“Quando um indígena consegue entrar na faculdade é sempre uma festa”
Conheça a história do estudante kaingang que quer trabalhar na área da saúde para ajudar sua comunidade
Natural de uma comunidade kaingang de aproximadamente 600 pessoas, localizada no município de Faxinalzinho, no norte do estado gaúcho, o estudante de Fisioterapia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Julio de Paula, 24, iniciou sua jornada estudantil sob o mantra “fé, foco e força”.
Deoclides de Paula, coordenador do Conselho Estadual dos Povos Indígenas e pai de Julio, ensinou a ele uma filosofia de vida que une esforço, esperança e resistência. O jovem conta que conheceu a UFRGS através do pai. Ao longo da infância e adolescência se apegou às disciplinas de Ciências Exatas, principalmente física e química, acompanhando de perto os trabalhos de sua tia enfermeira, Juliana de Paula, na comunidade onde cresceu. “Minha vida como estudante se resume a uma sucessão de 'por quês?'. Eu perguntava o porquê de tal coisa acontecer, e ao saber a resposta me questionava o 'porquê' de determinado fenômeno se enquadrar como uma lei física, ou como ele me impactava enquanto pessoa”, recorda.
Buscando atender às principais demandas da comunidade e compreender mais a respeito dos temas que gosta, Julio inicialmente almejava a carreira de médico. De acordo com o estudante, cada comunidade indígena possui suas próprias necessidades em decorrência da regionalidade, somado à desconfiança dos povos originários em relação aos não indígenas. “No caso da área da saúde, convênios que atuam com o Sistema Único de Saúde (SUS) já exerceram preconceito ao atrasar atendimentos às comunidades indígenas ou apenas em não realizar um atendimento muito humanizado”, critica.
Quando foi oficializado que deixaria a comunidade kaingang para estudar na UFRGS todos o apoiaram, com exceção dos seis irmãos. De acordo com Julio, o senso de coletividade presente na cultura indígena fez com que eles reagissem mal ao fato dele precisar se distanciar para estudar. Ao mesmo tempo, sua aprovação no vestibular foi motivo de comemoração na aldeia. Festa, bolo e presentes marcaram as festividades da jornada de Julio rumo a uma nova fase. “No dia do resultado estava sendo feito um evento entre os membros da comunidade, até que foi oficializada a socialização para comemorar o resultado da prova. Diziam eles: esse é mais um guerreiro que vai trazer o conhecimento para a nossa comunidade”.
"Quando eu passei na faculdade meu pai agiu como se tivesse ganho na loteria”, relembra.
Luciana de Paula, 31, irmã mais velha de Julio, comenta que seus pais, Deoclides e Marta Francisca, se separaram quando o jovem tinha apenas 11 anos. Na época, Luciana tinha 18 anos e teve que sustentar os irmãos praticamente sozinha. “Foi uma fase muito difícil para mim porque eu ainda não trabalhava como professora de kaingang. Para cuidar dos meus irmãos comecei a trabalhar num frigorífico e me virava para sustentá-los”, desabafa. Luciana finaliza comentando o orgulho que sente da trajetória estudantil de Julio. “Hoje eles todos estão grandes e têm suas vidas. Julio sempre teve o sonho de ajudar quem precisa e ele foi para esse caminho na faculdade. É um irmão muito querido”, enaltece.
Julio iniciou a graduação no primeiro semestre de 2019. Temendo uma demora para entrar na universidade através da aprovação no curso de Medicina, optou pela Educação Física, já vislumbrando a possibilidade de trocar para uma graduação na área da saúde posteriormente, via transferência interna. Ao longo de 2021, após o retorno das atividades na UFRGS, depois da pandemia de Covid-19, formalizou uma transferência para o curso de Fisioterapia devido a uma grande conexão com a área.
Mas as impressões sobre o ambiente universitário revelaram a ele um cenário muito diferente do que imaginava. “Quando entrei na UFRGS senti um ambiente altamente competitivo. Sofremos preconceito de todas as pessoas da instituição, não apenas colegas e professores, mas também funcionários”, desabafa. O estudante revela que o ambiente individualista, diferente da realidade indígena, faz com que integrantes do ambiente universitário reproduzam condutas preconceituosas sem perceber, a exemplo daqueles que se posicionam contrários às cotas ou às políticas de acessibilidade indigenista nas instituições de ensino superior.
Fora do ambiente acadêmico e pensando no retorno para a aldeia, já atuando como fisioterapeuta, Julio revela que mantém contato quase diário com parentes e amigos que ficaram em Faxinalzinho. As conversas com membros da família e amigos indicam a preocupação com o seu bem-estar e visam marcar encontros. Apesar da distância, o contato do estudante com seu povo se mantém forte.
“Nas comunidades todos se apoiam, por isso ficamos surpresos com o individualismo da sociedade não indígena. Lá, até mesmo as lideranças locais costumam agir para conseguir transporte para os estudantes, além de organizarem festas e demais eventos de comemoração”, pontua.
Mas dentro da universidade Julio também fez amigos. Em 2018, ele conheceu Ismael Roque, 24 anos, estudante de Medicina, durante uma disciplina compartilhada entre os cursos da UFRGS. Ismael comenta que ambos já conviveram muito tempo juntos: de colegas de quarto no início da trajetória acadêmica para padrinho da filha do amigo aspirante a médico. “Hoje em dia considero ele meu melhor amigo”, conta.
Ismael comenta que vê em Julio uma determinação aos estudos, um foco em metas pessoais e muita resiliência. “Ele é um cara muito sério para muitas coisas, principalmente nos estudos. Ele também é muito determinado e tem seus objetivos e luta por eles. Às vezes, de certa forma, todo esse foco incomoda as pessoas que estão ao seu lado. Mas não eu, pois já o conheço e estou acostumado”, conclui.
O espírito desbravador de Julio, que jamais se afasta do mantra: “fé, foco e força”, revela seus grandes potenciais. Dedicado e trabalhador são adjetivos comumente atribuídos pela sua comunidade kaingang para descrevê-lo. Ao buscar palavras para definir a si, ele se vale das mesmas. “Indígenas são um coletivo”, esclarece Julio. Seja em Porto Alegre, no campus da UFRGS, ou em Faxinalzinho, ele jamais estará sozinho. “Tudo o que a sociedade não indígena precisa é de uma palavra de conforto”, finaliza.