Por que o “presidencialismo de coalizão” conduz a política nacional

Com mais de 30 partidos registrados no TSE, é impossível governar no Brasil sem acordos partidários, mesmo que às vezes eles não durem até o fim do mandato

Cristina Bieger
Redação Beta
7 min readJun 9, 2022

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As coligações podem ajudar ou “atrapalhar” a forma de governar do presidente eleito (Foto: Ana Volpe/Agência Senado/Flickr)

A Constituição de 1988 marcou o início do período democrático brasileiro, conhecido como Nova República. Através dela, grandes avanços sociais foram possíveis, como o reconhecimento das culturas indígena e afro-brasileira como partes da cultura nacional e o direito à liberdade de imprensa. Outra mudança adotada por ela foi um novo regime político, o “presidencialismo de coalizão”.

Esse novo sistema político reúne duas características principais e interligadas. A primeira é o fato de ele mesclar traços do sistema parlamentarista com o presidencialista, principalmente no que se refere à aprovação de proposições legislativas de iniciativa do Poder Executivo.

A segunda é o fato de os governos não serem unipartidários, e sim, montados por vários partidos que dividem entre si a tarefa de governar, mas que podem a qualquer momento se retirar do governo.

Enquanto alguns especialistas políticos defendem o presidencialismo de coalizão como o fator que garantiu o funcionamento do processo decisório do Estado brasileiro nas últimas três décadas e como antídoto das crises, outros o veem como um sistema político que coloca em risco a governabilidade. Entretanto, todos os sistemas de governo possuem falhas estruturais.

O presidencialismo é um sistema de governo onde não existe diferença entre chefe de governo e chefe de Estado, as duas funções ficam concentradas na figura do presidente. Ele se diferencia do parlamentarismo, que divide o comando em duas pessoas: o primeiro-ministro e o presidente (ou monarca). Diferentemente do parlamentarismo, onde a escolha do chefe de governo é dos parlamentares, o presidente é escolhido diretamente pelo povo.

Com a aproximação das eleições, é natural que o brasileiro foque sua atenção majoritariamente à escolha do novo presidente ou governador. Porém, nesse cenário, é importante entender o funcionamento das coalizões e, mais ainda, a importância do voto para deputado e senador, que irão compor o parlamento. Afinal, serão eles que de fato representarão o povo e podem ajudar ou não o presidente eleito a governar.

É possível governar sem coalizão?

Uma coligação partidária, ou coalizão política, é um acordo firmado entre dois ou mais partidos políticos, normalmente que compartilham a mesma ideia, para que juntos apoiem um candidato e governem o país. Essas coligações podem ser formadas no período pré-eleitoral, envolvendo compromissos bem claros, inclusive a elaboração do plano de governo, ou podem ser organizadas após o resultado da eleição.

Para os especialistas Bruno Lima Rocha Beaklini, doutor em Ciência Política, e Sirlei Teresinha Gedoz, doutora em História, não existe hoje para o Brasil outra forma de governo que não a do presidencialismo de coalizão. Bruno ressalta que é muito difícil governar sem a maioria, mas que, ao mesmo tempo, não se trata de um mecanismo de governo como o parlamentarismo, onde é possível derrubar um governo com alguns procedimentos parlamentares para então serem convocadas novas eleições.

“Tem gente que afirma: ‘Ah, se fôssemos um sistema parlamentarista não haveria impeachment’. Não, mas poderia ter um governo a cada seis meses. Então, é mais traumático um impeachment do que uma derrubada de gabinete? Com certeza, mas como vai fazer um parlamentarismo brasileiro com 30 partidos ou com 50 legendas com registro no TSE? É impossível”, destaca Bruno.

Sirlei comenta também que devido à grande quantidade de partidos e um sistema político muito fluido é impossível governar sem coalizão. “O que poderia acontecer de pior hoje no Brasil seria um sistema parlamentarista, porque ele vai ser o inverso do que a gente pensa”, alerta.

Bruno diz que sem coligações políticas ou a formação de maioria no Congresso é impossível governar, e esse é o problema, pois isso se torna uma imposição a qualquer presidente eleito. “Sem coalizão de governo, ninguém governa. A não ser que seja um governo que queira realmente criar uma ruptura na sociedade, como é o caso de Bolsonaro, que quer fazer uma ruptura pela extrema direita”, completa.

Sérgio Abranches, responsável por cunhar o termo presidencialismo de coalizão, ao produzir um balanço sobre o regime de governo, afirma no livro Presidencialismo de Coalizão — Raízes e evolução do modelo político brasileiro que “a coalizão multipartidária é um requisito imprescindível da governabilidade no modelo brasileiro. Nem todos os regimes presidenciais multipartidários dependem tanto de uma coalizão majoritária. No Brasil, as coalizões não são eventuais, são imperativas. Nenhum presidente governou sem o apoio e o respeito de uma coalizão. É um traço permanente de nossas versões do presidencialismo de coalizão”.

Desse modo, seria ingênuo pensar que apenas substituir o sistema de governo atual iria resolver os problemas estruturais brasileiros.

O voto parlamentar

Sirlei explica a importância do cuidado com o voto para o parlamento, pois são eles, os eleitos, que representarão o povo. “Quem representa a democracia não é o presidente eleito, é o parlamento eleito.” Desse modo, sendo um governo de coalizão, é de suma importância que a escolha pelo candidato ao parlamento e o candidato à presidência estejam em sintonia e possuam os mesmos interesses, para que a engrenagem funcione.

“É de suma importância que se eleja um parlamento democrático, que tenha relação forte com a representação étnico-cultural, racial do país, é fundamental isso. Que se eleja um parlamento que tenha uma ideia de nação mais igualitária, mais equitativa, que seja plural”, complementa.

O voto é democrático, e a forma de começarmos a mudança (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado/Flickr)

Desse modo, o voto parlamentar deve ser valorizado e bem analisado, não apenas utilizado como forma de protesto ou descontentamento político. O não reconhecimento da importância do voto para o Legislativo é um dos motivos do atraso e da crise que o Brasil vem enfrentando.

Instabilidades

Desde a Constituição de 1988 alguns estudiosos avaliam o presidencialismo de coalizão como instável e propulsor de crises políticas, entre eles, Sérgio Abranches, que já o definiu como “um sistema caracterizado pela instabilidade, de alto risco, e cuja sustentação baseia-se, quase exclusivamente, no desempenho corrente do governo”.

Para o autor, seriam justamente a junção de diversas opiniões e ideologias que participam do processo decisório e a dificuldade em se manter sólidas as coalizões formadas os motivos para as instabilidades políticas e institucionais. Tais consequências, entretanto, podem ser ainda piores se atingirem diretamente a Presidência da República. Para Abranches, a “ruptura da aliança, no presidencialismo de coalizão, desestabiliza a própria autoridade presidencial”.

Entretanto, para Sirlei, o país está passando por momentos de instabilidade política, e não apenas pela forma de governo ser pela coalizão. “A sociedade brasileira e o mundo estão se movendo para uma nova reorganização mundial. É um novo ciclo de acumulação capitalista, e que cria instabilidades políticas”, define Sirlei.

Segundo ela, o que pode levar o Brasil a melhorar é “nossa militância política, por uma sociedade mais unânime e mais justa”. “Os jovens têm que entrar na política”, ressalta. Por fim, é importante destacar que não existe um sistema político que seja ideal, o que fará a diferença será a organização da sociedade civil e a garantia da democracia como sistema social, onde se faça, de fato, a busca por igualdade.

E na crise, quem fica no barco?

A denúncia por crime de responsabilidade contra a então presidente Dilma Rousseff (PT) não foi o que efetivamente gerou seu impeachment. Agosto de 2016 marca o fim do processo que resultou na cassação do mandato de Dilma, a primeira presidente mulher eleita por voto direto no país.

Dilma Vana Rousseff foi a 36ª presidente da República Federativa do Brasil. Foi a primeira mulher a ocupar a Presidência do Brasil e a terceira chefe de Estado do país (Imagem: Roberto Stuckert Filho/PR/Ministério das Relações Exteriores/Flickr)

O cientista político Bruno Lima Rocha confirma que o que presenciamos em 2016 foi um golpe parlamentarista. “A presidenta Dilma recebeu um voto de desconfiança e sua base ruiu”, afirma. De acordo com ele, para que haja impeachment é necessária uma causa jurídica, o que não havia nesse caso. Então, o que vimos foi um voto de desconfiança da Câmara e do Senado. “Das seis causas originais do pedido, quatro caíram no meio do caminho e duas não se comprovaram”, completa.

“Aquela foi uma manobra parlamentarista, uma manobra ilegal, um golpe jurídico-parlamentar”, explica Bruno.

Para Sirlei, a presidente Dilma sofreu traição. “Quem foi o vice dela? O Temer. O MDB nunca elegeu um presidente da República, as vezes que ele chegou à presidência nunca foi de forma direta”, ressalta.

Sobre a falta de apoio que Dilma teve de sua coligação eleitoral durante o processo, Sirlei comenta que “quando um governo entra em crise, a tendência é que os ratos abandonem o navio, como se costuma dizer”.

Sem Dilma no poder, abriu-se caminho para a implantação de uma série de medidas que foram o pontapé para o agravamento da crise econômica brasileira. A primeira foi a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (EC) 95/2019, congelando os investimentos nas áreas da saúde e educação por 20 anos. A Petrobrás passou a calcular o preço dos combustíveis com base no mercado internacional e repassar aumentos com maior frequência aos consumidores.

Essa foi a implementação do chamado Preço de Paridade de Importação (PPI). Do mesmo modo, mudanças trabalhistas como a terceirização irrestrita e o chamado trabalho intermitente só vieram a piorar a situação e a renda dos brasileiros.

A especialista explica que dificilmente as coligações pré-eleitorais ou as coalizões formadas após a eleição se mantêm unidas até o fim do mandato. Isso porque a cada dois temos um calendário eleitoral, seja com eleições municipais, seja com estaduais e presidencial, que gera uma movimentação de interesses. Os partidos passam a focar e construir suas alianças, dialogando com outros partidos. “Geralmente, tanto a coligação quanto a coalizão não chegam ao fim do governo com a mesma vitalidade que começaram”, finaliza Sirlei.

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