RS tem quase mil feminicídios nos últimos dez anos

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5 min readDec 12, 2022

O número de mulheres assassinadas, na grande maioria dos casos por companheiros, ou ex-companheiros, demonstram que o risco para as vítimas está dentro de casa

Foto: Gabrielli Zanfran

Por: Gabriel Jaeger, Gabrielli Zanfran, Leila Inês, Leonardo Martins e Lohana Souza

Foi na manhã de 15 de maio, um domingo, que Gisele foi atacada. Publicitária aposentada, ela tinha 49 anos e adorava dividir seu tempo com os dois filhos. Ativa socialmente, gostava de viajar para a serra e praticava esgrima. Natural de Porto Alegre, já havia morado em Florianópolis e São Francisco de Paula, mas tinha retornado à capital depois que os pais faleceram para cuidar da irmã que tem síndrome de down. A aposentada sempre foi uma mulher muito querida por amigos e parentes. De acordo com a polícia, o companheiro de 35 anos foi o responsável pelo crime de feminicídio.

Gisele Olabarriga virou estatística de uma tragédia gaúcha e brasileira. Ela foi uma das quase mil mulheres vítimas de feminicídio em dez anos. Um mapeamento realizado pela Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP-RS) revelou que as mortes de feminicídios neste período colocam o Estado gaúcho como o quarto mais violento do país para o gênero feminino em 2020. Em 2019, chegou a ocupar o 3º lugar no ranking. No total, de janeiro de 2012 a maio de 2022, foram 991 mulheres gaúchas mortas e 2.775 tentativas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e da SSP. Na soma das mulheres assassinadas foram contabilizadas cinco mulheres travestis ou transexuais no ano de 2021.

Total de tentativas e feminicídios nos últimos dez anos no estado.

O recorte dos últimos três anos, que incluem a pandemia de Coronavírus, revela que a tragédia está longe de chegar ao fim. Os crimes ocorreram em todo o território gaúcho, mas as cidades que mais concentram essa violência estão na região metropolitana. A estatística revela que mais de 80% dos casos foram cometidos por homens, que tinham ou tiveram algum relacionamento com a vítima. O dado só reforça que o maior risco para as mulheres está dentro de casa.

Ranking dos estados com maior número de mortes de mulheres.

A cada trinta minutos uma mulher é agredida no RS

Como a história de violência começa? Que sinais são esses que são pouco percebidos pelas mulheres? No memorial Quem Ama Liberta é possível conhecer um pouco mais sobre a história de vítimas como a de Gisele, narrada no início da matéria. Foi por golpes de faca que ela perdeu a vida. O filho disse que a mãe já possuía o desejo de se separar, o casal estava junto desde 2019.

Assim como na maioria dos casos, a vítima sofria com as agressões e a desconfiança por parte do agressor. A Delegada Cristiane Pires Ramos afirmou, na reportagem publicada pelo memorial, que a motivação do crime teria sido o ciúme excessivo. Gisele, porém, não havia prestado queixa e também não possuía medida protetiva.

“O feminicídio é uma qualificadora do homicídio, com natureza subjetiva. A vítima é simplesmente agredida pelo fato de ser mulher. Em algum momento a rede, a sociedade como um todo está falhando. A vítima às vezes nem se dá conta e não sabe que está em um contexto de violência doméstica”, explicou a promotora de justiça gaúcha Carla Frós, coordenadora do GEPEVID/MPRS (Grupo Especial de Prevenção à Violência Doméstica e Familiar).

O que falta para o RS enfrentar o feminicídio?

Thaís Siqueira, mestre em Psicologia Social e Institucional, especialista em Psicologia Jurídica e coordenadora da Lupa Feminista elenca os fatores de risco que resultam nestes dados.

“Não há serviços especializados em todos os municípios, sendo assim, é necessário que os serviços que trabalham com estas demandas estejam preparados: sensibilizando as equipes no atendimento, formando profissionais especializados sem julgar ou culpabilizar a vítima, para saber identificar situações de violência e saber quais encaminhamentos precisam ser realizados”.

A Assembleia Legislativa do RS montou uma Força Tarefa no Combate ao Feminicídio. Essa força tarefa tem o objetivo de cobrar ações do governo gaúcho como reivindicação pelo fim da violência contra a mulher, entre elas a necessidade do levantamento e sistematização de dados e estatísticas, além da identificação e busca de recursos para orçamento e investimento em políticas para as mulheres do estado.

A coordenadora técnica dessa Força é a advogada, militante do movimento de mulheres e feminista Ariane Leitão. Ela foi secretária estadual de Políticas para as Mulheres em 2014 e destaca que o combate à violência doméstica no RS foi prejudicado pela desestruturação dos serviços, devido a um contingenciamento federal. “Nós tivemos um retrocesso, os valores de combate à violência contra as mulheres foram contingenciados e isso acaba afetando principalmente as mulheres, negros e a população LGBTQIA+. O planalto de janeiro de 2019 até julho de 2021 deixou de investir R$376,4 milhões em políticas para mulheres O público feminino foi extremamente afetado com a falta de recursos nesta gestão atual do Governo Bolsonaro”, contou.

O Estado conta com 23 Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs), possuindo em funcionamento 51 Salas das Margaridas, que são espaços de acolhimento à violência doméstica. Ariane, destacou como é importante para a vítima ter suporte. “Segundo a lei Maria da Penha os Centro de Referência Estadual da Mulher são o espaço chave para conseguirmos organizar a rede de apoio às vítimas. O espaço de denúncia deveria começar pelo Centro de Referência Estadual da Mulher e depois ir para os outros serviços. Normalmente, as mulheres acessam como porta de entrada tanto o serviço de saúde quanto as delegacias para realizar as denúncias. Muitas vezes esses dados acabam não se encontrando. Como oficialmente não temos mais a rede no Estado, então não temos o encaminhamento como deveria ser nesses processos tanto de vítimas, quanto das famílias”.

Além da falta de investimento social do Governo Federal, a política de liberação do porte de armas das portarias incluídas nos últimos anos pela União, favoreceram o aumento dos crimes contra mulheres com armas de fogo. De acordo com a jornalista Niara de Oliveira, uma das autoras do livro “Histórias de morte matada contadas feito morte morrida — a narrativa de feminicídios na imprensa brasileira”, o porte de arma no RS teve um aumento de 70% no estado. “Em menos de dois anos, praticamente equiparou o número de feminicídios cometidos por arma de fogo aos cometidos por arma branca. É assustador, não é o principal fator, mas consolidou o RS entre os Estados que mais mataram mulheres por sua condição de gênero”, ressaltou.

Nesta série de três reportagens vamos investigar os casos de feminicídios no estado, especificamente, nas cidades de Canoas, Novo Hamburgo, Porto Alegre e São Leopoldo, mas sem esquecer das narrativas das mulheres que foram assassinadas em todo Estado. Os quatro municípios escolhidos foram definidos por se inserirem na Região Metropolitana e também estão dentro das nove cidades mais populosas do Rio Grande do Sul. Nesta primeira matéria trataremos sobre os números no estado, na segunda o perfil das vítimas e dos agressores, e na terceira contaremos o relato da mãe de uma vítima de feminicídio que decidiu contar a história de cada uma delas.

Conheça mais o perfil dos agressores na próxima matéria.

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A Beta Redação integra diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em cinco editorias.