Por amor ao esporte

Em tempos de pandemia, paratletas de corrida sobre cadeira de rodas se reinventam para manter a preparação

Murilo Dannenberg
Redação Beta
9 min readAug 31, 2020

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Bruna e Vanessa sentem na pele a realidade esportiva do Brasil e simbolizam trajetória esportiva que é regra no país (Foto: Arquivo pessoal)

No Brasil, com exceção de profissionais reconhecidos e midiáticos de modalidades esportivas como o futebol e o surfe, a realidade dos atletas é de poucos recursos, escassos espaços na mídia e muito trabalho. Estas características são ainda mais recorrentes no cenário do paratletismo nacional.

Nesse contexto, a Beta Redação conversou com duas paratletas das corridas em cadeira de rodas: a tricampeã da São Silvestre, Vanessa Cristina, paulista de 30 anos e que há quatro treina com foco nas Paraolimpíadas de Tóquio; e a jovem atleta gaúcha, Bruna Giacomin, de 19 anos, que desde 2015 treina e compete nas pistas.

Dentro das suas realidades, ambas dividem o esporte com outras preocupações e buscam alternativas diante da falta de incentivos para a prática esportiva.

Vanessa conta como começou sua relação com a corrida sobre cadeira de rodas e o interesse pelo esporte. (Vídeo: Beta Redação/Murilo como Dannenberg)

Um novo propósito através do esporte

As histórias de Bruna e Vanessa, apesar de distantes geograficamente, têm um ponto em comum: o amor pelo esporte. Elas iniciaram praticamente juntas, em 2015, a treinar na corrida em cadeira de rodas, quando encontraram na pista uma fonte de sonhos e objetivos. Contudo, as razões que as levaram a competir são diferentes.

Em 2014, aos 24 anos, Vanessa sofreu um acidente de moto e precisou amputar a perna esquerda, considerando que se a cirurgia não fosse realizada poderia sofrer outras complicações mais graves. Ao aceitar, mesmo que resistente, sua nova condição física, ela iniciava um período de autoconhecimento e de busca por propósitos.

O encontro com o esporte foi inesperado para Vanessa. Oito meses após o acidente, já usando uma prótese, ela foi abordada pelo professor Waldomiro Correa Júnior. Até então um estranho, Waldomiro chegou em uma moto, lembrando o veículo que ocasionara o acidente, na parada de ônibus em que ela estava e perguntou se tinha interesse em conhecer o projeto no qual dava aulas. O Fast Wheels Kids, vinculado à Equipe Fast Wheels, era apresentado à Vanessa como porta de entrada no esporte.

No início os treinos foram direcionados a modalidades tradicionais do atletismo, como os arremessos e os lançamentos de peso. Contudo, no projeto conheceu o professor Eduardo Leonel, que viria a se tornar seu técnico depois de identificar em Vanessa uma atleta com força e excelente coordenação nos braços.

Vanessa conta que sua relação com a cadeira de corrida começou com um sentimento de estranhamento. “Qualquer inclinação do tronco e a cadeira já empina”, explica. Os equipamentos desenvolvidos para as corridas possuem desenho bastante diferente das tradicionais e conhecidas cadeiras de rodas. Produzidas com materiais mais leves e linhas aerodinâmicas, os aparelhos são sensíveis aos movimentos dos atletas. Mas, desde que decidiu abraçar o esporte, Vanessa treina e compete na categoria T54.

Já Bruna Giacomin, aos 14 anos, foi incentivada pela mãe, Simone Andeglieri, a buscar uma atividade paralela aos estudos. A gaúcha nasceu com mielomeningocele, e não tem sensibilidade nas pernas. Não por isso deixou de gostar de esportes, sendo convidada a conhecer o projeto da RS Paradesporto, associação gaúcha com trabalho focado nos esportes para Pessoas com Deficiências (PCDs). Lá, a jovem encontrou espaço para treinar com equipamentos desenvolvidos para finalidades esportivas e se apaixonou pela modalidade.

Por suas características e grau de mobilidade, Bruna se enquadra na categoria T53, que tem menor alcance de movimentos em comparação à T54. Cada categoria exige um equipamento especializado, desenvolvido com ligas metálicas leves e fibras.

Nas competições de alto nível, as atletas utilizam cadeiras feitas sob medida para disputar as provas. O encaixe entre corpo e equipamento é parte fundamental do desempenho e da segurança da paratleta durante a corrida. Detalhes esses que fazem das cadeiras peças de difícil acesso. Bruna, por exemplo, utiliza equipamentos disponibilizados pela RS Paradesporto e que não foram fabricados sob medida para ela. Durante o período de pandemia da Covid-19 ela sequer tem acesso a cadeira para treinos.

Eixos de aço

Bruna é a única paratleta gaúcha a treinar na categoria T53, e não tem acesso a equipamentos sob medida. (Foto: Arquivo pessoal)

Pouco tempo depois de começarem a treinar, o sentimento de competitividade foi crescendo nas atletas. Desde 2015, Bruna vem se destacando nas Paraolimpíadas Escolares do Brasil e também nos circuitos das Loterias Caixa. Ela conquistou o primeiro lugar nos 100m na categoria T53 das Paraolímpiadas Escolares de 2015, 2016 e 2018.

Além disso, Bruna ganhou três medalhas de ouro no Circuito Regional Sul das Loterias Caixa, nas competições dos últimos três anos.

Esta competição, aliás, continua sendo o foco da jovem atleta. Contudo, o calendário de provas e a preparação foram completamente modificados devido à pandemia. Sem data prevista para as corridas, ela se esforça para manter o condicionamento.

Para Vanessa, o sonho de competir profissionalmente passou a fazer parte da sua vida nas Paraolimpíadas de 2016. Desde então, ela começou a treinar com o propósito de se qualificar para a competição que estava marcada para o segundo semestre deste ano. Contudo, o Comitê Olímpico Internacional adiou o evento para 2021, mesma data das Olimpíadas.

Vanessa e Leonel celebram o tricampeonato da São Silvestre, em 2019. (Foto: Arquivo pessoal)

Apesar da necessidade de adiar os sonhos marcados para 2020, as atletas já celebraram diversas conquistas. Desde 2017, Vanessa é a vencedora da clássica Maratona de São Silvestre, disputada em São Paulo. Os três títulos consecutivos foram frutos do trabalho diário, com duas sessões de treino — uma pela manhã e outra à tarde — buscando o fortalecimento muscular e o aprimoramento da técnica sobre a cadeira.

“Eu treinei muito a subida da Pinheiros”, releva a vencedora. O trecho é um dos mais difíceis do percurso e é o ponto forte da paratleta. “Eu vim muito bem para a subida e despachei as demais atletas”, explica. A tática deu resultado nos últimos três anos e a projetava como uma das favoritas para 2020, até a notícia do adiamento da competição.

Conforme o treinador, a pandemia não está impedindo a preparação de Vanessa. “Apesar da pandemia, nós não perdemos um minuto de treino”, destaca Eduardo, ao revelar que foi preciso adaptar uma academia na casa da atleta.

O treinamento de rua é realizado nas primeiras horas da manhã, entre 4h e 5h, junto com um grupo de ciclistas. “Eles me dão maior segurança”, explica. Apesar do horário atípico, os companheiros de treino fornecem proteção no trânsito de São Paulo. Treinar em grupos é uma forma de aumentar a sinalização e evitar acidentes com motoristas desatentos.

“Ela segue treinamento da mesma forma que vinha antes da pandemia”, complementa o técnico. O único dia de descanso, para recuperação muscular, é o domingo.

Conquistando o mundo

Vanessa celebra o bicampeonato na maratona de Los Angeles (Crédito: Arquivo pessoal)

A partir de 2018, as competições nacionais já não eram o suficiente para a filha da dona Sebastiana, que sozinha criou a Vanessa e seus três irmãos. Com o mesmo espírito obstinado da mãe, ela partiu para Lisboa, onde, naquele ano, venceu sua primeira prova internacional.

Também conquistou a América ao vencer a Maratona de Los Angeles. Tem ainda o melhor tempo, entre homens e mulheres, na Maratona de Nova Iorque e também é a atual vencedora da Maratona de Sevilha, na Espanha. Título vencido em fevereiro deste ano e que lhe garantiu o prêmio de Atleta do Mês de Fevereiro do Comitê Paralímpico das Américas. Seu desempenho também a levou para provas na Ásia, como a Maratona de Dubai. Na terra dos sheiks a paulista filha de baianos subiu ao pódio com a segunda colocação na corrida.

O trabalho árduo lhe garantiu melhores condições para se dedicar mais ao esporte. Vanessa é beneficiária do Bolsa Atleta e tem acesso a um patrocínio do Laboratório Cellula Mater, além de conta com profissionais que não cobram para realizar seu acompanhamento nutricional, fisioterapêutico e massoterapêutico.

Sacrifícios pessoais e trabalho árduo

Os desafios das paratletas estão além da escassez de patrocínios e da dificuldade de conseguir auxílios governamentais. Vanessa, por exemplo, para competir e ascender profissionalmente teve que fazer escolhas sobre quais sonhos iria priorizar. O da casa própria ou das realizações esportivas. Apaixonada pelo esporte, resgatou o dinheiro que havia economizado para a entrada na futura residência, somou com as participações levantadas através de uma vaquinha virtual e comprou a própria cadeira de rodas, que usa há mais de três anos.

Além disso, a sua dedicação exclusiva ao esporte pode não estar garantida. “Estou afastada pelo INSS (trabalhava como garçonete antes do acidente), mas acho que daqui uns dias vão me mandar trabalhar de novo, pois estou em reabilitação”, revela, ainda que seu foco sejam as corridas. A suspensão do benefício do INSS representa um corte no orçamento de Vanessa e pode obrigá-la a buscar atividades paralelas aos treinos, o que pode representar prejuízos ao seu desempenho esportivo. Por isso, ela conta que está buscando mais patrocínios para manter o foco com mais tranquilidade.

Já Bruna se depara com barreiras ainda maiores. Por ainda não possuir um equipamento ajustado, ela utiliza a própria cadeira para manter o corpo adaptado aos movimentos do treino e se prepara fisicamente nas ruas próximas de sua casa, enquanto os treinamentos de força são realizados, principalmente, dentro da própria casa.

Bruna treina em casa para manter a preparação física, visando a normalização das atividades de treino. (Foto: Arquivo pessoal)

A jovem, atualmente, conta com o auxílio de custos de R$ 925, provenientes da Bolsa Nacional. O valor garante acesso a itens básicos do dia a dia, mas não é suficiente para o investimento em equipamentos ou uma cadeira apropriada. “Elas são muito caras. No Brasil só há uma pessoa que faz (os modelos são produzidos sob medida) e custa entre 10 mil e 12 mil”, explica.

Espaço negado

Vanessa conta que um dos acontecimentos que melhor ilustra a falta de visibilidade do paratletismo aconteceu na Maratona do Rio, em 2017. Em determinado trecho do percurso, os atletas quenianos, reconhecidos pelo desempenho nas maratonas, e os paratletas brasileiros, ocupavam a mesma posição. Segundo ela, a equipe de transmissão da corrida e fazia a captação das imagens, pediu para que ela e os demais paratletas se deslocassem para que não aparecessem na filmagem.

“Por que eu tenho que sair para o lado se eu sou uma atleta que treinou o ano todo para estar aqui?”, Vanessa Cristina

Apesar do episódio representar o que há de mais triste em relação à cobertura das competições paralímpicas, Vanessa recorda também com certa dose de humor. “Um dos meus amigos jogou a cadeira em cima das maratonistas quenianas que estavam sendo filmadas e deu ‘tchauzinho’ para a câmera”, ri ao lembrar. Ela vê o ato como um protesto ao desrespeito aos competidores cadeirantes.

Essa realidade de exclusão também é vivida por Bruna. Segundo ela, não há outra atleta no Rio Grande do Sul com perfil semelhante ao seu e que compita na sua categoria. Mesmo assim ela não conta com nenhum tipo de apoio de terceiros. Bruna não tem acesso a patrocínios ou serviços específicos que lhe auxiliam na sua preparação. Com exceção à cadeira de corrida, disponibilizada pela RS Paradesporto, ela conta apenas com acompanhamento nutricional, mas cujo investimento sai do seu próprio bolso.

“Os principais problemas (que os paratletas enfrentam) são a falta de equipamento, de profissionais e de reconhecimento”, Bruna Giacomin.

Sonhos

Ambas as atletas são movidas por sonhos. Para Bruna, a expectativa é conseguir iniciar o curso de Educação Física na UFRGS e continuar seu desenvolvimento como atleta. Ainda sem expectativas de prazo para conseguir seu próprio equipamento, a estudante tem como principal objetivo a preparação para competições regionais e a manutenção do condicionamento físico. Ela também tem um sonho bem específico. “Gostaria de correr a Maratona de Oita, no Japão”, que integra o circuito tradicional do paraatletismo.

Bruna representando o estado nas Paraolímpiadas Escolares de 2018, no Centro de Treinamento Paralímpico Brasileiro, em SP (Foto: Arquivo pessoal)

Vanessa, por sua vez, está focada na preparação para Tóquio. Ainda que adiado, o sonho é o que move a paulistana. Com o calendário prevendo a competição em agosto de 2021, ela só pensa na qualificação. “Em Sevilha, fiquei a 37 segundos do índice A (classificação para a equipe Paralímpica do Brasil)”, destacou. Vanessa também espera realizar o sonho que competir na tradicional Maratona de Chicago.

Por fim, Vanessa, atleta que atualmente ocupa a 7ª posição no ranking mundial, deixa uma mensagem para todos os atletas e aspirantes que desejam fazer da paixão esportiva o motor de suas vidas.

É realmente não desistir dos seus sonhos. Você tem que ter persistência, determinação, foco, realmente procurar ser focado naquilo que você quer. Eu nunca me imaginei saindo da Bahia. A Bahia era o único lugar que eu conhecia, fora São Paulo. Nunca me imaginei viajando para fora e hoje eu conheço sete países. Lutar sempre com foco e determinação, porque os seus sonhos podem ser realizados. Obstáculos todo mundo tem, mas a gente pode ir quebrando aos poucos.

Confira a íntegra da conversa com a tricampeã da São Silvestre, Vanessa Cristina:

Saiba todos os detalhes sobre a preparação e os desafios da paratleta brasileira. (Crédito: Beta Redação/Murilo Dannenberg)

Veja a primeira parte da conversa com paratleta gaúcha, Bruna Giacomin:

Para conferir a conversa completa, confira a playlist especial montada no YouTube. (Crédito: Beta Redação/Murilo Dannenberg)

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Murilo Dannenberg
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Jornalista. Curioso sobre como as coisas funcionam, com ideias de porque vemos o mundo tal como o percebemos e o que o futuro nos reserva.