Protegidos da Princesa Isabel é a representação do povo negro em Novo Hamburgo

Em uma cidade de colonização alemã, duas escolas de samba lutam para sobreviver. Uma delas, participa pela 26ª vez do Carnaval de Porto Alegre

Patrícia Wisnieski
Redação Beta
7 min readMay 6, 2022

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Com a quadra da escola interditada, Protegidos realiza último ensaio antes do desfile no Teatro Municipal (Foto: Patrícia Wisnieski/Beta Redação)

Das duas escolas de samba ativas em Novo Hamburgo, uma se apresenta no domingo (8 de maio) no Carnaval de Porto Alegre. Pela série Bronze, a Protegidos da Princesa Isabel representa a cidade com o enredo “Tem um triângulo amoroso na Tricolor: Arlequim, Colombina e Pierrot’’. O romance entre esses três personagens representativos para a história do Carnaval é apresentado como uma analogia ao amor e à paixão que envolvem os componentes da Tricolor hamburguense.

Esta é a 26ª vez que a Protegidos, com 800 integrantes, representa Novo Hamburgo no Carnaval da capital do Estado. A presidente da escola, Lana Flores, conta que não é fácil manter essa cultura em uma cidade de colonização alemã. “Representamos Novo Hamburgo no Carnaval de Porto Alegre há 31 anos. A cidade poderia ter mais carinho, respeito, dedicação e reconhecimento pela Protegidos, pois não temos o retorno que merecíamos”, pontua.

Conforme Lana, neste ano a escola de samba do bairro Rondônia passa por grandes dificuldades. Entre elas, o fato de a quadra estar interditada, impossibilitando a realização dos ensaios e também dos tradicionais Bailes de Carnaval — essenciais para a arrecadação de recursos que auxiliam na realização dos desfiles.

“Colocar a Protegidos para desfilar na avenida do Porto Seco este ano é o maior desafio de todos os tempos. Estamos sem nada de recursos, com a quadra interditada e sem prazos para a liberação. Precisamos de ajuda financeira para o transporte e para pagamento dos contratos e contratados”, lamenta a presidente, fazendo apelo para que a população da cidade se sensibilize. “A gente gera saúde e eleva a autoestima da nossa comunidade”, completa.

Samba-enredo faz analogia ao amor e à paixão que envolvem os componentes da Tricolor (Foto: Patrícia Wisnieski/Beta Redação)

Mesmo sem a sede e após dois anos longe da festa por conta da pandemia de Covid-19, Lana enfatiza que a escola de samba está unida e organizada. “Estamos buscando parcerias para a construção de um novo espaço, pois agora estamos sem teto. Mas somos a resistência negra da cidade. Nos fazemos presentes neste Carnaval difícil, onde NH não teve desfile, mas na Protegidos tem e sempre vai ter. É a nossa cultura. A nossa arte”, diz.

Esse sentimento é compartilhado pela madrinha de bateria da Tricolor, Carina Rosa, que faz parte da escola há 12 anos. “Voltar para a avenida é uma emoção muito grande, emoção em dose dupla, porque são dois anos na expectativa, e a escola está passando por sérios percalços. Apesar disso, nosso grupo está muito unido e a nossa expectativa é de dar um grande show, representar Novo Hamburgo com as nossas cores, com o nosso manto sagrado e com certeza subir de categoria”, destaca.

Carina lembra com alegria de quando se tornou integrante da Verde, Vermelho e Branco: “Em 2010, fui convidada para representar Novo Hamburgo e a Protegidos no ‘Rainha do Carnaval de Porto Alegre’ e lá eu consegui trazer o título para a nossa Tricolor”, vibra.

O secretário de Cultura de Novo Hamburgo, Ralfe Cardoso, diz que a participação da Protegidos no desfile porto-alegrense deste ano, assim como nos anos anteriores, é muito representativa, pois demonstra a potência e o protagonismo de uma escola que é símbolo de resistência negra na cidade.

“Isso mostra a qualidade do trabalho que é feito pela comunidade da escola e que o Carnaval de Novo Hamburgo tem condições de competir com as grandes agremiações da Capital”, salienta.

O gestor explica que a festa não foi realizada na cidade devido a um decreto que suspendia eventos públicos que pudessem gerar aglomerações até o final do mês de março. “Antes desta determinação, construímos com as escolas Protegidos e Cruzeiro do Sul a realização de oficinas de ‘Alegorias e Adereços e Percussão’, com subsídio repassado pela Secretaria de Cultura como forma de qualificá-las”, comenta.

A história do Carnaval em Novo Hamburgo

Conforme Ralfe Cardoso, o Carnaval de Novo Hamburgo é realizado desde 1950 e surgiu com a mobilização dos negros e da população periférica, oriunda dos bairros populares. Através dos blocos carnavalescos “Os Leões” e “Aí Vêm os Marujos”, surgiram as duas escolas de samba ainda ativas na cidade: a Protegidos da Princesa Isabel e a Sociedade Cruzeiro do Sul.

“Mesmo sendo uma região de origem germânica, a contribuição econômica e sociocultural do negro para a cidade é enorme e merece esse destaque, pois fazem destas agremiações os verdadeiros ‘Quilombos urbanos’ que atuam hoje no Carnaval como símbolos desta resistência cultural”, expressa o secretário.

Entretanto, a primeira escola de samba da cidade surgiu anos antes dos desfiles serem realizados — em 1922 — , a partir do anseio da população negra por um espaço em que se sentissem acolhidos. “É um motivo de satisfação e de orgulho fazer parte de uma sociedade que foi criada para ser um espaço para os negros. Na época isso era separado, os negros não entravam no ambiente dos brancos e os brancos não entravam nos ambientes dos negros”, relembra José Odilto Anselmo, atual presidente da Cruzeiro do Sul.

Ele conta que antes de ser escola de samba, “Os Leões” eram um time de futebol que aos poucos se transformou em uma sociedade que reunia os negros de Novo Hamburgo. “Foi criado um departamento, que não era escola de samba, era um bloco carnavalesco. Na realidade, nós somos uma sociedade dividida em departamentos: tem o departamento feminino, o de cultura, o de Carnaval, entre outros. Diferente das outras escolas de samba da cidade, a Cruzeiro não foi criada como escola, mas sim como uma sociedade”, explica.

José já faz parte da Cruzeirinho, como a escola é carinhosamente chamada em NH, há mais de 35 anos. Em 2022, ele está em seu 4º mandato como presidente, com o desafio de preparar a sociedade para a comemoração dos seus 100 anos de existência. “Em outubro comemoraremos o nosso centenário. Felizmente, hoje está bem tranquilo, nós não sentimos mais essa criminalização do Carnaval”, expressa.

Mestre sala e porta-bandeira da Cruzeiro do Sul se divertem durante os Bailes de Carnaval (Foto: Reprodução/Instagram Cruzeiro do Sul)

Segundo o presidente, o motivo de só duas escolas continuarem ativas até hoje é a falta de interesse dos mais jovens, que não estão conseguindo mantê-las funcionando. “Para ter acesso aos benefícios concedidos por leis é preciso ter os documentos. A documentação precisa estar rigorosamente em dia e, às vezes, por algum descuido, as escolas acabam não tendo. Com isso não conseguem acessar recursos e aí fica realmente difícil”, relata José.

Já a Protegidos da Princesa Isabel surgiu em 1969, a partir do bloco “Aí Vêm os Marujos”, de 1951. A escola de samba foi fundada por um dos integrantes da ala jovem do bloco carnavalesco, Sebastião Flores, que faleceu em 2011. Pai da atual presidente, Lana Flores, Sebastião fez história ao levar a escola de samba por tantas vezes ao Carnaval de Porto Alegre, muitas delas em que a Protegidos era a única representante do Vale do Sinos nos desfiles da Capital.

“Ser presidente e fazer gestão é um dos maiores desafios. Porque é muito dinheiro que temos que captar e as pessoas acham que você quer o dinheiro para benefício próprio porque não acompanham o nosso trabalho. Tem muito material aqui que a cidade não conhece, pois não visitam a Protegidos. Inclusive de componentes para calçados que usamos para o Carnaval”, expõe Lana.

Para a gestora da Protegidos, a situação do Carnaval não é tão tranquila na cidade, como disse o gestor da escola vizinha. “Ninguém acredita no nosso Carnaval. Os hamburguenses criticam a nossa festa, não ajudam, preferem ir para o Rio de Janeiro. A cidade que perde”, revela. Lana faz ainda um apelo aos munícipes: “Fortaleçam o Carnaval, invistam em materiais, tecidos, lojas, ateliers, pois o ramo é muito forte. Se todo mundo investir, todo mundo ganha”.

As lembranças e os desejos das escolas

Para o presidente da Sociedade Cruzeiro do Sul, cada Carnaval é único e tem uma história que marcou. “Impossível escolher um só. No momento em que tu escolhe e debate sobre qual tema tu vai desenvolver, ele já é importante e de relevância. Todos os carnavais têm a mesma dedicação, cada ano tem uma história e é um acontecimento especial”, comenta José Odilto.

Os desejos dele para essa retomada do Carnaval são reconquistar os sócios perdidos e conseguir mais associados para a instituição. “Temos projetos sociais muito interessantes, como nos sábados de manhã, em que recebemos as crianças da comunidade e oferecemos aulas. Semanalmente, participam entre 20 e 30 crianças, que aprendem a tocar instrumentos da escola de samba, têm aulas de desenho, de capoeira, de dança”, expõe o gestor da sociedade.

Protegidos está pronta para lutar pelo título e subir de categoria (Foto: Patrícia Wisnieski/Beta Redação)

Enquanto isso, a presidente da Protegidos recorda dois carnavais que marcaram os 52 anos da escola: 2007, com o enredo “O budismo”; e 2012 com a história “Das Trevas à Luz”. “Convido todo o povo de Novo Hamburgo para que ou vá nos prestigiar, ou venha desfilar conosco no domingo, pois não somos uma escola, somos a nossa cidade no Carnaval de Porto Alegre”, conclui Lana.

Confira um trecho do samba-enredo “Tem um triângulo amoroso na Tricolor: Arlequim, Colombina e Pierrot’’, apresentado no último ensaio da Protegidos antes de desfilar no Carnaval de Porto Alegre:

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