Precisamos falar sobre pobreza menstrual
Quatro milhões de mulheres em idade escolar não possuem condições mínimas de dignidade menstrual. Projeto de lei federal busca atenuar o problema para 5,6 milhões de brasileiras
O que pode ser considerado rotina para a grande maioria das mulheres no País, torna-se um verdadeiro pesadelo para mais de 4 milhões de brasileiras que frequentam escolas, menstruam todos os meses e que não possuem itens básicos de cuidados. O dado é ainda mais alarmante quando olhado de perto: 713 mil mulheres sequer têm acesso a banheiro ou chuveiro em suas casas.
Para grande parte dessa população, é hábito mensal ir ao supermercado ou às farmácias e comprar absorventes, protetores diários e demais itens necessários para passar pelo ciclo menstrual. Contudo, essa não é a realidade de muitas outras mulheres, que precisam improvisar com outros materiais para conseguir conter o fluxo menstrual.
A chamada pobreza menstrual se refere às dificuldades em obter itens de higiene pessoal e a falta de condições sanitárias básicas no dia a dia. Os dados citados fazem parte do relatório Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdades e violações, disponibilizado em 2021 pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
Para amenizar todos esses impactos nas vidas das mulheres brasileiras, a deputada federal Marília Arraes (PT/PE) apresentou o projeto de lei nº 4968/2019, que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual nas escolas públicas nos anos finais de Ensino Fundamental e no Ensino Médio.
Aprovada na Câmara e no Senado, a proposta vai à sanção presidencial e, caso isso ocorra, 5,6 milhões de mulheres devem ser beneficiadas pelo texto, como estudantes de baixa renda, mulheres em situação de rua ou de vulnerabilidade social extrema, mulheres presidiárias e as adolescentes internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.
Falta de gestores mulheres afeta a implantação de políticas públicas
De acordo com a deputada Marília Arraes, demorou-se para tratar essa questão no país por muito tabu que há sobre o assunto, gerando dificuldades de criar políticas públicas efetivas. “Esse não era um tema tratado no Brasil, mas em outros lugares do mundo a gente via que o debate estava acontecendo”, afirma.
Marília também ressalta que outros países vinham fazendo pesquisas em relação a isso, infelizmente, de maneira muito tardia, pois é um problema que atinge mulheres há muitos anos. “Provavelmente, se o nosso sistema de execução dessas leis fosse comandado por mulheres, e não por homens, isso seria um assunto já resolvido, não precisava nem a gente estar debatendo e estar lutando para aprovar”, comenta.
Ainda sobre o tabu, a parlamentar conta que, até mesmo na hora de apresentar o projeto na Câmara, houve um constrangimento com a questão da pobreza menstrual. “Aqui no Brasil é um tabu muito grande. Quando a gente teve essa discussão na Câmara, por exemplo, vários deputados na hora de falar as palavras menstruação, ciclo menstrual e absorvente, se sentiam constrangidos”, relata.
Segundo a deputada, quando o projeto foi protocolado, houve uma ridicularização até mesmo nas redes sociais. Marília Arraes lembra que muita gente colocou apelidos pejorativos no projeto, mas diz que o problema foi enfrentado com tranquilidade. “Sabemos que isso é natural, quando a gente vai romper paradigmas e tentar provocar uma mudança cultural, passar por esse tipo de situação. Mas conseguimos elevar o debate para um nível de conscientização importante”, destaca.
A parlamentar classifica o projeto como um primeiro passo para minimizar as desigualdades sociais e de gênero que afetam a nossa sociedade. E também objetiva levar mais dignidade para a vida das mulheres, muito além da saúde. Conforme a deputada, o fato está ligado diretamente à educação, porque uma a cada quatro meninas de escolas públicas já faltaram à aula por não ter acesso aos itens de higiene durante o período menstrual.
“É um problema da educação sim, mas é essencialmente de saúde pública e que tem que ter todas as mulheres sendo atendidas”, explica.
Ensinar e prevenir para proteger as mulheres
Para ela, é importante educar as meninas e as mulheres para que entendam que este é um processo natural. “É extremamente necessário ensinar sobre o próprio corpo e isso protege as crianças inclusive de abuso, quando você ensina desde muito cedo o que é cada parte do corpo, como funciona, quem pode tocar, quem não pode, tudo isso é educação sexual”, salienta.
Inicialmente, o projeto visava atender todas as mulheres, tendo um custo anual de aproximadamente R$ 1 bilhão. Com a reação contrária do governo, a proposta foi mudando e direcionando-se para um público específico: as estudantes. Segundo Marília, a distribuição seria para todas as estudantes e geraria um custo de mais ou menos R$ 350 milhões por ano. Entretanto, a proposta teve de ser, outra vez, modificada.
Não foi possível universalizar o acesso das estudantes aos absorventes com essa política pública. O projeto acabou contemplando as estudantes inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), em situação de maior vulnerabilidade social, mulheres encarceradas, meninas em cumprimento de medida socioeducativa e mulheres em situação de rua.
“É importante dizer que é um passo, porque a gente precisa conseguir alcançar a universalização dessa política pública e também fazer com que as mulheres entendam o seu próprio corpo, aceitem as suas naturezas e suas fisiologias”, complementa a deputada.
Além do acesso aos itens, Marília Arraes enfatiza que este projeto significa mais uma conquista importante para a vida de muitas meninas e mulheres brasileiras. “Nunca uma conquista da mulher é definitiva. Sempre que tiver uma crise política, econômica ou religiosa vão questionar de alguma maneira algum ou vários direitos das mulheres. Isso Simone de Beauvoir já dizia há muitos anos. Então, é uma luta permanente, e eu espero que esse passo, esse projeto, possa garantir que mais adiante meninas e mulheres vivam em um mundo melhor do que o que nós estamos vivendo hoje”, salienta.
O Programa de Fornecimento de Absorventes Higiênicos irá beneficiar 5,6 milhões de mulheres e terá um investimento anual de R$ 84,5 milhões, calculado na média de oito absorventes de uso por mês. Os recursos estão vinculados ao programa de Atenção Primária à Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) e, no caso das beneficiárias presas, os recursos são do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). O projeto, agora, aguarda a sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Projetos voluntários realizam ações de arrecadação de absorventes
Nos últimos tempos, muitas ações voluntárias voltadas à distribuição de absorventes surgiram. Como é o caso do projeto Absorventes do Bem, criado por Maria Helena Sarquiz, 47 anos, de Porto Alegre. A proposta é, através de doações e correntes, auxiliar mulheres que menstruam e não têm condições de adquirir itens necessários de higiene durante o fluxo menstrual. Em quatro meses de existência, o projeto já conseguiu distribuir mais de 25 mil absorventes.
“Eu iniciei o projeto em maio de 2021, mas é uma ideia que já me acompanha desde 2018, quando eu assisti um documentário que aborda a pobreza menstrual”, lembra. Maria Helena conta que começou a divulgar o assunto e as pessoas começaram a doar itens e dinheiro. No primeiro mês, já conseguiram arrecadar 5,5 mil absorventes, que foram entregues na região das ilhas de Porto Alegre. “Nesse local há cinco mil famílias, sendo mais de duas mil mulheres. Isso foi um choque para mim porque, por mais que eu soubesse, a realidade é muito pior”, diz.
Para a criadora do projeto Absorventes do Bem, é essencial que hajam políticas públicas para combater essa realidade que acarreta muitas mulheres brasileiras.
“Demorou muito tempo para sair dados relacionados à pobreza menstrual no Brasil. Dados do Estado e dos municípios são mais difíceis ainda”, lamenta.
Ela avalia que a lei recentemente aprovada no Senado será muito importante para as mulheres brasileiras, mas até estar em vigor essas mulheres continuarão menstruando e tendo esse gasto. “Isso custa caro. Entre comprar 2 quilos de arroz ou um pacote de absorvente, elas vão sempre optar pelo alimento, né”, salienta.
Em Osório, um projeto que iniciou em sala de aula, na Unisinos, também tem feito a diferença na vida das mulheres. Idealizado pela bióloga Carine Santos, teve o incentivo do Recriando Ciclos, dos alunos da Unisinos Luan Oliveira (Jornalismo), Maria Eduarda Trevisan (Biomedicina), Nathalia Giordani (Psicologia) e Gustavo Perugorria (Engenharia de Produção), e apoio do gabinete da primeira-dama do município de Osório, Carine Azeredo.
“O objetivo era ir atrás dessa realidade da pobreza menstrual e divulgar projetos que ajudam na causa, mas a vontade era de fazer mais. Fui atrás disso na minha cidade e já havia uma campanha organizada. Então, foi uma união de esforços”, salienta Luan.
Atualmente, o projeto conta com diversos pontos de coleta na cidade, inclusive em eventos municipais. Muitos donativos já foram arrecadados e distribuídos para as escolas da rede municipal. Alguns kits também estão sendo deixados em postos que estão localizados em bairros com pessoas em situações de maior vulnerabilidade.
Outros foram deixados na casa de dependência química feminina da cidade. “É fundamental a inclusão de um projeto de lei referente a doação desses kits de higiene. As pessoas precisam, além de comida, ter saúde íntima. É necessário agir com políticas públicas, cobrar dos nossos governantes para que projetos assim vão adiante”, reforça o estudante de Jornalismo.
Alguns municípios do Estado também estão construindo projetos de leis que buscam combater a pobreza menstrual de forma mais efetiva. Como é o caso da capital gaúcha, que tem projetos tramitando no legislativo municipal, assim como em São Leopoldo e Caxias do Sul. Em Farroupilha, o projeto foi aprovado na Câmara e encaminhado para sanção do prefeito Fabiano Feltrin (PP).