Repressão às liberdades

Terceira matéria da série “O perfil político do Rio Grande do Sul” conta como os gaúchos vivenciaram — apoiando ou combatendo — a ditadura militar

Lidiane Menezes
Redação Beta
8 min readNov 8, 2018

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Por Bruna Bertoldi, Camila Tempas e Lidiane Menezes

Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo assumiram o poder durante o regime militar. (Foto: Acervo Presidência da República — Fotos Públicas/ Montagem)

Mais de duas décadas de tortura, censura à imprensa e direitos sociais e políticos restritos marcaram o período em que o Brasil sofreu uma ditadura militar. A partir da movimentação de organizações populares do governo de João Goulart, surgiu uma suposta ameaça de que poderia ser instalado um regime comunista no país. Por essa razão, as classes elitistas e os meios de comunicação apoiaram amplamente a chegada de militares ao poder. Contudo, tinha-se a falsa ideia que a intervenção seria unicamente para depor Jango da presidência brasileira.

Com a renúncia à presidência da República em agosto de 1961 pelo então presidente Jânio Quadros, assumira o vice, João Goulart, que popularmente era conhecido por apoiar ideias de esquerda. Por esse motivo, representantes militares enviaram uma solicitação de veto à posse de Jango no governo. Como impedir a posse do gaúcho violava as leis constitucionais, o pedido não foi aceito, e começaram a surgir em todo o país movimentos e greves contra a posse.

Em contrapartida no Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola — cunhado de Jango — organizava a Campanha da Legalidade. A Campanha defendia a manutenção da ordem jurídica, pois na época era eleito presidente e vice-presidente, fato que garantia por lei a posse de Goulart. Dos porões do Palácio Piratini Brizola movia a população a lutar pela posse de Jango, em pouco tempo a Campanha se estendeu para todo o sul do país através das rádios. Os militares inconformados ordenaram que a campanha fosse contida, mas Brizola exigiu plantão da Brigada Militar em frente ao Piratini como forma de manter a segurança no local. Com a resistência e receio de se iniciar uma guerra civil o comandante do III Exército, o general Machado Lopes, escolheu retirar a opressão.

Atento às ameaças que isso poderia causar ao país, o Congresso Nacional criou a emenda constitucional de número quatro, que estabelecia o regime parlamentarista no Brasil, diminuindo os poderes do presidente. Jango aceitou a medida e assumiu a República em setembro daquele ano. Em janeiro de 1963, através de um plebiscito, estava acabado o período parlamentarista.

Um ano depois, Jango anunciou as reformas de base, que incitaram ainda mais os movimentos sindicalistas, reforçados em seu governo. Além disso, ele pedia por uma reforma constitucional que acabasse com a estrutura tradicional e, segundo ele, arcaica de organização da sociedade brasileira.

Ideias vindas da Guerra Fria

A Guerra Fria surgiu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Foi uma disputa entre Estados Unidos, defendendo o capitalismo, e União Soviética, a favor do comunismo. Durante este período surgiram ditaduras em diversos países, mas na América Latina passou a se sentir maiores influências a partir de Cuba, conforme comenta o professor do curso de História da Universidade Feevale Rodrigo Perla Martins. “Havia uma caracterização que a Guerra Fria tinha entrado na América Latina a partir da Revolução Cubana, que aconteceu em 1959”, destaca.

Nesse contexto, os militares levaram essas questões como uma ameaça política e que tornava possível a instalação de uma forma de governo comunista no Brasil. Assim, com receio de o destino do Brasil ser igual ao de Cuba, as Forças Armadas, apoiadas pelo governo dos Estados Unidos, civis e meios de comunicação, depuseram o gaúcho da presidência e instauraram o Regime Militar no país.

Atos revogam leis

Sob o comando do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, os militares viram, segundo o historiador Bóris Fausto, que não havia possibilidade de se fazer uma reestruturação do país através do Congresso, então fizeram isso através do Poder Executivo. A partir dos Atos Institucionais, além de acabar com o Estado de Direito, criaram várias medidas para controlar, de forma totalitária, a sociedade brasileira. “Cassaram pessoas, cassaram deputados, aposentaram funcionários públicos, extinguiram partidos políticos”, explica. Para o professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS José Carlos Moreira da Silva Filho, “isso estabelece uma cultura de pouco respeito aos fundamentos constitucionais democráticos”.

A partir de então ficou registrado o bipartidarismo. De um lado, a Arena, que apoiava o governo militar, e do outro, o MDB, que era formado pela oposição. Dentro do contexto dos militares também havia dois polos distintos. A linha da Sorgonha acreditava que o país precisava de uma reforma, eliminando as ameaças sindicalistas e comunistas, para uma posterior redemocratização. Em contrapartida, a linha dura acreditava num regime totalitário muito distante dos direitos democráticos da sociedade brasileira.

Em 1967, assume a presidência o gaúcho Marechal Arthur da Costa e Silva, da linha dura. No ano seguinte, ocorreram vários movimentos a favor da redemocratização, como a caminhada dos 100 mil, por exemplo, e a explosão da Tropicália, movimento cultural de manifestação contra a ditadura. Para o governo, qualquer que fosse a abertura de radicais na sociedade, era preciso ser combatida, o que levou ao decreto do Ato Institucional nº 5 (AI-5).

Prontuários de presos políticos (Foto: Toninho Tavares/Agência Brasília)

José Carlos Moreira da Silva Filho, que foi conselheiro e vice-presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça por quase 10 anos, apresenta alguns dos direitos violados durante o regime militar. Confira abaixo.

As lutas armadas e o “Milagre Econômico”

Já em 1968, começaram a acontecer lutas armadas, influenciadas principalmente pela Revolução Cubana. Estas eram reprimidas fortemente pelos militares. As mortes e a tortura, segundo Fausto, viraram um instrumento político em todo o país. Fomentando esse período mais evidente de tortura e repressão, assume o poder outro gaúcho e militar da linha dura, Emílio Garrastazu Médici, em 1969. Além do lado sombrio de seu governo, Médici conseguiu alavancar o chamado Milagre Econômico, com um crescimento financeiro do país.

O milagre se caracterizava pelo crescimento econômico, baixa na inflação e a manutenção de grandes obras. O PIB, entre 1969 e 1973 era em torno de 10% a 14% ao ano, parecido com o desenvolvimento da China atualmente. Neste período, iniciou um crescimento gradual de empregados na indústria.

Início de mudanças

Na sequência, em 1970, assume Ernesto Geisel, gaúcho de Bento Gonçalves. O governo do militar foi marcado principalmente por um lento processo de abertura política. O general extinguiu o AI-5 e abrandou a lei de segurança nacional.

O último presidente do regime militar foi João Figueiredo. O carioca tinha a intenção de continuar a abertura política iniciada por Médici, ainda que tenha vindo do Serviço Nacional de Informações, que era um dos órgãos de repressão da ditadura.

“O fim da ditadura civil-militar se dá também em um contexto internacional. Os Estados Unidos, a partir de 1979, tira o apoio dessas ditaduras na América Latina. Na economia, há duas crises do petróleo, em 1973 e 1979, que vão retirar esse dito subsídio. Pois até 1973 o petróleo era muito barato, e economias como a do Brasil, que estava em expansão, comprava o petróleo dos árabes a preço muito barato”, explica o professor Rodrigo Martins.

Militares optaram por continuar comprando, o que gerou um endividamento e, a partir de 1979, o aumento do desemprego e da inflação. Houve uma reorganização da comunidade civil e o MDB passa a se manifestar no congresso em busca da redemocratização. “Começa uma abertura. lenta gradual e segura”, ressalta Martins.

O fim do regime

Em 1984 houve o movimento sócio-político das Diretas Já, que tinha como objetivo promover as eleições diretas para presidente da República. A iniciativa fracassou. Em contrapartida, o Colégio Eleitoral realizou eleições indiretas que elegeram Tancredo Neves como presidente do Brasil, dando fim ao regime militar no país. Tancredo morreu antes de assumir como presidente e quem ocupou o cargo foi o seu vice, José Sarney, primeiro presidente da redemocratização.

Diretas Já movimentaram brasileiros de todos os estados (Foto: Célio Azevedo/ Senado Federal)

Porto Alegre e a ditadura militar

Embora os estados de São Paulo e Rio de Janeiro tenham sido fontes principais e locais com maior repressão, o Rio Grande do Sul também teve um papel estratégico para o regime. Segundo relatórios da Comissão da Verdade — grupo que foi instituído pelo governo do Brasil para investigar as graves violações aos direitos humanos e que reuniu e produziu um conjunto de relatórios —, no estado existiram 39 pontos de repressão conhecidos, fora alguns que mantiveram-se encobertos.

Pessoa que eram contra ao regime comumente eram presas, interrogadas e torturadas, quando não eram mortas. “Advertências, prisões e interrogatórios pelo DOPS aconteciam, como: ameaças, perseguições a opositores, investigações, serviços secretos, sem mandatos para entrar nas residências das pessoas — vulgo conhecido como “pé na porta” — , desaparecimentos (famílias ficavam dias, semanas e meses sem saber do paradeiro do familiar). Muitas vezes nunca mais encontravam porque a pessoa era morta e enterrada de maneira clandestina. Ou então os chamados voos da morte, onde colocava a pessoa viva e sedada em aviões, dentro de sacos, e atiravam no oceano. Como o caso em Porto Alegre que ficou conhecido como “o caso das mão amarradas”, conta Rodrigo Perla Martins.

Nos locais, presos políticos foram torturados e outras arbitrariedades foram cometidas. Na capital, o principal centro das atrocidades foi o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), que passou por dois locais diferentes, o mais conhecido sendo o prédio que abriga o Palácio da Polícia nos dias atuais.

Palácio da Polícia foi sede do Departamento de Ordem Política e Social. (Foto: Polícia Civil/ Divulgação)

Mas esse não é o único local que guarda lembranças dessa época. Pensando nisso e com o objetivo de não deixar a história que envolve a ditadura se apagar, uma estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul resolveu criar um mapa interativo listando todos os pontos da cidade que possuem alguma ligação com o regime militar. Anita Natividade Carneiro é historiadora e realiza pesquisas na área.

Conforme a estudante, a ideia de criar o mapa digital surgiu em uma disciplina da universidade. “Ele começou com alguns poucos lugares, fui pesquisando em reportagens, artigos, trabalhos acadêmicos, depois fui unindo com documentários, imagens, músicas e outras coisas”, diz. O trabalho acabou ganhando grandes proporções quando pessoas começaram a informar novos locais através de um formulário disponibilizado na plataforma.

Segundo Anita, a ferramenta criada em cima do Google Maps é interativa e aberta para que as pessoas acrescentem mais informações e locais relacionados. “Eu digo que ele está sempre em construção, nunca está pronto na verdade, desde 2016 vem sendo atualizado. Hoje estou ampliando o trabalho com a bolsa de iniciação científica para mapear todo o Rio Grande do Sul”, conta.

Além do mapa, a estudante também administra um perfil na rede social Instagram, onde posta fotos dos locais ligados à ditadura.“Basicamente eu vou nos lugares do mapa, tiro fotos e posto no Instagram com as informações que já constavam no mapa originalmente. Nas sextas-feiras eu coloco dicas de leitura. Fiz recentemente vídeos e stories sobre o Enem, já que a ditadura caiu no Enem. Estou com um projeto sobre personalidades negras ligadas à ditadura, e também estou fazendo uma série de vídeos para o IG TV sobre mitos da ditadura”, revela.

Para Anita, o mapa é uma importante trabalho que pode ser utilizado até mesmo em sala de aula no ensino da história. “O mapa Caminhos da Ditadura objetiva vencer esse esquecimento na cidade de Porto Alegre, alcançando, quem sabe, aqueles que um dia poderão fazer justiça”, afirma.

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