Tribuna 77, uma torcida antifascista

A proposta que vai muito além de torcer

Arthur Menezes
Redação Beta
7 min readApr 17, 2018

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A bandeira exalta a Cultura de Grêmio. (Foto: Reprodução do Facebook da Tribuna 77)

Empunhando os trapos, as bandeiras, vestindo as camisetas e querendo torcer pelo seu clube. Nesse caso, o Grêmio. Assim se poderia descrever qualquer torcida do tricolor gaúcho. Sobretudo qualquer organizada. Na Arquibancada Superior Norte da Arena, juntam-se uns que fazem tudo isso, mas não só.

Produtos da história do Grêmio e também agentes da transformação desta, a Tribuna 77 é uma torcida que não gosta menos de futebol do que ninguém, mas que não se limita às quatro linhas por nada.

No clássico Gre-Nal realizado no último dia 18 de março, não teve quem tenha ido para o estádio sem sonhar com a vitória. Mas, por outro lado, houve quem não esquecesse o pesadelo de quatro dias antes: o assassinato da vereadora Marielle Franco, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que estarreceu o país.

No espaço de tantas outras manifestações, desta vez, o silêncio. Se não do som, da faixa. A pedido da Brigada Militar, guardas da Arena do Grêmio rumaram até a faixa que dizia “Marielle, presente”, em homenagem à parlamentar. Tudo foi recolhido, após negociação com a torcida, para só ser entregue depois do jogo. A manifestação política pode ter parecido, frente aos olhos mais desatentos, um ponto fora da curva nas arquibancadas do estádio. Mas não é.

A Tribuna 77 começou os ensaios ainda no Portão 13 do Estádio Olímpico Monumental, no segundo semestre de 2012. Ela ocupa a Arena desde a inauguração, mas em específico o lugar atual apenas ao longo das temporadas de 2014/2015. E desde o início, sempre teve o mesmo objetivo: lutar pela redemocratização dos espaços de futebol, o resgate e a manutenção do patrimônio histórico e cultural do clube e o combate a todos os tipos de preconceito.

“A Tribuna 77 foi pensada e criada por força da inquietude de um grupo de velhos amigos de arquibancada, mas a eles já não pertence mais. O movimento se expandiu e hoje temos diversas pessoas e grupos que fazem parte das nossas ações, dentro ou fora dos estádios, e todos e todas têm a mesma importância”, garante Roger Canal, um dos fundadores do movimento.

Primeiro Sarau marcou a atuação do grupo fora da arquibancada. (Foto: Glauber Adolfo)

Mais do que uma torcida, a Tribuna 77 é, de fato, um movimento. Isso porque a sua lógica de atuação não se limita ao estádio, e nem mesmo ao futebol. “Existe organização de atividades fora do estádio e de dias de jogos. Além dos eventos que organizamos, como o Sarau da Tribuna 77, participamos também de outras atividades sociais, acadêmicas, culturais etc. Acreditamos que a ocupação desses espaços de pensamento potencializa a nossa linguagem e complementa a mensagem da ação direta”, salienta Patrícia Ferreira, participante ativa da Tribuna. “Qualquer um pode fazer parte da 77, fazendo música, poesia, arte, compartilhando a mensagem, pintando seus próprios trapos. Se você está interagindo, então já está participando”, complementa.

Diferentemente de quando as faixas foram “caladas”, no caso Marielle, no dia 1º de abril, data em que a torcida “descomemora” o golpe militar, resistiu durante o jogo todo a faixa “Ditadura Nunca Mais”. Houve a adesão de diversas pessoas à manifestação. Dentre elas, estava Dijair Brilhantes. Acompanhado do filho Lucas, pediu para tirar uma foto com a mensagem. “Outros movimentos semelhantes já ocorreram no passado, a própria Coligay caminhava nesse sentido. Acho que o momento político do país pede para que esses movimentos surjam e ocupem os espaços que são deles por direito”, comenta Dijair. “Vejo pessoas criticando que não se deve misturar futebol com política. Recomendo que essas mesmas pessoas façam uma pesquisa básica, pois vão encontrar desde a Democracia Corinthiana até o famoso verso ‘pra frente Brasil, salve a seleção’, entre outros”, enfatiza.

De fato, a história do futebol está intimamente ligada a eventos políticos. Como esporte de massa, o invento dos ingleses serviu ao longo da história para as mais diversas agendas. “O futebol desde suas origens é uma potente ferramenta de inclusão social e conscientização, além de moldar a identidade e contar a história de diversos povos ao longo dos tempos. Questões como o preconceito racial, o machismo, a homofobia ou qualquer outro tipo de preconceito ou intolerância devem ser combatidos em qualquer espaço, inclusive nos espaços de futebol, pois sabemos que muitos torcedores, jogadores, juízes, enfim, todos e todas que de alguma forma integram o espetáculo que são os jogos, sofrem ou já sofreram algum tipo de discriminação ou violência”, reitera Patricia.

Léo Gerchmann participou do Primeiro Sarau organizado pela Tribuna. (Foto: Glauber Adolfo)

Artífice da luta contra o preconceito nos estádios, a Coligay é uma representante histórica das torcidas gremistas. Mesmo durante a Ditadura Militar, a organização de torcedores não deixou de manifestar nos estádios em favor da pluralidade. “O Grêmio é o clube onde surgiu o case mais fantástico de respeito às diferenças, talvez, na história do futebol brasileiro, que é a Coligay. Mas não só. O Grêmio foi fundado por pessoas de classe média, teve torcedor negro como símbolo na década de 30, teve Lupicínio Rodrigues como compositor do seu hino, teve uma homenagem com a estrela dourada na camisa por conta do Everaldo”, relembra Léo Gerchmann, jornalista e pesquisador da história do clube.

Para essa torcida, lugar de mulher é no estádio. (Foto: Manoel Petry)

E se negros e gays já estão na história do Grêmio, a presença feminina vai se inserindo cada vez mais na narrativa e rotina gremistas. “Eu sempre fui sozinha aos jogos e sempre enfrentei o machismo e o assédio. Mas, ainda assim, eu resistia e seguia meu gremismo. Através da Tribuna, posso fazer por outras manas o que encontrei aqui: sororidade e muito gremismo”, admite Patrícia.

Autor de livros que retomam a história do clube jogando luz sobre os aspectos mais progressistas de sua constituição, Léo é enfático ao combater a pecha de “torcida racista” que foi retomada a partir do caso de racismo com o goleiro Aranha, em 2014. “A torcida é muito heterogênea. Existem os grupos mais conservadores, até reacionários, e os grupos mais progressistas. Assim, ao mesmo tempo que se encontra alguma manifestação mais conservadora, também existem manifestações muito progressistas. A instituição foi uma grande vítima, quando se trata do caso Aranha, em 2014. Desde lá, o relatório que é feito pelo Observatório Racial mostra dezenas, acho que já chega a quase 100 casos, de eventos tristemente racistas nos estádios de futebol. A punição que houve na época, para ser exemplar, teria que se repetir nos quatro anos seguintes”, defende, ao avaliar que o racismo, combatido inclusive pela Tribuna 77, é uma prática muito presente nos estádios brasileiros. “Resta ao clube identificar e punir os criminosos. E o Grêmio tem feito um trabalho muito forte em relação a isso. Mas, como é possível impedir que um criminoso entre no estádio e diga aquelas barbaridades?”, complementa.

Ainda sobre o posicionamento da torcida gremista de um modo geral com relação às manifestações preconceituosas ou de combate ao preconceito, o jornalista e historiador Daison Sant’Anna acha que “ela segue os passos da sociedade. Quando a sociedade era muitíssimo machista (e ainda é), ela era também. Quando o racismo era total, ela era também. E mesmo tendo a Coligay em 77, a torcida não aceitava. Então, a torcida do Grêmio é apenas reflexo da sociedade”.

A utilização dos adesivos é muito presente entre os torcedores. (Foto: Reprodução do Facebook da Tribuna 77)

Olhando para o todo da torcida, o professor Marcelo Pizarro Noronha acredita que “os torcedores brasileiros mantêm uma postura tradicional nos estádios, indo a campo, sobretudo, para apoiarem seus times de coração. Os eventuais protestos são a exceção e não a regra”. Mas, por outro lado, o professor vê uma mudança no cenário. “É provável que essa realidade venha a ser alterada, devido às novas demandas e atores sociais”, acredita.

As homenagens chegam a nomes históricos como o do ativista Martin Luther King. (Foto: Reprodução do Facebook da Tribuna 77)

Pode ser que a Tribuna 77 seja um desses pilares de mudança. Brasil afora, começam a pipocar as torcidas que se consideram de cunha antifascista. Como acredita o professor Marcelo, “é preciso pensarmos em termos plurais, isto é, temos que falar em torcidas do Grêmio, e não em torcida (o mesmo vale para outros clubes)”. Ou seja, a arquibancada deve permanecer sendo, e talvez seja cada vez mais, lugar de debater assuntos latentes na sociedade. E isso se dará, quem sabe, sob os mais diversos olhares, vieses ideológicos e formas. Não há como negar o alcance popular do esporte. Dijair lembra que “nenhum evento de entretenimento de massa envolve tanta gente. Um final de semana com finais de estaduais reúne aproximadamente meio milhão de pessoas no Brasil todo”.

Em meio a tudo isso, a Tribuna 77 aparece como um produto de seu tempo, uma vez que as torcidas aparentam estar se politizando, e, por outro lado, é resultado de um caminho trilhado pela história tricolor, que também está vinculada ao processo mais popular e democrático de torcer. Na atuação essencialmente contemporânea, o grupo se volta para a sua história. E o leitor talvez se pergunte, a essa altura, por que Tribuna 77?

“O nome faz referência ao ano de 1977, quando, através da gestão do eterno patrono Hélio Dourado, o Grêmio não só quebrou a mais larga hegemonia do rival, como avançou com ações progressistas, dos gabinetes até as arquibancadas, em plena ditadura militar. A existência da Coligay, o início da campanha do cimento, que fez do Olímpico um estádio Monumental através das mãos e colaboração direta de sua torcida, o projeto que permitiu a entrada de crianças com até 12 anos gratuitamente nos estádios brasileiros etc. O contexto histórico é muito forte, e resolvemos transportá-lo em forma de homenagem ao modelo de fazer e viver futebol e gremismo que acreditamos”, sentencia Patrícia, com o orgulho genuíno de uma torcedora.

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