(Ilustração: Uboiz/ Pixabay)

Governo quer flexibilizar resolução que regulamenta a publicidade infantil

Longe das mídias tradicionais, empresas utilizam novas estratégias na web. Especialistas apontam para os riscos

Pâmella Atkinson
Redação Beta
Published in
6 min readMay 23, 2019

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Recentemente o debate sobre a publicidade infantil foi reacendido no Brasil. O Governo Federal, através do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos pediu uma revisão da resolução normativa 163, instituída em 2014 pelo Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) para proteger as crianças dos abusos cometidos pela publicidade direcionada ao público infantil. Desde então, a publicidade infantil vem sendo proibida nas mídias tradicionais, como o rádio e a televisão. O Conanda vetou a revisão.

A discussão é antiga. Desde os anos 90, com a criação do Código de Defesa do Consumidor, muito já foi debatido sobre o assunto. A partir do código, a criança também passa a ser apresentada como potencial consumidora. Antes disso, como explica a jornalista e doutora em comunicação Thaís Furtado, havia pouca discussão sobre o assunto. “Antigamente, as crianças não eram consideradas consumidoras, pois o poder de decisão de compra era somente dos pais. Hoje se sabe que as crianças têm forte poder de decisão”, afirma.

Poder de decisão das crianças gera debate. (Foto: Alexandre Beck)

O que diz a resolução normativa

A resolução 163, criada em 13 de março de 2014, aborda o abuso e o direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica para crianças e adolescentes. O texto está embasado nos Direitos da Criança e do Adolescente, previstos pela Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor e no Plano Decenal de Direitos Humanos de crianças e adolescentes, que prevê no artigo 3.8 “aperfeiçoar instrumentos de proteção e defesa de crianças e adolescentes para enfrentamento das ameaças ou violações de direitos facilitadas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação”.

Assim, a norma estabelece que toda ação publicitária visando a criança como público alvo é proibida. Ainda conforme o texto, “a comunicação mercadológica abrange, dentre outras ferramentas, anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e páginas na internet, embalagens, promoções, merchandising, ações por meio de shows e apresentações e disposição dos produtos nos pontos de vendas.”

O que mudou a partir de 2014

Apesar de a norma proibir todo conteúdo publicitário voltado ao público infantil, é difícil para o Conanda controlar o que é produzido. O próprio Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que analisa os materiais publicitários na mídia, pode apenas dar uma notificação às empresas que descumpram o regulamento.

No rádio e na TV aberta já não se vê comunicação mercadológica voltada ao público infantil devido à forte regulamentação desses veículos. Por causa disso, as marcas focam seu conteúdo principalmente na internet, como relata a publicitária Jéssica Fragoso.

“As marcas tiverem que se adaptar para continuar divulgando seus produtos e isso vem de encontro com o avanço da tecnologia”. Ela ainda afirma que os anúncios foram se encaixando a essa nova realidade.

Professora Thaís Furtado entende que a resolução é benéfica à sociedade (Foto: Reprodução/YouTube)

Thaís Furtado explica que plataformas como o YouTube não são regulamentadas e as marcas encontram nessas mídias uma forma de “contornar” a resolução do Conanda através de estratégias como o unboxing, utilizada em canais voltados para o público infantil. Conforme pesquisa do Comitê Gestor da Internet realizada em 2016, de cada 10 crianças e adolescentes no Brasil, oito usavam a internet. “Entre os vídeos mais assistidos pelas crianças está a categoria unboxing, com 31,6%. Isso virou uma febre”, alerta Thaís.

Unboxing é quando youtubers publicam vídeos abrindo presentes enviados por marcas. “Youtubers jovens, como o Luccas Neto, que tem mais de 17 milhões de seguidores, produzem conteúdo que parece entretenimento, mas que divulga vários produtos. Esses influenciadores digitais são um dos caminhos mais fortes atualmente para atingir as crianças”, conta a jornalista.

Com quase 4 milhões de views, “unboxing” é uma das práticas para atingir público mais jovem. (Foto: Reprodução/Youtube Irmãos Netto)

Controle dos pais

Não são apenas os órgãos regulamentadores e protetores da criança e do adolescente que se preocupam com a exposição das crianças à publicidade. A discussão já chegou às famílias, que buscam meios para lidar com a questão sem aderir a proibições ou permissões descabidas. É o caso da doméstica Adriana dos Santos, mãe de Vitória Sabrina dos Santos, 16 anos, e Victor Ismael dos Santos, nove anos.

Adriana relata que o principal acesso de Victor Ismael à publicidade infantil é através dos canais infantis da TV por assinatura. Entre um programa e outro, diversos anúncios de brinquedos passam na programação. Após assistir os comerciais, o menino já pesquisa sobre os produtos oferecidos. “Ele viu, por exemplo, a propaganda da Nurf, então pegou o telefone e foi pesquisar na internet como era esse brinquedo. Quando veio me pedir, já sabia tudo o que ela fazia”, descreve Adriana.

Depois que Victor faz o pedido, os pais analisam juntos com ele a questão. O diálogo em família é a alternativa encontrada para solucionar a questão. “Eu não digo que não vou dar, e nem que vou dar. Às vezes tem coisas que ele assiste e só por ver o anúncio ele quer, mas não é assim. Conversamos bastante, e quando é possível, damos o presente”, finaliza a mãe.

Na casa de Adriana as decisões são tomadas após diálogo entre pais e filhos (Foto: Pâmella Atkinson/ Beta Redação)

Adriana observa que Victor está muito mais exposto à publicidade infantil do que a irmã Vitória estava quando tinha nove anos. A publicitária Jéssica Fragoso explica que isso acontece justamente pela dificuldade de controlar e regulamentar as mídias de massa. Ela cita o trabalho da ONG Alana, que luta para proteger as crianças da exposição publicitária e garantir que as normas vigentes sejam cumpridas, além de buscar a normatização das mídias que ainda não cumprem a resolução normativa 163.

Enquanto o governo busca dissolver essa normatização, sob a justificativa de que a exposição das crianças a esses conteúdos irá ensiná-las a ter “critérios”, pais e profissionais da comunicação caminham pelo trajeto oposto, buscando a regulamentação de todas as mídias. Para Thaís, o veto à publicidade infantil nos canais da TV aberta trouxe benefícios para a sociedade. “A resolução 163 do Conanda tenta minimizar os efeitos de estímulo ao consumo que a televisão pode gerar”, argumenta.

Estímulo esse que é sentido pelas famílias. Adriana analisa que “os anúncios são encantadores e se um amigo ou colega do Victor Ismael tem aquele brinquedo, ele acaba querendo mais e mais o produto”. Essa repetição nos anúncios é explicada por Jéssica Fragoso.“O público infantil tem características muito próprias de entendimento e do que os impactam. Coloridos, músicas e sentenças em repetição são técnicas do audiovisual próprias para o público”, observa. Apesar de ser frequente, o uso dessas técnicas é vetado pela resolução do Conanda de 2014.

Apesar das irregularidades, o consumismo infantil não é despertado apenas pela mídia. “As pessoas saem para consumir objetos, comidas, bebidas, roupas. É uma forma de entretenimento. Isso atinge diretamente as crianças. Por mais que exista uma reflexão sobre esse tema na atualidade, as famílias, as escolas e a mídia estimulam o consumo muitas vezes sem perceber”, adverte Thaís.

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