Preta Rara: entre a música e os debates sociais

A arte-educadora santista encontra nas rimas uma maneira de falar sobre temas como racismo e política

Marina Salazar
Redação Beta
7 min readApr 17, 2018

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Preta Rara durante apresentação no 8º Encontro de Mulheres Estudantes (Foto: CUCA da UNE)

Preta Rara utiliza a poesia para educar. Da periferia para o mundo, ela saiu da casa de famílias em Santos (SP), onde trabalhava como empregada doméstica, direto para os palcos. E canta para quem quiser — ou não — ouvir a realidade da periferia. A rapper, que também foi professora de história, ficou conhecida em 2016 quando lançou a campanha #EuEmpregadaDomestica para denunciar abusos das patroas na internet e utiliza o YouTube como ferramenta para apresentar a websérie “Nossa Voz Ecoa”, onde a partir das suas vivências debate sobre as mulheres no hip-hop, gordofobia, genocídio da juventude negra no Brasil e diversos temas ainda considerados tabus pela sociedade.

Quantos anos como Preta Rara e por que a escolha do nome artístico?

Preta Rara: Eu estou há 12 anos no movimento hip-hop, e escolhi esse nome artístico porque quando eu era pequena minha mãe falava que eu gostava de coisas diferentes das meninas da época, que eu queria brincar com brinquedo de menino. Ela falava Pretinha Rara. Acabei lembrando disso quando me tornei rapper e na escolha de um nome artístico pensei: “Ah, eu vou botar Preta Rara!”. Nada como um nome dado pela mãe, né? (risos). Na época, minha mãe também não entendia essa questão de gênero, achava que brinquedo de menino só menino pode brincar, brinquedo de menina só menina pode. Foi isso, daí que surgiu Preta Rara.

Como foi a sua trajetória até se tornar Rapper?

Preta Rara: Minha trajetória é bem parecida com a de várias meninas negras no Brasil. Ter que crescer em meio ao racismo e perceber que a cor da sua pele é predominante e é o resultado pra várias coisas. Então, independente da profissão que eu possa escolher, independente da profissão que uma menina negra possa querer, sempre vai ter o lance de que a nossa pele fala em primeiro lugar para as pessoas. Fui empregada doméstica durante sete anos porque eu demorei para entender que currículo com foto e boa aparência é sempre personificado numa pessoa não negra, né? Então não conseguia arrumar emprego. Nasci em Santos, ingressei na universidade em 2009, ainda como empregada doméstica. Só que no primeiro ano já consegui um estágio. Me formei em História em 2011, e dei aula durante seis anos entre escolas públicas e particulares. Desde 2016 eu sobrevivo da minha arte, pensando e arquitetando para que um dia eu possa realmente viver da minha arte.

Qual significado que o Rap tem para você e o que te estimula a cantar?

Preta Rara: O Rap é uma revista falada da periferia, então tudo que acontece lá, tudo que acontece no Brasil e no mundo, eu coloco nas minhas rimas, nas minhas musicas. Acho que é bem mais fácil as pessoas prestarem atenção através de um rap, de uma música, do que ficar na frente de palanque ouvindo eu falar, né? Nem todo mundo tem essa noção, nem todo mundo tem essa paciência. Já com o Rap não, a minha musica consegue chegar em lugares que eu nunca cheguei. Tipo, eu nunca fui pra Angola, pra Moçambique, mas as minhas músicas tocam nas rádios comunitárias de lá. O que me estimula a cantar é isso, vejo que uma menina, um menino ouvem ou até senhoras de idade, pessoas mais velhas do que eu e falam: “Nossa! Caramba! Eu não sabia que significado de mulata era isso” ou “ Eu detestava meu cabelo, aí a partir do momento em que escutei nas suas musicas acabei gostando”. Então é isso que me estimula.

Como é ser mulher negra ocupando também este espaço?

Preta Rara: Bom, ser mulher nega ocupando esse espaço é ser mulher negra no Brasil, né? Ocupando qualquer lugar. É ter que provar que você sabe fazer, é ter que provar que você ta ali pelo seu talento. Não pelo fato de ser uma mulher cantando rap, saca? O meu viés é esse: empoderamento feminino e combate ao racismo através da música.

Quais suas influências musicais/artístico-culturais?

Preta Rara: Minha referência atual no Brasil é a Nega Gizza, mulher que eu sou mais fã. E ela é mulher preta, gorda como eu. No ano passado eu tive a dádiva de ela aceitar um convite meu. Fiz um show “Preta Rara convida Nega Gizza”, no Sesi Santos, e lotou. Foi muito emocionante pra mim porque eu nunca tinha assistido nenhum show dela e quando fui era cantando no meu show, então ela é uma das minhas maiores influências. E fora do mundo artístico é a minha mãe e minha avó, minha madrinha, que me influencia a ser gente, saca? A ser mulher. Não abaixar a cabeça pra homem nenhum, a dar continuidade nos meus projetos, acreditar que é possível, ter persistência, ser empreendedora de sonhos, ser empreendedora da minha vida, dos meus negócios. São essas mulheres que me inspiram.

O que é ser arte-educadora e o que representa socialmente ser arte-educadora mulher negra?

Preta Rara: Bom, ser arte-educadora foi algo que eu descobri ha algum tempo, né. Mas, não tem tanto tempo assim. Eu já era arte-educadora quando eu era historiadora, professora. Mas agora saindo da escola e trabalhando com isso também, crio novas portas e novos olhares. Saber que você pode influenciar na vida das pessoas através da arte, através da cultura, que você pode dar entretenimento e conhecimento também. E o que representa ser isso enquanto mulher negra? Representa que as mulheres pretas são capazes de fazer o que elas quiserem e que é legal uma mulher preta chegar em determinados lugares do conhecimento e as pessoas estarem ali ouvindo ela. Porque geralmente a gente chega, de repente é uma palestra sobre qualquer outra coisa e nunca esperam uma mulher preta gorda, sempre esperam outro biotipo, outras pessoas. Eu to aqui pra contrariar as estatísticas (risos).

Qual papel da cultura como transformadora social e a potência que carrega para mudar a vida do povo?

Preta Rara: Acho que tá atrelado a cultura e a educação. Tão de mãos dadas, tá ligado? Não dá pra separar uma coisa da outra. A revolução tem que vir através da educação e da cultura, através da escola, através das músicas, através da poesia, da literatura e então tem um papel muito forte. Um papel de transformação mesmo. Porque se eu não tivesse encontrado o movimento hip-hop provavelmente estaria ainda dentro de alguma casa de família trabalhando como doméstica, acreditando que eu era como se fosse da família, mas com isso tirando todos os meus direitos trabalhistas. Eu ia ter essa vida que eu tinha antes, saca? Não ia acreditar que era possível ingressar na Universidade. É claro que só foi possível por causa das políticas públicas do governo Lula. Só por conta disso foi possível ingressar na Universidade. Minha mãe ter linha de crédito pra comprar os móveis que ela tanto queria, meus tios poderem comprar casa própria, então essa é a importância mesmo. E eu ter ingressado no movimento hip-hop, foi o motivo de entrar na Universidade e cursar história.

Cultura é política? Por que a cultura da periferia é historicamente anulada e atualmente os primeiros cortes nos investimentos de verbas federais são na área da cultura e da educação?

Preta Rara: Ah! Porque eles não querem ver as pessoas pensando. Eles não querem ver as pessoas se divertindo também. Porque pra mim se divertir na periferia é um ato político também, como dançar é um ato político, meu corpo é um ato político. A única coisa que eles querem da periferia é a mão de obra barata, que é o que eles têm ainda hoje, então eles não querem que essa mão de obra barata pense. A partir do momento que essa mão de obra barata começar a pensar, ela vai começar a reivindicar os direitos trabalhistas, reivindicar quanto ela ganha se é correto o que ela faz, se ela tá sendo bem tratada, enfim… Então por isso que o corte vem sempre de lá.

Menos democracia significa menos cultura?

Preta Rara: Sim. Porque como que a gente vai se manifestar, né? A minha arte é política. Minha arte é política pura mesmo quando é uma música de entretenimento, falando de relacionamento, também é um ato político. Então se a gente já tá vivendo em tempos sombrios de baita ditadura, só não vê quem não quer né? E de negação da democracia, onde a gente não tem o livre arbítrio pra fazer nada, pra falar nada sem ser julgada e ameaçada. Eu sou ameaçada a todo o momento na internet a partir do momento que eu me posiciono. Eu postei uma foto em apoio ao Lula, um dia antes dele ir preso. Eu fui lá em São Bernardo, conversei com ele, agradeci por tudo que ele fez e postei essa foto na internet. No Instagram deu mais de mil curtidas e eu recebo ameaça de morte direto. E tudo isso, esse embasamento político, foi através da cultura. Então me calar, e calar outros artistas que se posicionam através da cultura é porque é totalmente negada a nossa democracia aqui no Brasil.

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