“Trabalhar com arte é levantar a minha bandeira e mostrar para as outras mulheres que elas são capazes”

A artista plástica Ane Schütz retrata figuras femininas de forma lúdica e abstrata

Carol Ambros
Redação Beta
10 min readJun 12, 2021

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Ane Schütz ganhou o segundo lugar do Festival Arte Salva em 2020 (Foto: Daniel Souza/Divulgação).

Finalista da última edição do “Festival Arte Salva”, a jovem artista plástica Ane Schütz já acumula 15 anos de carreira. Recentemente, participou do projeto “I Love POA”, criando uma ilustração inspirada na Cidade Baixa, bairro tradicional da capital gaúcha. Além disso, ela assinou uma campanha de colagens para a marca “O Boticário”, que visava o empoderamento feminino em comemoração ao Dia Internacional das Mulheres. A artista gaúcha também é a responsável pela arte nas paredes da sede da “Nestlé” no Brasil.

Nascida no Rio Grande do Sul, no final dos anos 80, Ane sempre teve forte veia artística. Ela possui curso técnico em Música, possui longa experiência em design gráfico, mas se encontrou mesmo foi na ilustração. Com um traço delicado e criativo, as obras da artista ganham personalidade marcante. Sua arte, majoritariamente inspirada na figura feminina, traz cores e texturas à vida. Basta ver um trabalho assinado por Ane, e logo fica evidente o porquê de tantas marcas e empresas a chamarem para campanhas ou até mesmo para decorar fachadas e seus interiores.

A Beta Redação conversou com a artista plástica por video-chamada. Falamos sobre a sua carreira, trabalhos autorais e a presença do feminino nas artes que produz.

O trabalho de Ane pe marcado pelas cores e a figura feminina, apresentadas de forma lúdica e abstrata. (Foto: Ane Schütz/Divulgação)

Como foi o início da tua carreira?

Eu comecei estudando Arquitetura. Mas como todo artista, comecei a desenhar quando era criança. Toda criança gosta de desenhar, mas só algumas continuam. Os artistas, normalmente, são aqueles que continuam. Este foi o meu começo, mas quando eu era jovem, não via isso como uma possibilidade de carreira. A gente imagina que não vai conseguir se sustentar disso, então a gente acaba pensando em profissões mais formais. Foi por isso que eu pensei em Arquitetura. Achei que teria a ver com o que eu gostava, mas acabei não dando conta do curso porque era muita matemática. Fui estudar música, mas isso acabou sendo algo mais paralelo, já que desde a época do curso de Arquitetura eu fazia estágio em estúdios de design. Então a música não era um desejo profissional, eu já estudava música desde criança e sempre foi um hobby.

Comecei minha carreira, de fato, através do design, que foi algo bem autodidata. Eu tive muitas pessoas na minha jornada que me ensinaram, e que até hoje me ensinam.

Você teve referência de algum artista que te inspirou?

Em um dos meus primeiros empregos de design, eu tive um colega, o Pedro Gutierrez, um artista de Porto Alegre. Talvez ele não saiba, mas ele foi uma grande inspiração pra mim no início da carreira. E ele me apresentou o trabalho de uma artista americana chamada Tara McPherson, que eu admiro muito e me inspira até hoje.

Como foi a decisão de abandonar os empregos formais para apostar tudo na arte?

De certa forma, eu não abandonei por completo, porque eu ainda tenho um trabalho de ilustração que eu faço, que é mais comercial. Mas aos poucos eu venho dando mais espaço para a arte. Trabalhei por muito tempo em agência de publicidade como diretora de arte, mas larguei para ficar como free lancer. Foi nessa época que eu consegui vislumbrar outros horizontes na carreira artística.

Sobrado no bairro Cidade Baixa em Porto Alegre, ilustrado por Ane. (Foto: Ane Schütz/Divulgação)

Você sempre teve interesse em trabalhar com arte de rua? Como isso aconteceu?

Meu primeiro trabalho de mural foi para o ParkShopping Canoas, há alguns anos atrás. A partir disso, percebi que eu podia fazer grandes formatos, porque até então eu era desenhista de papel. Isso foi uma descoberta bem legal. Ainda esta sendo, porque ainda tenho muito que aprender. Comecei tarde, têm pessoas que trabalham a vida inteira com grafite em mural, e pra mim faz relativamente pouco tempo. Foram oportunidades que foram surgindo e eu fui pegando, mesmo sem saber muito bem. Mas aquele primeiro trabalho que eu fiz em Canoas me mostrou que eu era capaz, e a partir daí foram surgindo trabalhos cada vez maiores. Tô atrás de uma empena [parede lateral de um edifício] agora. Quanto maior, melhor.

Ane começou sua carreira como desenhista de papel e aos poucos passou a pintar grandes estruturas. (Vídeo: YouTube/Divulgação)

Como foi a transição do design gráfico para grandes ilustrações feitas à mão em diversas superfícies?

Foi um processo bem orgânico, não foi nada pensado. Conforme cada trabalho surgia, eu ia aprendendo com as pessoas à minha volta. Toda vez que eu vejo um artista trabalhando, eu presto atenção no que ele está fazendo e converso muito com eles. E eu sempre gostei muito de experimentar novas mídias e novos materiais, então essa curiosidade me ajudou bastante a adicionar esse tipo de trabalho ao meu portfólio.

Você diria que a cena dos artistas plásticos em Porto Alegre é colaborativa?

Eu acho que existe abertura, o pessoal troca ideia, mas eu acho que podia ser mais. Ainda não consigo enxergar uma comunidade forte de artistas que colaboram entre si. Têm muitos grupos pequenos, mas não uma grande comunidade artística bem amarrada e que seja acessível. Muitos artistas novos me escrevem no Instagram, perguntando, tirando dúvidas e eu sempre respondo todo mundo. Já fiz grandes amigos assim, pessoas que vieram me falar que admiram o meu trabalho, e quando vou olhar o trabalho delas é incrível e a gente passa a ter uma troca. Eu curto muito esse tipo de interação e sou super aberta.

Ane é bastante atuante na cena da arte, participa de festivais, trabalha com ilustração de rua e projetos comerciais. (Foto: Ane Schütz/Arquivo Pessoal)

A tua arte é marcada pela figura feminina. De onde surgiu essa inspiração?

Eu sempre gostei de desenhar mulheres. A figura feminina é o ponto de partida pra muitos artistas. Mas eu percebi que eu poderia usar isso como recurso de fala e representatividade pro que eu acredito, por isso me apropriei mais. No início, eu tinha um pouco de receio. Pensava que eu só desenhava mulher, mas depois de um tempo pensei que eu desenho isso porque é a minha realidade e, de certa forma, representa quem eu sou e o que eu acredito. Então pensei: “Vou me apropriar disso e fazer disso o meu discurso”. E também por causa da minha luta como feminista, tem tudo a ver. Eu não trago tanto o tema feminista ou político para o meu trabalho. Vou por um caminho mais lúdico. Gosto de umas coisas mais surreais, um universo meio paralelo, mas o fundo disso tudo, da minha poética, daquilo que eu trago, é a representatividade e a presença feminina no universo artístico.

Você já fez várias campanhas para marcas importantes sobre a pauta feminista. Como é ser mulher na cena profissional artística?

Eu já passei por algumas situações bem engraçadas por ser mulher. Digo engraçadas, porque é rir pra não chorar. Mas é um sentimento de força, de luta, mas também é uma busca por quebrar o estereótipo de que mulher não pinta na rua, de que mulher não é capaz. A maioria dos comentários que eu ouço, principalmente quando estou pintando na rua, é: “Tu fez sozinha?” ou “olha que diferente, mulher fazendo arte de rua”. E não deveria ser algo anormal. Tem muitas mulheres fazendo arte de rua, mas às vezes não têm tanta visibilidade ou até credibilidade para serem contratadas. E todos os trabalhos que eu faço, estou sendo paga para fazer.

É uma busca por quebrar o estereótipo de que mulher não pinta na rua, de que mulher não é capaz.

E cadê essas outras mulheres? Eu sei que elas existem e poderiam estar ocupando mais espaço. Por que elas não ocupam? Acho que isso é um reflexo de tudo que a gente conhece da nossa estrutura social, assim como reflete em outras profissões também. Então, estar na rua trabalhando com arte, é levantar a minha bandeira e mostrar para as outras mulheres que elas são capazes, sim. Principalmente quando eu estou fazendo um grande formato, ainda existe muito receio de que eu não vá conseguir, não vou ter força ou altura para subir no andaime. Essas ideias não são limitadores reais, são limitadores que a sociedade coloca na gente. Então, estar ali e fazer o meu trabalho, é parte da minha luta e é uma forma de tentar fortalecer o movimento.

Quais foram as maiores dificuldades ao longo da tua carreira, tanto no mercado nacional, como no internacional?

Eu sempre fui muito privilegiada, sempre tive muitas oportunidades boas na minha carreira. Então, eu não vou dizer que eu tive grandes dificuldades no sentido prático de carreira em si. A maior dificuldade é conquistar o seu espaço e ter crédito pelo o que você faz e ser acreditada, gerar confiança de que você é capaz e que foi você mesmo que fez. Que sim, eu vou cumprir o prazo, que não sou uma menininha trabalhando, sou uma profissional. Já tive que ouvir este tipo de coisa, mas não posso reclamar das oportunidades que tive e ainda tenho. Sempre abraço elas com unhas e dentes. Sou muito determinada e comprometida no meu trabalho. E acho que, por isso, a carreira internacional é uma consequência. Eu ainda não trabalho com arte especificamente pro mercado internacional. Por enquanto, trabalho mais com ilustração. Mas não deixa de ser a minha linguagem e minha arte. É um trabalho que eu amo muito e sigo correndo atrás.

Sendo uma artista que produz para o mercado nacional e internacional, da perspectiva do artista, como tu avalia a cena artística na cultura brasileira e no exterior?

Eu vejo que existe uma valorização muito maior quando a gente trabalha no exterior. Por exemplo, no Brasil sempre existe uma choradinha quando damos o nosso orçamento para o cliente, enquanto no mercado externo, não vejo essa cultura de pechinchar ou de condenar o valor que o artista coloca no que faz. No exterior pode acontecer de dizerem “aceito o valor, mas não posso pagar agora”. No exterior eles aceitam muito mais o preço e a valorização do trabalho artista. Isso é uma diferença bem clara para mim. Neste sentido, o mercado brasileiro é muito mais fechado. Quando alguém contrata um ilustrador, a pessoa contrata porque sabe que é algo que ela mesma não sabe fazer, então se entende o valor intelectual do trabalho. Mas isso, aqui, no Brasil, é bem complicado de explicar, de se fazer entender para um cliente. Eles sempre acham caro, apesar de estar dentro do preço do mercado.

Ane faz parte do grupos de artistas escolhidos para o projeto I love POA, sua ilustração tomou corpo no Parcão. (Foto: Ane Schütz/Divulgação)

Qual foi o impacto da pandemia na tua produção artística?

Na minha produção pessoal, autoral, eu produzi bem menos. Toda essa situação que estamos vivendo de perdas diárias balança muito a gente. Eu tive fases de produção, mas as fases de ócio criativo, os gaps, foram muito maiores, porque realmente mexe com a cabeça. Se eu não estiver de boa, não rendo. Normalmente não costumo expressar sentimentos específicos, justamente por preferir um caminho mais lúdico. Mas senti que, na pandemia, algumas coisas afloraram mais. Então fiz alguns trabalhos que tinham uma influência do que estava acontecendo muito maior que antes. Antes eu não expressava tanto algum sentimento do cotidiano, então este também foi um impacto na minha produção.

No “Festival Arte Salva”, você disse “a arte é o caminho para a liberdade”. De que forma a arte te libertou?

Acho que a arte, de certa forma, me permite botar pra fora o meu universo. Tudo aquilo que acontece dentro de mim, eu consigo colocar pra fora. Não necessariamente um sentimento, mas visões de mundos impossíveis ou cores muito loucas. Tudo que passa na minha cabeça, eu uso a arte para colocar pra fora. Ela é libertadora, porque a cabeça tá sempre borbulhando de ideias. Dessa forma, eu consigo extravasar as ideias da minha cabeça. Ela me tira de qualquer amarra e eu não tenho nenhuma limitação quando faço um trabalho artístico, uma produção autoral. Posso ser quem sou. Posso fazer o que eu quiser. Posso usar a cor que eu quiser. Isso, pra mim, é uma forma de liberdade.

Além de ser artista plástica, Ane trabalha como designer gráfico com projetos internacionais. (Foto: Daniel Souza/Divulgação)

Que características um artista plástico precisa ter para dar certo comercialmente?

Isso é muito relativo, porque têm pessoas que têm um trabalho incrível e não têm tanta visibilidade ou não vendem tanto. Acabam indo trabalhar em outras áreas e a arte acaba se tornando um hobby, mesmo a pessoa tendo uma ótima produção com uma poética linda. Eu acho que, no meu caso, especificamente, o que deu certo pra mim foi ser versátil. Consegui dialogar bem com os clientes e com o mercado. Consegui explorar linguagens diferentes dentro do meu trabalho, porque nem sempre eu posso fazer o que eu quiser quando é algo para fins comerciais. Então, ter um pouco de desapego e conseguir transitar bem pelo autoral e o comercial, pra mim funciona.

Você tem um “projeto sonho” que ainda gostaria de realizar?

Sim, uma empena gigante. Gostaria muito! Não faço ideia de como fazer, mas eu sei que eu consigo fazer. No momento é um desejo bem grande. É um projeto que tem um custo maior e demanda muito tempo, mas é um sonho.

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