Quando uma lei fere a Constituição
Discussões políticas sobre a inconstitucionalidade de leis e decretos acendem debate sobre mecanismos de controle constitucional
Por 10 votos a 1, o Supremo Tribunal Federal (STF), no final de maio deste ano, definiu como inconstitucional o trecho da Reforma Trabalhista que permitia a grávidas e lactantes exercer atividade insalubre. O veto foi resultado da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5938) solicitada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos. Proposta pelo presidente Michel Temer (MDB), a Lei 13.467 demorou dois anos, após sua aprovação, para ser alterada.
Antes, no mesmo mês, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) declarou sobre o decreto 9.785/2019, que flexibiliza a posse de arma no país: “Se for inconstitucional, tem que deixar de existir. Quem vai dar a palavra final é o plenário da Câmara ou a Justiça”. Após isso, o STF solicitou explicações sobre o projeto e o presidente alterou alguns trechos — agora em análise pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
Tanto o episódio da Reforma Trabalhista como do Decreto das Armas acendem o debate em torno do controle de constitucionalidade no país. Mas não é tão simples entender quem pode definir se uma lei deve ser alterada caso seja viole, de certa forma, a Constituição que protege os cidadãos. Existe um processo judiciário com diversos caminhos até uma norma legal ter a permissão de ser alterada.
O caminho da lei aprovada até a inconstitucionalidade
No percurso desde a proposição de uma lei até a assinatura do prefeito, governador ou presidente, seu texto passa pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça de cada esfera. Essa comissão permanente é responsável por revisar previamente se a legislação se enquadra constitucionalmente e juridicamente.
Entretanto, como relata o advogado e mestre em Direito Público pela UFRGS Joel Picinini, o órgão realiza avaliação técnica e cumpre os ritos internos, como votações — que geralmente dependem das interpretações jurídicas de quem avalia — no momento de elaboração da proposta. Assim, “podem ocorrer situações onde simplesmente haja divergência de interpretação entre a CCJ e o STF. Mas, como no Brasil, diferentemente de outros países, não há controle prévio de constitucionalidade, logo, a lei só é julgada pelo STF depois de entrar em vigor”, explica o advogado.
O advogado e especialista em Direito Constitucional Michael Almeida Di Giacomo dá uma visão mais profunda do funcionamento da CCJ. Ele foi coordenador da Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, em 2015.
“Devemos analisar que a Casa Legislativa é uma Casa Política, com todas as suas nuances. No caso, os parlamentares , em sua maioria, não têm formação jurídica. Mesmo muitos tendo advogados como assessores. Devemos olhar sempre por esse viés”, ilustra.
Controle de constitucionalidade
Existem duas formas de julgar a constitucionalidade de uma norma: através do controle difuso e do controle concentrado. Cada uma se distingue por seus caminhos jurídicos e seu alcance legal.
A decisão do STF, requerida via Ação Direta de Inconstitucionalidade, em vetar a norma da Reforma Trabalhista foi conquistada através do controle concentrado. Como explica Joel Picinini, apenas a instituição tem esse poder. “Nesse caso, a competência para julgar esse tipo de ação, como a ADI, é originária e exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Elas surtem efeitos ‘erga omnes’. Ou seja, a declaração de inconstitucionalidade irá valer para todos os processos judiciais em curso e será comunicada ao Senado Federal”, relata.
Já o controle difuso, segundo Picinini, pode ser feito por qualquer juiz. “Nesses casos, ao declarar uma lei inconstitucional, esse juiz vai deixar de aplicá-la a um determinado caso concreto. Essa decisão, no entanto, só irá surtir efeitos para aquele processo em específico”, define. Ou seja, é diferente das decisões do STF, que têm efeito imediato e irrestrito.
Entretanto, assim que alegada a inconstitucionalidade pelo juiz de primeira instância de um munício específico, a decisão pode passar por uma “transcendência de motivos determinantes”. Dessa forma, como explica Michael Di Giacomo, a ação de inconstitucionalidade passa a ser julgada por instâncias superiores, tendo seu valor ampliado e válido para todo o território nacional.
“Os juízes de primeira instância podem alegar inconstitucionalidade de alguma norma municipal, em ato contínuo esta decisão sobe ao Tribunal de Justiça do Estado, sendo o recurso extraordinário (em sede de Tribunal) encaminhado ao STF”, acrescenta Di Giacomo.
Independentemente da forma legal de definir a inconstitucionalidade de uma norma, o Supremo Tribunal Federal tem sempre a última palavra na hora de aplicar a medida em nível nacional. Segundo Di Giacomo, devemos pensar no STF como “o guardião da Constituição”.