Rosalía e seu ‘El Mal Querer’ são um novo sopro na música pop latina

Segundo disco da cantora catalã é um híbrido de flamenco e R&B, mais promissor do que qualquer outro disco latino de 2018

Laura Pavessi
Redação Beta
5 min readDec 4, 2018

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Capa do disco. O amplo e criativo projeto visual foi todo desenvolvido pelo artista espanhol Filip Custic. (Foto: Divulgação)

Não há como negar que a música pop latina é um mercado gigante mesmo em cenários competitivos como os Estados Unidos. De acordo com a RIAA (Recording Industry Association of America), no primeiro semestre de 2017 a música latina gerou uma receita 44% maior do que a do ano anterior, totalizando US$ 115 milhões. Ao fim do ano passado, artistas como J Alvarez, Luis Fonsi e Maluma conquistavam discos de ouro, platina e diamante, respectivamente. Isso põe por terra a teoria de que, para se fazer sucesso internacionalmente, o artista deveria se adequar — estética, sonora e linguisticamente — aos padrões impostos pelo mercado estadunidense.

O fato que talvez explique parte desse sucesso das estrelas latinas é que a música pop, em si, está se transformando. Artistas americanos de carreiras consolidadas, que contam com o suporte de grandes gravadoras e grandes times de produtores e compositores, hoje sentem muita dificuldade para emplacar um hit. Há um certo esgotamento de todas as fórmulas que vinham dando certo até alguns anos atrás. Essa situação abre espaço para que gigantes como Beyoncé se reinventem, como aconteceu em Lemonade (2016); gêneros como o rap e a música latina conquistem novos públicos; e, também, que novos artistas com referências que são alheias ao repertório manjado do pop comercial virem a grande sensação do momento.

Vimos esse movimento se desenhar com o sucesso de Lana del Rey a partir de 2012. Embora Born to Die (2012) tenha recebido uma produção de ponta, foi um disco inteligente no sentido de reapresentar influências que no momento estavam esquecidas pelo mainstream, como a cultura dos anos 40 e 50, e dar a elas nova vida em um mundo marcado pela cultura remix e pela popularização da web. Ainda que esse tipo de movimento abra brechas para muitos esforços de apropriações culturais, não deixa de ser terreno fértil para quem souber aproveitar a oportunidade de repensar suas próprias raízes através da arte.

O mercado da música pop mundial, em 2018, é um mercado que está aberto a artistas como a brasileira Anitta, a colombiana Kali Uchis e, agora mais do que nunca, a Rosalía, uma espanhola de 25 anos. Sua releitura da tradição flamenca expõe um olhar moderno, globalizado e maduro para uma cultura que sempre fez parte do seu mundo. No entanto, é verdade que esse tipo de aproximação do flamenco a outros universos musicais, do jazz ao rock, não se trata de novidade: de Paco de Lucia a Las Grecas, sampleadas em Kowboyz&Indians do Gonjasufi, o flamenco tem inspirado novos sons por anos.

Mas Rosalía leva essa mistura a outro nível desde seu primeiro álbum, o bem-sucedido Los Ángeles (2016), e vem agora a confirmar a sua vocação: a tradição está presente nas palmas características do ritmo latino em quase todas as canções e dos vocais à frente e ao centro das faixas. Mas o flamenco de Rosalía é um flamenco desconstruído, fragmentado para então ser remendado e feito novo através da costura de referências contemporâneas. Os arranjos são expressões minimalistas de batidas eletrônicas, permeados por alusões a um mundo que se desenha a partir do cenário urbano e é marcado pela violência, da qual somos lembrados através do som de facões e do ronco de motores, e do melodrama tradicional latino expresso nas letras de cada canção do registro. Tudo isso constitui um R&B desafiador e inteligente, completamente novo, mergulhado em experimentações.

Produzido em parceria com El Guincho e lançado no formato de uma narrativa, com cada uma das 11 faixas representando um capítulo diferente da mesma história, El Mal Querer teve a gigante Sony por trás do seu lançamento e já rendeu certificado de platina duplo à artista e também os títulos de Melhor Canção Alternativa e Melhor Fusão/Interpretação Urbana no último Grammy Latino, além de a jovem ser a artista mulher com mais indicações nesta edição.

Diversas faixas do disco de 30 minutos ainda se desdobraram para o audiovisual, ganhando coreografias e representações visuais riquíssimas que misturam ciganismo, religião, skate e caminhões, dialogando de uma forma exemplar com o conceito do disco e vindo a compor de forma ainda mais complexa a estética de El Mal Querer. Aliás, são produções que em nada ficam devendo ao padrão dos clipes produzidos para grandes figurões do pop americano, mostrando que a indústria tem investido pesado no potencial comercial de Rosalía — e, com o empurrãozinho de nomes como Dua Lipa e Pharrell Williams, assumidamente fãs da artista e com os quais ela deve colaborar em seu próximo registro, as apostas têm tudo para dar certo.

Malamente é uma das faixas que ganharam vídeo (assinado pelo hypado Canada) e o principal esforço comercial do trabalho. Não à toa, é a música que abre o álbum, e talvez a que melhor ilustre o R&B alternativo da artista. Junto com Pienso en tu Mirá, fazem a dobradinha de hits desde o recente lançamento da obra e dão a falsa perspectiva de um álbum composto por canções amigáveis ao rádio e às playlists de baladas, o que se confirma como uma ilusão a partir da estonteante Reniego, com vocais poderosos e um arranjo impecável de cordas, da melancólica Nana e do poder comovente da ode à independência que toma forma em A Ningún Hombre. Ainda há no disco espaço para faixas mais experimentais, como Maldición, décima faixa do disco, que conta com fragmentos sampleados de Answer Me, originalmente lançada por Arthur Russell no álbum World of Echo (1986). Rosalía exibe como que com orgulho o seu amplo e refinado leque de referências de forma explícita: quem conhece os grandes fenômenos do pop saberá reconhecer o sample de Justin Timberlake em Bagdad.

El Mal Querer é um divisor de águas pois vem a confirmar que a globalização da informação e das culturas pode, enfim, não decretar a morte das tradições e características locais, mas sim agir como uma plataforma para a sua valorização, contribuindo para que elas alcancem audiências inimagináveis e fiquem registradas para sempre na história da musica pop mundial. Parece ser esse o objetivo de Rosalía — e podemos torcer para que outros, com diferentes bagagens culturais, tenham o mesmo sucesso.

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