PERFIL: Uma noite de uma vida inteira

Bárbara Hoelscher teve 47% do corpo queimado pelo companheiro e hoje auxilia outras mulheres a enfrentar a violência doméstica

Carolina Zeni
Redação Beta
8 min readOct 10, 2018

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“A frase ‘eu vou mudar’ é a maior mentira que alguém pode cair”

Quando escutou as primeiras ofensas, ela mal se lembra. Tampouco quando levou os primeiros tapas, socos ou chutes. Uma rotina repulsiva, vivida no auge de sua jovialidade. No entanto, lembra-se bem daquele dia. Ou melhor, daquela noite primaveril de 2016, em Lindolfo Collor, que mudaria sua vida para sempre. Num piscar de olhos, depois de uma discussão com o ex-companheiro, teve sua boca preenchida por inseticida e o corpo tomado por álcool. “Meu Deus!”, pensou ela, não prevendo o pior. Em seguida, viu seu corpo em chamas, que, à época, feriram a pele, porém hoje, as cicatrizes do queixo aos joelhos machucam a alma. A dor tem tantas formas. Ela bem sabe disso. A tentativa de feminicídio resultou em 47% do seu corpo queimado.

Hoje, após quase dois anos da violência sofrida, Bárbara Hoelscher, 27, relembra o período mais triste da sua vida. Foi agredida física e psicologicamente por aquele que, antes de tudo, considerava “o homem que sempre quis”. Aos poucos, o relacionamento de cerca de dois anos foi ficando abusivo. “Depois das agressões, ele nunca pedia desculpas, era frio. Mas, depois, era outra pessoa, me agradava de todas as formas”, conta ela. O gosto amargo da esperança pode ser a coisa mais cruel do mundo. Não por opção, mas por perceber que aquele relacionamento nunca seria o tão esperado conto de fadas. Sua história é uma entre as mais de 140 mil registradas desde 2016 até junho deste ano no Rio Grande do Sul.

Três Bárbaras: o antes do episódio, durante o tratamento e depois. (Fotos: arquivo pessoal)

Na pele e na alma, as marcas deixadas pela violência doméstica

O caso de Bárbara foi a júri popular no dia 19 de julho deste ano, no Foro de Ivoti, e durou mais de 15 horas. O ex-companheiro da vítima, Igor Schonberger, foi condenado a 7 anos e 11 meses de reclusão em regime fechado. No entanto, menos de um mês depois de ser julgado e condenado, ele já cumpria pena em prisão domiciliar. Com isso, Bárbara se sentiu vítima duas vezes.

O júri, tanto para ela como para a família, foi muito difícil, principalmente quando, em um telão, foram mostradas fotos do seu corpo queimado. Ela precisou sair do julgamento e, aos prantos, foi abraçada pelos pais, Nédio e Roseli.

A noite vivida pela jovem foi terrível. Depois de uma discussão, o ex-companheiro foi até a lavanderia, pegou o inseticida e borrifou em sua boca. Depois, jogou outro produto químico e, em seguida, pegou álcool. “Eu sacudi (o álcool) na mão dele e perguntei: ‘o que vai fazer agora? Vai me matar?’”, conta.

Depois, Bárbara disse que Igor teria pego o fósforo. Este foi o momento que ela se virou para correr, começando a sentir o fogo pegando em suas costas. Já no chuveiro e com as chamas contidas, a vítima olhou para seu corpo, que estava todo vermelho, e a boca, coberta de bolhas. “Ele pegou uma faca, achei que ia me matar. Peguei na mão dele e pedi: ‘Igor, pelo amor de Deus, tá ardendo, me leva pro hospital. Ele começou a repetir que não, que ele ia ser preso e que a vida dele tinha acabado”, relata. Somente após a vítima ter dito que assumiria a culpa, o agressor decidiu que a levaria para o hospital.

Vida forçosamente moldada

Refém de uma realidade cruel e que resultou em marcas, no coração e na pele, Bárbara também tem seus altos e baixos. O episódio colocou a jovem na situação de que sua vida é moldada a partir daquilo, experimentando sensações de tristeza, dor, mágoa, gratidão, emoção e doação. Todos, por vezes, ao mesmo tempo. Sua vida e rotina desde o episódio mudaram. “Eu não consigo mais fazer quase nada do que gostava de fazer, tenho que me privar de muitas coisas. Uma delas é trabalhar. Sempre fui trabalhadora, gostava de ter minhas coisas e hoje não consigo mais fazer isso. Os gastos que tenho não são mais comigo, e sim por causa dos danos que uma pessoa causou em mim”, lamenta.

“Esses anos foram terríveis. Por mais que minha evolução tenha sido grande, graças a Deus, eu não precisava estar passando por isso, entende? Não tem como ser feliz por completo tendo que acordar todos os dias e lembrar do que aconteceu. Mas agradeço todos os dias, acima de tudo, por estar evoluindo.”

A cada verão, Bárbara gostava de usar roupas mais leves — preferência que mudou por completo. “Usar manga curta e shorts eu nem sei mais o que é. Sair sem protetor ou pegar sol, nem pensar”, conta. Depois do banho, ela se vê obrigada, todos os dias, a passar cremes para as cicatrizes. Semanalmente faz acompanhamento com a equipe de estética da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), e também com a equipe de dermatologia funcional da Universidade Feevale. Mensalmente consulta com a cirurgiã no Hospital Cristo Redentor, onde continua no aguardo das cirurgias pelo SUS. Até o momento, se submeteu a quatro enxertos de pele — na virilha, nos braços, em parte do peito e nas costas. Também passou pelo procedimento chamado expansor de pele e, precisou de outra intervenção cirúrgica para tirar parte de uma cicatriz no peito.

Os gastos são incalculáveis. “Para ter noção, a cada três meses gastei quase 12 mil reais em pomada para cicatrizes”, conta. Bárbara também faz acompanhamento com psicóloga e psiquiatra. Como mulher, por vezes, se sente ‘despedaçada por dentro’. “A minha autoestima, com certeza, está melhor sim, mas ainda tenho muito o que melhorar e aceitar”, reconhece.

O que fica de lição

Hoje, Bárbara é outra pessoa — mas ainda sofre muito. O sorriso tímido volta aos poucos a ser a protagonista de uma vida inteiramente nova, ainda repleta dúvidas, mas também de sonhos. Ela acredita que, por trás de tudo, existe um propósito. “Ainda não descobri o meu, mas tenho certeza que por nada eu não sofreria e passaria pelo o que eu passei”, diz. Hoje, se sente realizada em ter descoberto uma força que jamais pensaria ter.

Nascida no dia 12 de agosto de 1991, ela sempre morou em Novo Hamburgo, com os pais, exceto nos meses — de março até o dia fatídico — vividos na cidade de Lindolfo Collor. Em 13 de janeiro deste ano, ela se formou em Administração, pela Unisinos. Viveu este marco importante com amigos e familiares que foram — e ainda são — o seu porto seguro. “A formatura foi o dia mais feliz da minha vida depois dessa desgraça. Um sonho”, sintetiza.

Atualmente, Bárbara trabalha vendendo lingeries. É microempreendedora individual (MEI) e se mantém dessa forma. Voltar a trabalhar, de fato, com carteira assinada, está difícil, muito em função do seu tratamento. Já esteve em diversas entrevistas de emprego, mas é difícil encontrar empregadores que entendam e a liberem nos dias e horários que necessita. Batalhadora, Bárbara iniciou, em setembro desse ano, sua pós-graduação. “Meu intuito é carregar meu currículo para voltar com tudo ao mercado quando eu puder”, reforça.

Formatura, em janeiro deste ano, em Administração. Bárbara e quem chama de porto seguro: seus pais. (Fotos: arquivo pessoal)

“A frase ‘eu vou mudar’ é a maior mentira que alguém pode cair”, aponta Bárbara, sobre as lições tiradas dessa batalha travada desde 2016. Ela se refere ao que muitas mulheres escutam quando sofrem violência doméstica. Ainda assim, aprendeu ter amor próprio antes de tudo e pretende fazer tudo o que puder para tirar as marcas de sua pele, que não só a incomodam fisicamente, como psicologicamente.

Bárbara chegou a criar uma vakinha para seu tratamento e sempre aparecem pessoas que perguntam se ela precisa de algo. “Recebi muito apoio. Muito mesmo. Pessoas de todos os lugares enviaram medicamentos, ajudaram na venda e compra das rifas que fizemos, ajudaram na vakinha, fizeram depósitos e até mesmo enviaram mensagens de fortalecimento e carinho”, conta.

“Vocês não imaginam o quanto isso me ajudou, não apenas financeiramente com meu tratamento, mas principalmente psicologicamente. Após ter sofrido um grande trauma, eu percebi que, sim, que posso continuar acreditando nas pessoas. Senti que sou especial, e receber tanto carinho me fez criar forças pra me reerguer e mostrar pra todo mundo que eu era capaz de retribuir dando a volta por cima.”

Bárbara com a delegada Raquel Peixoto. (Foto: arquivo pessoal)

Uma das boas amizades que o péssimo acontecimento trouxe para pertinho de Bárbara foi a da titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), de Novo Hamburgo, Raquel Peixoto.

Sem hesitar, a delegada não mede elogios para a hamburguense. Dos adjetivos, o que ganha a maioria de suas frases é guerreira. Não é pra menos. A delegada Raquel acompanhou, desde quando Bárbara saiu do hospital, o seu processo de recuperação. No meio do caminho, se descobriu uma grande fã. “Com tudo o que ela passou, vejo que ela cresceu muito. Eu digo a ela: guria, eu sou tua fã. Ela passou por tudo aquilo e hoje está aí, disposta a viver, mesmo tendo passado por uma série de abalos psíquicos e físicos. É uma vencedora”, sublinha Raquel.

Um grupo de coragem

Bárbara criou um grupo de WhatsApp no qual mulheres vítimas de violência buscam apoio. Um dos assuntos frequentes é o medo de denunciar. A advogada Caterine Rosa, que integra o grupo, auxilia da melhor maneira possível. “Eu falo por mim, que vivi uma injustiça sem tamanho. Posso ouvir e tentar ajudar e é esse é meu intuito com o grupo”, conta Bárbara.

De um lugar que não sabe dizer, Bárbara tirou uma força que nem sabia que tinha. Ao tentar auxiliar mulheres que sofrem com a violência doméstica, ela vive, novamente, junto com todas elas, a dura realidade de chutes, arranhões, socos e ofensas verbais. Sempre que lembra do que passou, ela para, pensa, reflete. E então chora.

Embora a voz engasgada e os olhos marejados pela dor ainda sejam presentes, o sorriso tímido, aos poucos, vai aparecendo. Os dias, para ela, às vezes arrastados, outros, derradeiros, mostram que só o tempo pode fazer com que volte a reencontrar seu antigo eu.

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