Protestos nas paredes do museu
Especialistas avaliam o papel da arte nos debates sociais e climáticos, quando obras clássicas viram alvo de ativistas
Desde o mês de outubro, a Europa acompanha uma série de ataques a obras de arte por parte de ativistas climáticos. Em 14 de outubro, os Girassóis, de Van Gogh, foram alvo de uma sopa de tomate, lançada por duas manifestantes do grupo Just Stop Oil (Apenas Pare o Petróleo, em tradução livre), na National Gallery, em Londres, Reino Unido. Em 23 de outubro, outra dupla de ativistas, do grupo Last Generation (Última Geração), realizou uma nova investida, desta vez com purê de batatas, contra o quadro Grainstacks, de Claude Monet, no Museu Barberini, em Potsdam, Alemanha. Nos dois casos, os ativistas também colaram as mãos à parede. Vários outros ataques aconteceram depois disso. A prática não é nova, mas pareceu se fortalecer no período prévio à 27ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP27).
Diante dos últimos acontecimentos, a Beta Redação procurou especialistas que pudessem ajudar a pensar o papel da arte, às vezes protagonizando situações como as investidas recentes, outras tantas vezes sendo ela mesma porta-voz das dores e dos amores da humanidade.
“Como tal, a arte não é útil, não tem serventia, não é uma ferramenta que serve para outra coisa. Aquilo que não é útil tem uma outra dimensão: é o que torna possível o convívio e a proximidade com o semelhante. Portanto, tem a função de temperar o caráter trágico e violento da condição humana. Toda produção artística funciona como uma referência que nos lança em uma outra direção, que não seja a luta e o domínio de um ser humano pelo outro”, elucida Mario Fleig, psicanalista e doutor em Filosofia (PUC-RS).
Apesar da gravidade das ações, as obras atacadas na Europa não foram danificadas, graças às proteções de vidro. Mesmo assim, os atos não são justificáveis, além de possuírem inúmeras consequências, como avalia Denise Brunner, artista plástica formada em Artes Visuais (Universidade Feevale) e professora de artes na Escola de Artes Pequeno Príncipe.
“Nem todos os museus conseguem ter esse tipo de segurança, e isso vai acabar dificultando ainda mais que grandes exposições cheguem ao acesso de todos. Obras de colecionadores dificilmente serão emprestadas para exposições, se não houver garantia de segurança.” Brunner ainda reforça que, mesmo que os ataques consigam alcançar os espaços midiáticos, não possuem caráter instrutivo quanto ao enfrentamento das mudanças climáticas e outras questões importantes.
“O simbólico sempre tem uma dimensão criativa. Quando algo que está constituído a partir dessa dimensão criativa é atingido, se atinge isso que garante a possibilidade de ter uma relação de troca efetiva. Não faz diferença, em termos, se o objeto artístico é destruído ou não, mas ele é desrespeitado. Tem ofensas que podem ferir mais do que feridas sangrentas. O problemático dos atentados é que eles têm um tom de desconhecimento dessas obras”, reflete Fleig.
“Vivemos um momento em que a arte tem sido muito atacada e criminalizada, assim como a cultura, então realmente não vejo [os ataques] como uma real preocupação com a causa [climática]”, analisa Marcela de Bettio Tôrres, artista e designer. Ela explica que, enquanto essa parcela do ativismo deveria se aliar à arte, ataca. “É excludente em muitos sentidos”, resume. “Vejo muita potência em aliar assuntos contemporâneos tão relevantes através da arte, é realmente impactante. Porém, é por enxergá-la nesse patamar que acho que não devemos ver a arte como uma ferramenta para comunicar ou expressar algo, ela vai muito além disso”, enfatiza a artista.
“Inclusive, o nível do quanto isso aparece no trabalho de um artista depende do quanto esses assuntos permeiam a vida dessa pessoa para além da profissão. Se existe pouca consciência ambiental, por exemplo, não vai aparecer nas suas produções. Mesmo não sendo super exacerbado e nítido, são coisas que fazem do processo de criação, partindo do ponto que a arte nasce a partir da percepção do artista”, argumenta ela.
“Isso é a coisa mais extraordinária da condição humana: criar algo que não existia. Todo o campo da arte é justamente onde a possibilidade de criação não termina, está sempre viva. Preservar a memória daquilo que foi criado é o que serve de suporte para as gerações que virão”, indica o psicanalista Mario Fleig. “A arte pode ajudar muito nas reflexões das pessoas sobre as questões climáticas. Principalmente nas Bienais, muitos artistas conseguem se expressar e levar o público a refletir e realmente se preocupar em mudar hábitos e atitudes. Mas precisamos levar cada vez mais pessoas para visitarem museus, bienais, exposições de arte”, completa a professora Denise Brunner.