“The Handmaid’s Tale”: medos atuais de uma história criada há 34 anos

Baseada no romance de Margaret Atwood, série premiada evoca perigos do fundamentalismo religioso e da opressão às mulheres

Juliane Kerschner
Redação Beta
8 min readMay 17, 2019

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Estreia da terceira temporada está marcada para o dia 5 de junho.(Arte: Beta Redação)

A escritora Margaret Atwood lançou o livro ficcional O Conto da Aia em 1985. Mal sabia a autora que, após mais de 30 anos, a história distópica se aproximaria tanto do público ao ser adaptada para uma produção televisiva. Em 2017, o canal de streaming Hulu lançou a primeira temporada de The Handmaid’s Tale, ou O Conto da Aia (em português). O sucesso de crítica da série — além dos oito Emmy Awards e dois Globos de Ouro — concedeu a continuidade da produção, que está prestes a estrear a terceira temporada no dia 5 de junho.

O retorno será especial: serão lançados simultaneamente os três primeiros episódios, totalizando três horas de duração. Apesar de ser uma história escrita em 1985, The Handmaid’s Tale surpreende pela temática atual, vinculada ao momento político mundial — deixando a atmosfera da série ainda mais tensa.

Imagens de violência podem gerar gatilhos psicológicos

Na série, a protagonista é June Osborne, interpretada por Elisabeth Moss, ganhadora do Emmy 2017 e do Globo de Ouro 2018 como melhor atriz dramática. June é uma mulher comum que trabalha como editora, mora com Luke (O. T. Fagbenle) e é mãe de Hannah (Jordana Blake).

Do dia para noite, a vida de June muda: ela perde todos os seus direitos, é separada da família e passa pelas mais terríveis formas de tortura. June assume o papel de aia e se torna Offred. Ao longo da série, acompanhamos a sua história de resistência, luta, esperança e fé em sobreviver, em encontrar a filha e em um mundo melhor.

Contudo, toda forma de violência presente na série pode ser desconfortável para algumas telespectadores, apesar de ser uma obra ficcional e com uma bela fotografia e direção. “Precisamos ter consciência de que a série carrega cenas fortes que podem trazer sofrimento emocional, principalmente para quem já sofreu algum trauma sexual, físico e psicológico. Acredito que o enorme desconforto causado é pelo conhecimento de que é uma realidade social”, observa a psicóloga e mestranda em Direitos Humanos Ana Claudia Delajustine, 27 anos.

Cenas de violência podem causar desconforto ao telespectador (Arte: Beta Redação)

Série evidencia perigos reais de governos autoritários e fundamentalismo religioso

A psicóloga Ana Claudia afirma que outro desconforto emocional presente na série é por semelhanças com a nossa sociedade atual. “Gilead (nação fictícia) surgiu sob um ataque do fundamentalismo religioso que ameaça diretamente a vida digna de certas populações: mulheres e LGBTQ+, por exemplo. Após analisar um breve resumo de como funciona Gilead, colocamos em pauta o que vem sendo discutido no Brasil: o controle reprodutivo da mulher, a LGBTQ+fobia e o fundamentalismo religioso como política”, explica Ana Claudia.

“Nosso país é um dos que mais matam transexuais e despencou para 68º lugar seguro para LGBTQ+ em 2019. No mesmo ano, discute-se na Câmara Federal a possibilidade da criminalização do aborto até mesmo em casos de estupros; e ainda fala-se sobre o uso de contraceptivos como métodos abortivos. Se não bastasse, temos bancada religiosa na Câmara e no Senado em um país dito laico, em ascensão pelo presidente que, no seu slogan de campanha, carregou ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’. É visível que na série Gilead ergueu-se de modo muito mais explícito, mas não há como deixar de pensar nessas semelhanças”, completa a psicóloga.

Margaret Atwood, a autora do livro, sempre afirma em suas entrevistas que a obra na qual a série se baseia não é ficção científica, mas, sim, ficção especulativa: ou seja, uma realidade que já está na nossa frente. “Por isso, acredito que a série tem a intenção de causar desconforto mesmo, porque todo desconforto causa um movimento e talvez seja para estarmos atentas aos nossos direitos e lutar por eles. A série evidencia perigos reais de governos autoritários e fundamentalistas religiosos”, salienta Ana Claudia.

“The Handmaid’s Tale” é uma grande alegoria sobre todas as forças do patriarcado e da religião e sua atuação na opressão do corpo feminino (Arte: Beta Redação)

Sucesso da produção se baseia no conteúdo e no cuidado visual

A série, que tem duas temporadas, com 10 e 13 episódios, respectivamente, também deve seu sucesso às excelentes e premiadas atuações e ao belo trabalho de direção e fotografia, que, ao utilizar uma imagem mais “lavada” (opaca e com cores desbotadas), transmite uma sensação de tristeza. A série já começa com June vivendo em Gilead e trabalha com flashbacks ao longo da trama.

Os episódios têm em torno de 50 minutos e mostram na tela apenas uma cor viva: a vermelha, das aias, que representa a vida e a fertilidade. Os acessórios também são muito significativas: o uso de um chapéu branco com abas, semelhante ao usado em cavalos, evita que as aias olhem o mundo ao seu redor. Na série, as roupas femininas escondem e recriminam a sexualidade e o corpo da mulher.

A jornalista e crítica de cinema Bianca de França Zasso, 32 anos, integrante da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), apesar de criticar a quantidade de cenas violentas na segunda temporada, enxerga uma necessidade por trás do exagero. “Acho que poderia ter tido um pouco mais de cuidado, mas daí você pensa, ‘Acho que um público masculino precisa dessa cena de choque para ficar mais atento, ser mais empático nessa questão da violência contra a mulher’. Acho que essa foi a intenção dos roteiristas e também dos diretores”, destaca a jornalista.

A crítica de cinema também salienta a preocupação visual da produção. “É uma série com ares bastante cinematográficos, com a preocupação visual de não ser tal televisiva e ter esse flerte com o cinema. Visualmente tem muito que oferecer, além de ser válida para estudos e para promover discussões sobre questões sociais.”

Para Bianca, o sucesso de The Handmaid’s Tale está na qualidade da sua produção e na reflexão que ela promove no nosso atual momento político e social.

“Eu acho que nunca antes a gente precisou tanto buscar esses clássicos, esses livros que abordam distopias, mas que sempre têm um pé na realidade. Infelizmente, a série dialoga com várias coisas da nossa sociedade no que diz respeito à violência contra a mulher, no controle do Estado e da Igreja para o corpo da mulher”, diz a jornalista.

The Handmaid’s Tale é uma grande alegoria sobre todas as forças do patriarcado e da religião, e como elas atuam na opressão do corpo feminino, das escolhas das mulheres — os homens, seja o pastor, o padre ou o marido, ainda são os detentores dos corpos femininos. “Acho que a série faz a gente questionar a realidade que está aí, de mulheres que votam em homens misóginos, de mulheres que não têm empatia por outras mulheres com opiniões diferentes. Infelizmente, enxergo muito isso na nossa sociedade de hoje, além do risco que corremos de perder o pouco que conquistamos”, conclui Bianca.

No Brasil, “The Handmaid’s Tale” é exibida no canal por assinatura Paramount Channel e no serviço de streaming da TV Globo, o Globoplay. (Arte: Beta Redação)

Enredo da série foca na fragilidade da democracia e dos direitos das mulheres

A série se passa em um futuro distópico e próximo, onde as taxas de fertilidade caíram em todo o mundo e o nascimento de uma criança se tornou uma raridade — essa situação ocorre devido às altas taxas de poluição e de doenças sexualmente transmissíveis. Em meio ao caos, determinado grupo resolve tomar o poder e, através de um atentado terrorista, ceifa a vida do presidente dos Estados Unidos e de grande parte de outros políticos eleitos. Dessa forma, uma facção religiosa cristã toma o poder com o intuito declarado de restaurar a paz.

O grupo transforma o país na República de Gilead, instaurando um regime totalitário baseado nas leis do antigo testamento, que retira os direitos das minorias — em especial das mulheres e dos homossexuais, denominados traidores de gênero. As mulheres, a partir desse momento, perdem todos os seus direitos e são proibidas de trabalhar. Como se não bastasse, todos os seus bens passam a pertencer ao marido (ou familiar homem mais próximo) e elas são dividas em castas: as aias, as marthas, as tias e as esposas.

As marthas são mulheres recrutadas para servir aos comandantes e suas casas, tendo o dever do trabalho doméstico e de utilizar um uniforme cinza. As esposas são as mulheres dos comandantes, inférteis e que utilizam vestimentas verdes. As tias, são as mulheres responsáveis pelo controle das aias e tem como trabalho transformar as mulheres férteis em mulheres submissas que aceitam sua nova condição de vida — isso acontece através de violência física e psicológica. As tias também atuam na pacificação da relação entre as esposas e as aias, sendo seus uniformes marrons. Por fim, as aias, que vestem vermelho vivo e uma touca branca, têm a função de procriar e manter os níveis demográficos da população.

As poucas mulheres que ainda são férteis e que já tiveram filhos ou abortaram, mas apresentaram fertilidade, são separadas das famílias, abandonam suas vidas e passam a ser torturadas até se tornarem submissas. Sem opinião ou vontade própria, elas são consideradas apenas seres de reprodução e perdem suas identidades e nomes.

A partir desse momento, essas mulheres se tornam aias ou, por exemplo, Offred, que significa Of Fred (“do Fred”, em português). As aias, após o treinamento, são destinadas às casas dos comandantes e lá são nomeadas conforme o nome do seu superior: enquanto estiverem na casa do Fred, são Offred; já na casa do Glen, são Ofglen.

Cada casa de um comandante possui uma esposa, uma aia e uma martha. As aias têm poucas atividades domésticas, porém, todos os meses, em seu período fértil, são estupradas pelos comandantes com o intuito de engravidarem e oferecerem um filho para aquela família.

Para convencer as esposas e transformar a situação criminosa em algo aceitável, os Filhos de Jacó, como se autodenomina o grupo, chamam a ocasião de Cerimônia, a fim de dar um caráter religioso. Nesse momento, as aias se deitam entre as pernas das esposas em uma cerimônia sexual, sem troca de carícias, apenas com o fim da procriação.

Antes do estupro, é lido um trecho da Bíblia que diz:

“Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó: Dá-me filhos, senão morro. E ela disse: Eis aqui minha serva Bila, coabita com ela, para que dê à luz sobre meus joelhos, e eu assim receba filhos por ela” (Gênesis 30:1:3).

Caso uma aia consiga engravidar, ela fica a gestação e o período de amamentação na casa do oficial e depois é transferida para a residência de outro comandante para procriar para a próxima família, não possuindo o direito de criar ou ver seus próprios filhos. Todos os fatos são vinculados à religião com o intuito de utilizar a mesma para justificar as crueldades impostas por esse novo governo.

No Brasil, The Handmaid’s Tale é exibida no canal por assinatura Paramount Channel e no serviço de streaming da TV Globo, o Globoplay.

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