Opinião: professor certo, sala errada

Problema frequente nas escolas públicas do estado, aulas são ministradas por educadores despreparados

Arthur Menezes
Redação Beta
11 min readSep 24, 2019

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A sala de aula como conhecemos pressupõe alunos e professores. (Fonte: Freepik)

Não é que as discussões do amanhã sejam menos importantes, mas é que as de ontem são urgentes. Por isso, juro: gostaria muito de estar aqui escrevendo sobre metodologias ativas na educação. Primeiro, porque o nome é bonito e me faria parecer ter algo interessante a dizer. Segundo, porque não é um assunto esgotado, afinal de contas, o futuro é uma terra fértil para as ideias. Mas não será o caso. Não agora.

Fui a uma palestra de Michel Maffesoli neste ano. Lá pelas tantas da palestra, o francês faz a famosa brincadeira com um fundo de verdade. “Sou um reacionário de gravata borboleta”, disse aos risos. Depois de vê-lo falar por vários minutos sobre a violência de um Estado que, de maneira brutal, constrói sem perguntar aos moradores futuros como lhes parece a arquitetura dos telhados das casas populares, eu só pude concordar. A mim, incomoda o déficit habitacional.

Mas esse não é um texto sobre franceses pós-modernos. É um texto sobre prioridades. Não é sobre comprar briga com o 68 parisiense. É sobre nos voltarmos às coisas mesmas. E, antes de ir ao cerne da questão, preciso fechar a introdução com um aviso: esse texto assume premissas. E, se virou moda denunciar extremismos, aqui tenho princípios, palavrinha bem mais bonita pra dizer o que eles enxergam como sinônimo porque são míopes politicamente.

Na lógica de lucro, trabalho e emprego se distanciam a léguas, mas não vou ser eu que vou comprar essa. Problemas simples frequentemente se resolvem com soluções simples, contanto que se tenha boa vontade. Falei antes em déficit habitacional: pois bem, num pago em que sobra barro e capim, mas falta teto, está feita a conta e não há muito a acrescentar.

As crises são sempre oportunidades. E, se há algo em crise, é a educação pública do Rio Grande do Sul. Os motivos são muitos, mas não podemos deixar de iniciar pelo mais flagrante, que é a falta de professor em sala de aula. Com picardia, permitiria-me dizer que, salvo engano, as propostas de EaD para a educação básica ainda são apenas devaneios, ou seja, ainda se pressupõe o contato entre o aluno e o educador em sala de aula.

O drama nas salas de aula vem de longe, mas se acentuou nos últimos meses. Levantamento recente da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) propôs que o déficit em sala de aula chegava a 7 mil educadores. Uma faceta do problema que é constantemente ignorada, os afastamentos, foi tratada em matéria publicada na Beta Redação no começo do mês, a qual deixo o link e a sugestão da leitura.

Mas a resposta ao déficit não passa pelos afastamentos na perspectiva do Governo do Estado. Pelo contrário: esta administração resgata uma atitude perversa, não vista desde Yeda, e demite professores ausentes por problemas de saúde. O desprestígio em relação a esses trabalhadores em contratos temporários pode ser lido nesta outra matéria. Acrescento a essa sugestão de leitura, e ao início deste parágrafo, que o Governo já anunciou fazer revisões em casos pontuais. A ver.

Mas nem só de retrocessos vive o educador gaúcho. Na terça-feira, 17, a Assembleia Legislativa aprovou a autorização para a contratação de 5.020 professores em caráter emergencial e temporário para a rede pública estadual de ensino. O projeto, além de atacar o déficit imediato, também pode corrigir outra distorção criada na atual gestão, uma vez que autoriza o governo estadual a prorrogar até o final do ano letivo de 2020 contratos temporários vigentes de mais de 25 mil professores, diferentemente da proposta aprovada em janeiro, que estabelecia dezembro como prazo de desligamento dessa massa de trabalhadores. Isso poderia gerar um verdadeiro apagão no pior dos casos, mas que no mínimo seria o estabelecimento da precarização dos trabalhadores, sem férias e demais direitos.

Seguindo sobre o projeto, ele também decreta que o Poder Executivo deverá realizar, até 2021, um concurso público para suprir a necessidade de professores. É uma medida mais do que necessária, uma vez que, atualmente, a rede conta com cerca de 60 mil professores, dos quais cerca de 40 mil são efetivos e outros 19 mil temporários. Não me furto de pensar sobre o simbolismo de isso ocorrer num setembro, tal como aquele de uns anos atrás, em que se aprovou o plano de carreira dos funcionários de escola — relembre no link. E aqui começamos a tratar da oportunidade sinalizada no começo do texto.

Ainda que a necessidade de uma introdução se imponha quando o assunto é a educação pública, a intenção aqui não é tratar dos problemas mais evidentes — ainda que seja impossível ignorá-los na formulação da ideia. Por isso, não vou me ater aos salários que por mais uma gestão seguirão pagos com atrasos. A ideia é expor um problema um pouco mais sutil, que precisa ser resolvido com urgência e que tem na atual crise uma possibilidade: os professores que atuam fora de suas áreas de formação.

Então, passadas as agruras do desemprego, animado vai o sujeito cumprir com seu dever. Mas, mais do que isso, vai viver seu sonho. Esse é o professor que se apresenta, munido de esperanças para o trabalho em uma escola estadual. Ele fez essa caminhada sabendo de todas as dificuldades que o acompanhariam durante a formação — aqui, vamos assumir que esse professor está formado — , conhecia também o mercado que enfrentaria ao se profissionalizar, mas, ainda assim, acreditou que poderia acrescentar à vida das pessoas.

Ao se deparar com a realidade, um choque. Uma sensação de impotência. Uma frustração. Essas são possibilidades quando o professor descobre, enfim, que será deslocado, que trabalhará com uma temática que não domina e que não fará um décimo do que havia imaginado. Sua formação, conquistada com suor, será desprezada já na arrancada de sua trajetória.

Evoco a sensibilidade para tratarmos de um problema prático. Se o professor é, como ainda penso, uma figura central no processo de ensino e aprendizagem, então é fundamental que ele esteja preparado para fazer a aula que dele é esperada. Esse problema é real, está presente nas mais diversas escolas da rede pública, para não dizer em todas, mas não entra na agenda do dia. Agora, porém, há uma possibilidade de ação efetiva para dirimir o problema, contanto que haja a sua identificação e a vontade política para superá-lo.

Vou tomar como problema, então, o professor que atua em uma área que não é aquela em que se preparou para atuar. E, como solução a esse problema, que passe a atuar em sua área. Nesse sentido, não vou abrir um tópico para debater a qualidade da formação docente no país agora. Mas, para quem tiver interesse em pensar sobre esse tópico, basta recorrer à produção científica dos cursos de educação, que produzem vasta literatura sobre o assunto. Mais especificamente, sugiro o nome do professor Demerval Saviani, de reconhecida produção nesse sentido, aos que desejarem maior aprofundamento histórico.

Outro tópico importante, e que também não podemos nos aprofundar, é a formação docente adequada para os novos tempos. Dever-se-ia perceber aqui que o caso é tão grave que tantos problemas de primeira hora são deixados momentaneamente de lado em detrimento de uma discussão que deveria ser anterior. Nesse caso, acrescento ao parágrafo a sugestão de leitura da Tese de Doutorado defendida pelo meu amigo Mario Pool, intitulada DESAFIOS EDUCACIONAIS CRIATIVOS ASSOCIADOS ÀS PRÁTICAS DOCENTES: ESTUDO DE CASO CONSIDERANDO RPG EDUCACIONAL.

Aliás, uma vez que mencionamos a formação docente primeiro de forma mais ampla, e depois vinculada às novas necessidades dos alunos, também cabe aqui estabelecer a nossa problemática como, de certo modo, posta para além dos pressupostos filosóficos. Quero dizer, independentemente da visão pedagógica que se tenha, parece-me inevitavelmente problemática a falta de formação de um professor em sua área de atuação.

Estabelecidos os termos em que vai se dar essa proposta, o que se pede é que o professor faça aquilo para que se preparou. Os motivos parecem óbvios, e talvez o sejam, mas vamos elencá-los brevemente. Começando pela motivação. Um professor colocado em uma situação como a descrita no centro do texto está inclinado a trabalhar sem a motivação necessária para a execução de suas tarefas. Nisso, por si só, a qualidade da aula já tende a cair. Num ponto de vista mais agudo, não me surpreende incidência da Síndrome de Burnout em professores — as visões idealistas cobram desse profissional respostas inalcançáveis, as ferramentas entregues em suas mãos são limitadas e por aí vai.

Imaginemos que um professor de Matemática é escalado para ensinar Física, por exemplo. Essa situação, corriqueira nas escolas públicas estaduais, causa prejuízos enormes à aula. E aqui sou remetido a uma entrevista de Manuel Castells, quando ele, com perspicácia, criticou o modelo pedagógico de transmissão do conhecimento, que já não cabe mais no século XXI. Ele apontou que, quando o aluno tem sorte, o professor lê sobre o conteúdo à noite e no dia seguinte tenta fazer a explicação dessa leitura. Quando o aluno não tem a mesma sorte, diz o sociólogo espanhol, vê a aula que o professor preparou há 20 anos sem mudar nada.

No subtexto do parágrafo anterior está um problema: o professor tem de conhecer o assunto, o que pede uma formação e trato com o tema, mas também deve propor uma interação convidativa ao estudante, indo ao encontro de seus interesses e vivências. Nisso, concordo totalmente com Castells. Agora, imagine esse processo tocado pelo professor de Matemática que descobre, no começo do ano letivo, que ficará ao cargo das aulas de Física — situação descrita no parágrafo anterior. Obviamente, o processo está fadado ao insucesso.

Agora, sim, entrando um pouco no pensamento pedagógico posicionado, assumindo a premissa de que uma boa aula motiva o aluno a buscar as respostas a partir da mediação do professor, que suscita seus interesses e conhecimentos prévios, temos que a mediação fica prejudicada no cenário supracitado — e o modelo tradicional resta como saída. Na incapacidade de um professor que não é da área em que está atuando de levar o conteúdo para o cotidiano do aluno, exegese e hermenêutica são apenas palavras bonitas em sonhos de uma noite de verão.

Sem a preparação adequada, não raro o professor se defende em materiais didáticos, ou seja, terceiriza a responsabilidade aos livros, vídeos e afins, que não são mais materiais de apoio, mas o centro do processo — e estão presentes em diversas plataformas, como sugerido, na melhor das hipóteses. O resultado é catastrófico. Primeiro, porque o aluno brasileiro, em geral, não é letrado (e também não pode tornar-se em meio a isso); depois, e de maneira a ampliar o primeiro ponto, porque tudo aquilo que se espera do aluno do século XXI deixa de ser trabalhado — como as competências consagradas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que deveria ser mais presente a partir deste ano, mas que corre o risco de se tornar apenas mais um documento imaginativo.

Ainda olhando pelo lado da angústia vivida pelo professor nesse cenário, podemos pensar na ideia de alunos conectados. Com boa vontade, é possível imaginar alunos empenhados em pesquisas nos seus smartphones, diminuindo o peso da inaptidão do professor como condutor desse caminho. Mas, por outro lado, temos o surgimento de dois problemas. No caso A, o aluno pesquisa, encontra, entende e procura problematizar a compreensão, o que só pode constranger o professor ou frustrar o aluno. No caso B, o aluno pesquisa, encontra uma fonte equivocada ou entende mal uma fonte correta e mantém uma visão distorcida. Nesse ponto, passamos a olhar a tragédia do ponto de vista do aluno, para quem é tudo muito pior.

Voltando a Castells, ele insiste em repetir que na Europa e nos EUA temos taxas crescentes de evasão escolar, e que ocorrem muito com base no desinteresse do aluno. Imagine, então, que se a obsolescência da escola já é capaz de fazer um estrago tão grande por si só, como ela impacta somada à incompetência básica. Ou, veja o que diz o próprio sociólogo no link. Aqui, fica claro o seguinte ponto: pior do que não chegar ao futuro é fazer de forma deficiente o passado.

Profundidade e complexidade são necessidades do século XXI. E a nossa escola, com professores que não estejam atuando em suas áreas fim, não serão capazes de agir nesse sentido. Um professor que não é da área de História provavelmente conseguirá dizer que o Nazismo é um movimento de extrema-direita, pois para isso não basta muito estudo, mas apenas seriedade. Por outro lado, não teremos garantia de que ele será capaz de enquadrar Hitler em um contexto histórico que possibilitou a ascensão de um déspota — podendo, inclusive, termos uma aula que reduza lamentavelmente o holocausto à ação pessoal, o que é obviamente um equívoco.

Nesse ponto, fica claro que o desenvolvimento pessoal do aluno está comprometido. Mas, se isso não entra numa régua clara aos olhos de todos, há o prejuízo facilmente quantificado, como as notas pífias das escolas públicas, sobretudo nas regiões periféricas, no Enem. Para o caso de alguém ainda achar que a posição social é menos importante nas provas, sugiro a leitura da matéria de Zero Hora, em que, além disso, fica indicado que a Análise de dados dos candidatos indica que raça e gênero são determinantes para nota do Enem.

Durante esse processo de afastamento entre aluno e o gosto pelo saber, torna-se também desinteressante o ato de ensinar. E, assim, são formadas gerações que cada vez menos pretendem lecionar. O número de jovens que querem ser professores é alarmante, como mostra matéria do Estadão.

A capacidade de manter um bom aluno com o desejo de se tornar professor pode ser um segredo para que a educação de um país avance. É um dos tópicos apontados pelos especialistas em relação à revolução vivida por Singapura, como conta a Revista Exame. Mas, agora, estamos começando a tratar de soluções.

Pretensiosamente, posso dizer que tratei de apresentar o problema, mostrando com brevidade como e quem ele ataca. E, voltando ao parágrafo anterior, pensando agora na solução, é importante mencionar que o país asiático só avançou ao topo do PISA com muito investimento — vale notar que eles partiram de lugar parecido com o Brasil décadas atrás. Mas, ao tratar desse modelo pedagógico, há quem torça o nariz. Então, que pensemos na Finlândia, que conta com ideário bem oposto na forma, mas semelhante no sucesso. Em ambos o educador está no centro. “O professor lidera o processo”, diz trecho do entrevistado da Revista Nova Escola, na matéria que trata da Finlândia no link.

Voltando ao centro do problema, ou seja, o professor atuando fora de sua área de formação, o princípio de solução tem uma premissa simples, como já foi escrito aqui: há que se posicionar os professores em suas áreas corretas de atuação. Mas, como fazer isso? Em primeiro lugar, é importante mapear o problema. Fazer um raio-x de quantas aulas de cada disciplina ocorrem em nosso sistema, quantos professores estão capacitados para tal e cruzar os dados. Duas ou três planilhas, um algoritmo e a resposta começará a aparecer.

Com esse levantamento, o Governo do Estado, que já está em vias de contratar professores, poderá ser assertivo. Sabendo quem falta, em que lugar falta, aí sim, quem sabe, a ideia de contratos emergenciais possa fazer sentido. A partir de 2021, caso o concurso público de fato ocorra, ele mesmo deve estar muito organizado com base no levantamento proposto. Não em um dado aproximado, que gera a distorção que conhecemos, fique claro. Há que se ter rigidez.

Filosofia, Sociologia, Artes e Religião não são disciplinas feitas para penduricalho. Aliás, as disciplinas que recebem professores deslocados mais frequentemente denotam a maneira como os governos historicamente encaram essas áreas. Curiosamente, estas mencionadas estão frequentemente ligadas à criatividade e à inovação, valores fundamentais para a superação de qualquer crise. Mas esse é um assunto para uma próxima oportunidade.

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