OMBUDSMAN: Regionalização, qualidade que pode esconder armadilhas

Nas primeiras publicações do ano, produção local parece ser a maior força e também a maior fraqueza na editoria Geral

Luana Rosales
Redação Beta
12 min readApr 11, 2020

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Alunos da Beta Geral produziram as primeiras reportagens no período de distanciamento social. (Foto: Christina Morillo/Pexels)

Em um ano que começa de forma tão particular, as primeiras publicações da Beta Redação em 2020 na editoria Geral foram marcadas pelas apurações regionais. Vindas da Serra Gaúcha, do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, da Região Metropolitana de Porto Alegre e até do Rio de Janeiro, as reportagens mostraram que a perspectiva local pode servir como um diferencial ou como uma armadilha.

Como o momento torna impossível fugir do assunto novo coronavírus, a regionalização é uma boa alternativa para conferir ineditismo a assuntos já aparentemente esgotados pelo noticiário, capaz de oferecer informações atualizadas a cada minuto. Nesta lógica, o leitor poderia conhecer determinado tema em termos globais, nacionais ou regionais, mas não sobre o que ocorre particularmente em uma cidade.

Por outro lado, o pertencimento ao município abordado pode se tornar um problema e, neste caso, talvez seja preciso deixá-lo um pouco de lado na hora de produzir as matérias. Isso porque é necessário ter a consciência de que qualquer pessoa no mundo, ou pelo menos no Brasil , pode estar lendo ou ouvindo o material divulgado. Para isso, contextualização é a palavra-chave.

Quando se fala em Tramandaí, por exemplo, é insuficiente chamar a cidade de capital das praias sem dizer que ela está localizada no RS — essa informação só está na linha de apoio da matéria em questão, sem ser repetida no texto — ou que ela possui cerca 51 mil habitantes. Se um leitor de outra unidade federativa tiver contato com o texto, provavelmente terá pouca ou nenhuma referência sobre o litoral gaúcho.

Durante e após a produção do material, vale praticar uma espécie de empatia jornalística, tentando pensar como o leitor pensaria ao consumi-lo. É importante questionar, a cada linha, que dúvidas as informações podem gerar e quais limitações podem trazer. Se os repórteres e editores não fizerem uma autocrítica, certamente os leitores o farão.

O pensamento também pode ser aplicado à forma de apresentação do conteúdo. Um formato como o podcast, que traz diferencial ao trabalho, acaba perdendo a sua força quando não pode ser ouvido por completo na página da Beta Redação, forçando o leitor acessar outra plataforma — com a qual ele pode não ter intimidade. É preciso facilitar a vida do público, que só quer apertar o botão de play e ouvir.

A ideia de ter uma playlist no Spotify é boa e a sugestão aqui não é desistir da mesma, mas promover uma duplicação do conteúdo para que ele alcance o maior número de pessoas possível. Para o site, utilizar o Soundcloud é uma boa alternativa.

Outra questão que a maioria das matérias desta primeira semana de publicações têm em comum é a dificuldade com o início dos textos — no sentido amplo da palavra — onde narrativas fluidas parecem engrenar somente depois do lead. Os leitores também observaram diversos detalhes que passaram despercebidos pela edição, como pontuação e erros de digitação, distrações que podem ser evitadas facilmente caso ganhem a atenção devida.

A produção PODCAST: Durante o isolamento social, famílias sofrem com atrasos nos processos de adoção, de Natan Cauduro e Renan Silva Neves, é um bom exemplo disso. O texto introdutório de apenas dois parágrafos apresenta tropeços de concordância, além de ser escrito em terceira pessoa, enquanto o áudio é apresentado em primeira. Já a questão destacada no título da postagem só aparece aos 13 minutos do áudio, o que pode cansar o ouvinte.

Repórteres olharam para as crianças que vivem em abrigos. (Foto: Sharon McCutcheon/Freepik)

O destaque positivo desta matéria vai para o tema adoção, que é o mais diferenciado e não perecível entre as publicações.

“Esse assunto é muito oportuno e acredito que até inédito em relação ao tema coronavírus. Interessante a abordagem mostrando essa realidade pouco abordada”, opina a leitora Rita Luz, professora e consultora de processos e finanças.

Quantos às fontes, o podcast oferece uma boa diversidade, com perspectivas oficiais e relatos mais pessoais. No entanto, a ouvinte Júlia Kunrath, gestora ambiental, considerou desnecessário o uso das fontes que já adotaram crianças. Para ela, o foco nos abrigos precisa ser maior.

Júlia tem interesse em saber como as instituições vão fazer para garantir materiais como álcool gel, máscaras e luvas para os menores. Além disso, sugeriu que os repórteres abordem qual será o procedimento se uma criança for diagnosticada com sintomas leves e tiver que ficar na sua casa, que é um abrigo com tantas outras pessoas.

De acordo com os comentários recebidos, a fala do repórter também poderia ser apresentada com mais naturalidade, sem deixar transparecer que o jornalista está lendo. Algumas respostas ainda se mostraram um pouco longas na edição.

Para Rita, o assunto em si já é triste e carregado do drama próprio do seu tema. Ela acredita que, se o locutor não se policiar para manter uma boa entonação, limpa e imparcial, poderá atribuir um peso desnecessário à notícia. “Creio que ele precise melhorar a postura da caixa torácica, sem comprimir o diafragma, e também a articulação das mandíbulas. A locução me pareceu triste, desanimada”, acrescentou.

Já o texto No Rio, ONGs e coletivos se unem para conscientizar e arrecadar doações, de Helen Appelt, esbarra no fato de que o tema vem sendo bastante explorado nos jornais e, por se tratar de uma cidade como o Rio de Janeiro, que sempre ganha destaque nacional, fica difícil trazer muitas novidades.

Atos de solidariedade nas favelas cariocas ganham espaço no noticiário. (Foto: Voz das Comunidades/Divulgação)

Para a leitora Rita Luz, que atua há 20 anos como voluntária, a abordagem é oportuna, pois há muitas pessoas que desconhecem a realidade das favelas quanto ao saneamento básico, por exemplo. “Mostrar também o significativo e necessário trabalho das ONGs é outro ponto bem positivo, pois desmistifica a ideia de que elas existem para ganhar dinheiro e não para trabalhar”, ressalta.

Apesar de ter alguns erros de edição, como uma frase começando em letra minúscula, o texto proporciona uma leitura que flui com facilidade. Poderia, no entanto, ter ido direto ao ponto das ações solidárias, assunto destacado no título da reportagem.

Para o leitor e jornalista Maurício Renner, a matéria ficou um pouco confusa quanto ao esclarecimento dos dados sobre população em favelas do Rio. “Uma hora fala em 10% da população do estado, outra, em 200 mil na Baixada Fluminense. Faria mais sentido se ater a um número claro sobre a área na qual atuam as ONGs citadas”, propõe.

Segundo Renner, faltou dimensionar a quantidade de pessoas sem água encanada ou qual é o aumento do álcool gel. Para ele, a relação entre o pronunciamento e a queda de engajamento na ação das fake news também não ficou muito clara.

“Acho que é importante usar os dados de forma elucidativa. Uma informação não pode servir para confundir o leitor”, opina Maurício Renner, jornalista.

Já a leitora Júlia Kunrath, moradora de Canoas, diz que buscou informações locais ao longo do texto e essa expectativa foi atendida. “Todas as dúvidas que foram vindo ela foi respondendo, então eu gostei bastante dessa reportagem, foi bem satisfatória”, elogia.

Na matéria em questão, é possível encontrar diversas falas interessantes. Isso poderia ainda ser aprimorado com a presença de alguma fonte que tenha sido beneficiada com as doações.

No caso da reportagem Em Dois Irmãos, voluntários fazem campanha para socorrer hospital, de Thaís Lauck, a regionalização é trabalhada de forma positiva na maior parte do texto. A repórter traz um tipo de ação que é largamente noticiada, mas o fato de ocorrer no município traz certo ineditismo. Ela também contextualizou o texto com informações sobre a cidade de Dois Irmãos, embora ainda pudesse explorar mais este recurso.

Já o fato de São Beiçado ser um grupo tradicional, por exemplo, poderia ter sido explicado antes, faltando também a contextualização do que significa Kerb, que é uma festa popular de origem alemã.

Tipo de ação tem sido muito abordada, mas regionalização traz novidade. (Foto: Arquivo pessoal/Divulgação)

A leitora Rita, moradora de Canoas, percebeu: “Provavelmente o autor desta matéria seja natural de Dois Irmãos, pois o texto é bem regional, me parecendo não ter muita relevância para circulação fora da região a qual ele diz respeito. Porém, apesar dessa característica, ele não deixa de ser relevante para a comunidade local pelo tema que aborda”.

Pequenas falhas de revisão, como, no trecho “Também foram entregues toucas e propés, doados pelo pediatra Jorge Alberto Pires Pereira. Diretor-administrativo da casa de saúde, Arno Berger destaca que a doação (…)” mostram que a falta de um artigo pode fazer diferença na clareza do texto pois, neste caso, é necessário ler as frases novamente para entender se o diretor administrativo, sem hífen, é Jorge ou Arno.

Para o jornalista Maurício Renner, foi difícil entender o tamanho da ação, faltando informações como a quantidade de pessoas que integram a Associação dos Voluntários do Hospital São José, quantas máscaras foram entregues e quantos funcionários do hospital vão usar as máscaras, por exemplo.

A narrativa ainda poderia ser mais enriquecida com fontes não oficiais, como alguém que doou os insumos ou alguma pessoa infectada pelo novo coronavírus.

Na avaliação da leitora Júlia, o tema não chamou atenção, assim como o da reportagem Tramandaí recorre a WhatsApp e atendimento domiciliar para enfrentar coronavírus, de Henrique Bergmann.

“São reportagens que não trazem fatos novos e eu, nessa situação de enxurrada de informações em que vivemos, não teria lido até o final se não fosse para esse trabalho solicitado. Eu fui lendo meio que no automático porque é um assunto que está muito batido”, conta Júlia Kunrath, gestora ambiental.

O texto sobre Tramandaí também tem o ponto positivo de trazer a questão regional, mas poderia ter explorado melhor a contextualização, como já foi citado anteriormente. No geral, o texto é bem escrito, fluido e fácil de ler. A foto usada, no entanto, poderia ter mais relação com o tema da Covid-19.

Na reportagem sobre Tramandaí, usou-se a foto de uma das fontes. (Foto: Câmara de Vereadores de Tramandaí)

Para a leitora Rita, o tema é interessante ao abordar uma nova alternativa de atuação na crise do país, que também pode ser utilizada por outras cidades. Ela ainda considera desnecessária a fala de uma das fontes sobre o presidente Jair Bolsonaro: “falo como um eleitor que votou nele. Com esse posicionamento dele, eu não votaria”.

Janaína Carvalho, técnica em radiologia, avaliou a matéria sob o ponto de vista do conteúdo, comentando que é muito válida a atitude tomada em Tramandaí, que diminui a circulação de pessoas. “Com o uso do aplicativo e o atendimento domiciliar, se evita aglomerações e idas desnecessárias aos postos e hospitais”, destacou.

Na matéria Caminhoneiros reclamam de desamparo nas estradas, de Ketlin de Siqueira, o assunto era pouco abordado na mídia no momento da reunião de pauta, mas acabou perecendo durante a apuração, sendo amplamente divulgado nos veículos jornalísticos. Mesmo assim, a matéria conseguiu trazer muitas informações novas, além de abordar o regional sem se limitar a isso.

No entanto, este é um dos casos em que a abertura do texto poderia ser melhor. “Tem várias coisas interessantes, depoimentos, a ação de Garibaldi. Mas a matéria abre com um dado de doentes que é repetido ad infinitum em tudo que é lugar e fica desatualizado muito rapidamente”, pontuou o leitor Renner.

Após o lead, o texto é muito bem escrito, pecando apenas em pequenos detalhes de digitação. Destaca-se o diferencial da repórter ter produzido fotos próprias, além de trazer vídeos, sem esquecer de contextualizá-los dentro da narrativa.

Reportagem contou com fotos produzidas pela repórter. (Foto: Ketlin de Siqueira)

Outro ponto positivo é o foco nas fontes não oficiais, tão importante na editoria de Geral.

“Interessante a construção deste texto pela pluralidade de relatos, assim como os anteriores também, com transcrições de manifestações dos diversos representantes dos temas abordados, como ONGs e caminhoneiros”, observa a leitora Rita.

Renner, por sua vez, sugere dar uma dimensão do tamanho do problema, apresentando quantificações, como o número de caminhões rodando no Brasil e o tamanho do problema do fechamento de restaurantes. “Aqui é difícil ter um dado sólido, mas dá para fazer uma levantamento. Por exemplo, o caminhoneiro X pode dizer que passou por X restaurantes fechados, ou que não conseguiu encontrar janta em X dias”, sugere o jornalista e editor.

Na construção Vacinação contra gripe influenza prioriza locais arejados, visita domiciliar e drive-thru, de Guilherme Pech e Gustavo Gomes Machado, o lead também não agradou.

Reportagem trouxe dados sobre a vacinação contra a gripe na Região Metropolitana de Porto Alegre. (Foto: Gustavo Machado/Jornal Acontece/Divulgação)

Como o tema da matéria é extremamente noticiado, uma solução simples de diferenciação seria o foco no fator local, trazendo o Vale do Sinos ou Região metropolitana para o título e para a abertura da matéria. O nome da região não foi sequer mencionado no texto e o fator estadual aqui poderia ser secundário, servindo apenas para fins de contextualização.

Para Renner, há uma coleta interessante de dados da ação de vacinação na Região Metropolitana, e algum deles certamente pode gerar um lead. O editor sugere observar informações como a cidade mais adiantada, a mais atrasada ou como a região se compara com os números nacionais.

No geral, faltam informações sobre as cidades, além de um item primordial em uma reportagem: relatos de fontes. A leitora Rita traz outro ponto que cai na armadilha da falta de contextualização.

“Me chamou atenção o fato de não mencionar a qual estado se refere a matéria. Fala em estado, mas não diz qual estado. Depois fala do número de pessoas vacinadas, mas ainda não diz onde”, ressalta Rita Luz.

Rita salienta isso pelo excesso de números apresentados, que deixaram o texto cansativo. Esta também é a opinião da leitora Júlia: “Ela é carregada de números e percentuais e não traz nada de novo para uma pessoa que está vendo a situação do estado”, opina.

O texto tem um grande potencial de aprimoramento, uma vez que é possível perceber que os autores escrevem bem. Outro ponto positivo é o infográfico com produção própria, feito de uma forma muito atrativa visualmente.

Para toda turma da Beta Geral, este promete ser um semestre de muito aprendizado, sendo muito importante observar as críticas dos leitores como valiosas oportunidades de ir além. Com toda a capacidade que cada um já possui, a dedicação e a criatividade podem ser os maiores aliados para driblar as dificuldades de produção impostas pelo distanciamento social.

Conheça os leitores convidados para o conselho da Beta Geral em 2020/1

Em todos os semestres, a Beta Redação tem um conselho de leitores que opina sobre as produções jornalísticas da editoria Geral, contribuindo para a coluna de ombudsman. No período de 2020/1, cinco novos voluntários estão lendo e o ouvindo as matérias.

Conheça os componentes do conselho do leitor:

Alexandre Teles, 38 anos, natural de Torres e morador de Porto Alegre. Cursou graduação, mestrado e doutorado em filosofia pela UFRGS, onde também se especializou em clínica psicanalítica. Trabalha como professor de filosofia na rede municipal de Porto Alegre e como psicanalista em consultório particular em Torres e na capital gaúcha.

Janaína Carvalho, 47 anos, solteira, mãe de Tanise, 29 anos. Nascida em Canoas, é moradora de Nova Santa Rita. Trabalha como técnica em radiologia no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Canoas, e cursa gestão hospitalar na FADERGS.

Júlia Inês Kunrath, 33 anos, solteira. Natural de Montenegro, é moradora de Canoas. Formou-se em gestão ambiental pela Unisinos, onde atualmente cursa engenharia ambiental. Trabalha como assistente de meio ambiente na General Motors.

Maurício Flach Renner, 39 anos, casado, pai do bebê Ingo. É natural de São Leopoldo e mora atualmente na Alemanha. Jornalista formado pela Unisinos em 2006, é sócio e editor do site Baguete, que cobre o mercado de Tecnologia da Informação.

Rita Luz, 49 anos, casada, mãe de Leonardo, 25 anos, e Pedro, 15 anos, cristã protestante. Natural de Porto Alegre, mora em Canoas há 15 anos. Formada em processos gerenciais pela Ulbra, cursa a segunda graduação em marketing na mesma instituição, onde também se especializou em gestão de instituições de ensino superior e em docência para o ensino superior. Cursa, ainda, MBA em finanças e controladoria pela Uniritter. Profissionalmente, atua como professora particular, além da revisão e formatação de textos e de trabalhos acadêmicos. Trabalha também como consultora de processos e finanças para o segundo e terceiro setores, além de voluntariar há mais de 20 anos em ONGs.

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Luana Rosales
Redação Beta

Escrevo, aprendo, viajo, logo existo. Não necessariamente nessa ordem.