Camisetas foram produzidas pela família para reforçar a luta (Foto: Cassia Schuch)

Quilombo Lemos e a terra negra na resistência

Moradores passaram por semanas tensas em reintegração de posse e caso foi levado para Justiça Federal

Natalia Collor
Redação Beta
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6 min readNov 20, 2018

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Era entre 8h e 8h30 da manhã da quarta-feira, 7 de novembro, quando o Batalhão de Choque da Brigada Militar, um caminhão de mudança, uma retroescavadeira e um oficial de justiça chegaram ao Quilombo Lemos. O local fica localizado em Porto Alegre, atrás do Asilo Padre Cacique, perto do Beira-Rio e da orla do Guaíba.

As quatro residências azuis, que ficam em um grande terreno arborizado, já habitaram 66 pessoas. O pátio de terra, hoje está coberto com uma lona que abriga rodas de samba quando a família se reúne. Crianças correm entre os grupos de pessoas que conversam no pátio, enquanto os bebês são passados de colo em colo, como uma espécie de revezamento.

As crianças no Quilombo tem muita energia e a terra também vira sinônimo de brincadeira (Foto: Cássia Schuch)

O quilombo é hoje o lar de cerca de 33 pessoas e esteve em meio a uma reintegração de posse por parte do Asilo Padre Cacique. Na quarta-feira, 7, o Batalhão de Choque e o oficial de justiça pediram para a família arrumar tudo o que tinham e saíssem da propriedade em 5 minutos, depois, “aliviaram” para meia hora o processo de retirada.

Desde 1964, a família Lemos vive no local. Foram o patriarca Jorge Alberto Rocha de Lemos e a matriarca, Delzia Gonçalves de Lemos que começaram o quilombo. O motivo de terem se instalado no terreno atrás do asilo foi pelo casal trabalhar no lar. Ele como zelador e ela na lavanderia e mais tarde no cuidado com os idosos.

Era cedo na quarta-feira, crianças dormiam e outras se preparavam para escola. Muitos já estavam em seus trabalhos desde ainda mais cedo, quando receberam ligações de Sandro Lemos, um dos filhos de Jorge e Delzia, para que voltassem para casa.

A presença do Batalhão de Choque gerou muita preocupação e incertezas entre os moradores (Foto: Cássia Schuch)

Delzia trabalhou 35 anos no Padre Cacique e Jorge por 46 anos. Eles tiveram 6 filhos e uma faleceu, mas seus dois filhos e as três filhas ainda vivem no quilombo com netos e bisnetos dos patriarcas. Em 2008, quando Jorge faleceu após um enfarto, o asilo entrou com uma reintegração de posse do terreno por usucapião. A sobrinha-neta do casal, Katiuscia Ribeiro explica que o local foi habitado por eles por não serem terra de ninguém na época.

Em entrevista ao Sul21, o presidente do asilo, Edson Brozoza contou sua versão de como a família chegou ao terreno que hoje habitam. “Na marra, no tapetão, ninguém vai ganhar, e esses invasores vão sair daí nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida, de qualquer jeito. E se invadirem nosso lar, vai dar morte”, afirmou.

De acordo com o assessor imobiliário Waldir Fleck Filho, usucapião é o direito que o indivíduo adquire em relação à posse de um bem móvel ou imóvel, após 5 anos no local a pessoa tem direito de entrar com um processo e conseguir a posse do imóvel.

“Quem deveria ter entrado com este processo era a família Lemos, já que sempre foram eles que viveram no local, mas por motivos econômicos o asilo entrou primeiro com o processo”, comenta João*, apoiador do movimento Quilombo Lemos Resiste.

*João é um nome fictício, já que o militante preferiu não divulgar seu nome

João é uma das pessoas que vestiu a camiseta amarela com os dizeres “Somos Quilombo Lemos” e decidiu entrar na frente de luta pela resistência da família no terreno. Na quarta-feira os apoiadores começaram a chegar, pessoas que se mobilizaram com arrecadações de doações e uma vigília, já que a chance de reintegração continuava de pé.

Sandro Lemos é o filho mais novo de Jorge e Delzia, patriarcas que começaram o quilombo (Foto: Cássia Schuch)

Sandro Lemos conta que ouviu do Batalhão de Choque que “não era para tentar nenhuma gracinha, ou iam dar em todo mundo”. Foi só quando o tenente-coronel Mario Augusto da Silva Ferreira chegou ao local que os ânimos se acalmaram, mas a ação durou por mais de cinco horas. “Foi muito traumatizante, minhas sobrinhas choravam, as crianças choravam. Todo mundo estava com medo”, afirma Sandro.

O processo de retirada da família não ocorreu na quarta-feira. Na segunda-feira, 19, após muita resistência e um ato em frente ao Fórum Central de Porto Alegre, a família conseguiu que a Justiça Federal decida sobre a permanência deles no local. Assim, entra em outra conotação, a Federal e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é o órgão que passa a lidar com a situação.

Por que Quilombo?

Historicamente os quilombos são conhecidos como os locais de habitação de negros fugitivos de fazendas, senzalas e prisões. Era um destes espaços que o líder negro, Zumbi dos Palmares comandou por 15 anos, o Quilombo dos Palmares, maior reduto de resistência à escravidão do período colonial. Foi Zumbi que deu origem a data de 20 de novembro, quando foi morto em 1695. Desde 2011 a data de sua morte serve para refletir sobre a presença do povo negro na sociedade, conhecido como Dia da Consciência Negra.

Katiuscia Ribeiro, além de ser da família Lemos é filosofa e pesquisadora sobre a cultura africana, ela acredita que hoje o quilombo não é mais espaço de negros fugitivos. João* complementa:

“Quilombos são territórios negros em que vivem descendentes de famílias que foram escravizadas. Eles habilitam estes lugares para uma territorialização e através da religião, musicalidade e dança resgatam a cultura negra que muito foi apagada”.

Música embalou os dias de resistência no quilombo (Foto: Cássia Schuch)

É o quilombo de Zumbi dos Palmares que dá nome a instituição que emite certificação de quilombo no Brasil — que a família Lemos já tem — emitido pela Fundação Palmares. Eles são hoje o sétimo quilombo urbano autorreconhecido de Porto Alegre, graças à certificação. A família é descendente do quilombo Maçambique, em Canguçu, de onde veio dona Delzia.

Ações culturais

Os dias que seguiram a ação da quarta-feira foram de uma programação cultural e de muita conversa no quilombo. Pessoas se uniram e ficaram em vigília no local, enquanto hip hop, samba e pagode tocavam. Crianças tinham oficinas de fotografia e até aprenderam a rimar.

Mariana Menezes é estudante de engenharia química, militante negra e esteve presente no quilombo durante os dias de resistência. “É uma luta minha e da comunidade negra, não me vejo como individuo e sim como grupo e comunidade. A luta é minha também, luto por mim, por meus irmãos e irmãs, pelos meus ancestrais e por quem ainda virá, não é só pela família, é por muito mais que isso”, desabafa.

Ela ainda comenta sobre sua experiência no movimento e afirma ter se sentido em casa no local. “Me sinto no meu dever como mulher negra e como militante de estar junto, de fortalecer os nossos. O quilombo é o lar de todo negro”, completa.

Crianças tiveram oficinas de fotografia com os fotógrafos que estavam no quilombo (Foto: Cássia Schuch)

Na quinta-feira, 15, Sonia Lemos, enquanto agradecia a presença do público, disse que toda ajuda era bem vinda, pediu para quem pudesse ficar, que ficasse, porque a família estava em constante vigília.

Assim se manteve por duas semanas. Katiuscia afirma que não se sabe como seguirá o processo, mas a resistência se mantém.

Batalha das Monstras foi uma das atrações culturais (Foto: Cássia Schuch)

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Natalia Collor
Redação Beta

Jornalista. Escrevo, exalto minas, tiro umas fotos, grito, chuto umas portas pelo caminho e vou levando quem eu posso comigo.