica João XXIII. Já no Ensino Médio, as escolas ainda não foram definidas, mas os jovens serão direcionadas para a rede estadual. Segundo Dal’ Bo, as ações de acolhimento foram definidas por meio de reuniões pedagógicas entre as equipes das escolas designadas a receberem os menores. Foram denominados tradutores e pedagogos para acompanhá-los.

Em Canoas, os objetivos em relação à educação são os mesmos que em Esteio, contudo as ações mais urgentes são concernentes à saúde. A secretária de Desenvolvimento Social, Luísa Camargo, explica que a carência de alimentos, problema ocasionado pela crise econômica e política da Venezuela, resultou na expressiva baixa de imunidade dos refugiados. Com a saúde vulnerável, doenças comuns como gripe são facilmente contraídas. “Temos crianças e adultos doentes, com febre, que precisam de atendimento frequente em UPAs (Unidades de Pronto Atendimento). É um quadro bem preocupante”, afirma.

Outra adversidade encontrada para oferecer ensino adequado às crianças refugiadas da Venezuela é a linguagem. Nesse sentido, os dois municípios já estão trabalhando. Em Esteio, Dal’ Bo explica que aulas de língua portuguesa são oferecidas com o apoio de voluntários do programa Conta Comigo, da ONG Parceiros Voluntários. Nos Centros Temporários de Acolhida (CTA), de Canoas, locais onde foram abrigados os venezuelanos na cidade, também são realizados trabalhos voluntários na introdução ao português. “Nós temos algumas pessoas que falam espanhol e conseguem se comunicar com eles. Elas já estão fazendo a inserção de nível básico da nossa língua”, enfatiza Luísa.

Realidade desconhecida

O prefeito do município de Esteio, Leandro Pascoal, que esteve em Roraima para acompanhar a vinda do primeiro grupo de refugiados para Esteio, disse que constatar a situação dos venezuelanos foi um choque de realidade. “Tenho convicção de que qualquer pessoa que se deparasse com aquela realidade de perto teria uma sensibilidade ainda maior sobre esse tema e veria que, de fato, estamos lidando com uma crise humanitária”, afirma.

Em Esteio, os refugiados estão recebendo auxílio para elaborar currículos e encaminhar para agências e empresas. Para Pascoal, a prefeitura não deve fazer reserva de mercado, mas oferecer condições de todos disputarem uma vaga em pé de igualdade. “Os empreendedores que irão definir quem querem contratar”, assinala.

CTA argentino é localizado no bairro São José, em Canoas, e abriga 201 venezuelanos (Foto: Victória Lima/Beta Redação)

Antônio Brandão Donati é psicólogo e gestor do CTA argentino, no bairro São José, em Canoas. Ele conta que a rotina no Centro envolve distribuição de alimentos, atendimentos médico e acompanhamento daqueles que precisam ir a outros lugares. Todas as sextas-feiras são distribuídos mantimentos alimentícios para a semana como frutas, carnes, pães e iogurtes. Para Donati, a situação é alarmante. “É uma vulnerabilidade que não conhecemos no Brasil. Eles não têm marca de violência, mas são muito magros”, enfatiza.

Argelies Ramires, 20, é venezuelana e, há três meses, procurou refúgio no Brasil. Ela conta que em seu país não tinha acesso a alimentos e medicamentos. Como seu marido já estava aqui há um mês, a jovem, que está grávida de cinco meses, atravessou a fronteira sozinha com a filha de 4 anos no colo. Argelies está alocada no CTA argentino e lá espera para dar a luz à sua filha, que pretende batizar com nome brasileiro.

Para chegar até Canoas, Argelies percorreu um caminho difícil. Após entrar no Brasil, ficou quatro dias em Pacaraima, município de Roraima que faz fronteira com a Venezuela, para fazer os documentos de imigração. Após, foi encaminhada para barracas de abrigos na cidade de Boa Vista, também em Roraima, onde ficou por dois meses dormindo no chão e comendo comida fria e, muitas vezes, crua. “Era um lugar muito feio, via muitas coisas feias. Vendiam drogas e álcool”, relata.

Argelies Ramires, com a filha no colo, espera reconstruir sua vida no Rio Grande do Sul (Foto: Victória Lima/Beta Redação)

Em solo gaúcho junto a outros venezuelanos, ela é grata pela oportunidade de estar em Canoas, onde a situação está muito melhor, mas lamenta por sua família, que ainda está na Venezuela. “Sempre choro quando lembro deles e penso que tenho comida e acesso à saúde, e eles não.” No entanto, Argelies não perde a esperança de vê-los e trazê-los para cá. “Agora é seguir adiante, tentar se restabelecer”, confia.

Arquimedes Enrique Palma Mendoza, 35, e Keila María Brito, 45, junto com seu filho, também fazem parte do grupo recém-chegado em Canoas. Antes da crise venezuelana, eles eram proprietários de dois restaurantes e tinham um padrão de vida confortável. Mendoza conta que a ruína veio com a inflação descontrolada e os impostos. “Todo o lucro que tínhamos a inflação e os impostos comiam. Isto virou um ciclo e não tínhamos como seguir adiante. Depois de muitas tentativas de continuar sobrevivendo, desistimos”, lamenta. Keila conta que lá a alimentação está muito cara. Carne de gado e frango só podem ser compradas uma vez ao mês, em pequenos pedaços, para dividir com a família.

No quarto do abrigo, do tamanho de um JK, as famílias podem preparar suas refeições (Foto: Victória Lima/Beta Redação)

Vir para o Brasil não foi fácil. Não tinham dinheiro para chegar até a fronteira e percorreram um longo percurso caminhando. “Éramos um grupo de 11 pessoas. Todos nós machucamos os pés passando por florestas e matas”, relata Arquimedes. Ao chegar em Boa Vista, viveram quatro meses em situação precária, antes de serem transferidos para o CTA argentino. “Se for para comparar, Roraima seria o inferno e, Canoas, o paraíso”, fala Keila. Arquimedes diz ser muito grato a Deus e também a todos que tentaram os ajudar em Roraima e, agora, os acolhem em Canoas.

Quando questionados sobre a educação do menino a resposta é rápida. Ambos querem que o filho continue estudando. “Lá (na Venezuela) ele estudava em escola privada, onde recebia uniforme e materiais, mas tudo isso ficou para trás”. Ela afirma que o menino é um ótimo estudante e aguarda para conseguir inseri-lo na escola novamente.

Ações de acolhimento são resultado de esforço internacional

Para acolher os venezuelanos no Rio Grande do Sul foi necessário um trabalho conjunto entre a Organização das Nações Unidas (ONU), a Associação Antônio Vieira (ASAV) e as prefeituras municipais. O Programa Brasileiro de Reassentamento Solidário de Refugiados da ASAV é parceiro da ONU no processo que, através do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), financiou a vinda e a estadia dos imigrantes da Venezuela no território gaúcho.

A coordenadora do Programa Brasileiro de Reassentamento de Refugiados ASAV, Karin Wapechowski, esclarece o processo. “No caso de Canoas e Esteio, as prefeituras entram com todos os serviços públicos como saúde, educação, assistência social e gestão dos alojamentos. O ACNUR e a ASAV entram com os recursos, como o financiamento de aluguéis, água e luz. O Exército e Marinha fornecem a maioria dos gêneros alimentícios para que eles cozinhem nos alojamentos”.

Para atingir os objetivos de toda a movimentação ocorrida no Rio Grande do Sul, ainda haverá muitos desafios. De acordo com a assistente social Marilene Maia, a construção da rede afetiva aqui no Brasil é um deles. “É necessário um aprendizado além do cultural, mas também de políticas públicas e legislações, que são muito diferentes do país deles”. Ela defende que a imigração dos Venezuelanos possibilita aprendizados mútuos. “É necessário uma interrelação para que nós também possamos aprender com a experiência e cultura deles”, sublinha.

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