Três fases de uma década: os pensamentos hegemônicos no futebol contemporâneo

Há 10 anos, Guardiola assumia o comando do Barcelona. Naquele momento, o esporte inteiro entrava em uma nova era.

Arthur Menezes
Redação Beta
18 min readJun 13, 2018

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Em 2008 o futebol passou por uma ruptura. Uma mudança dramática que só pude entender depois de algum tempo. Mas, honestamente, não me culpo. Grandes eventos da história da humanidade dificilmente são compreendidos em sua totalidade enquanto ocorrem. Eu fui o francês que não recebeu com sobressaltos as investidas de Robespierre, o russo que fez pouco caso de Lênin. Mas não vou me desculpar.

Quero com esta discussão apresentar três momentos vividos pelo futebol na última década. Utilizarei datas e nomes que demarcarão essas etapas de evolução. Porém, é importante fazer uma ressalva desde já: esta análise deve ser lida assumindo-se a premissa de que pensamentos como aqueles que veremos não têm data de início e fim, e também coexistem em diferentes intensidades dentro de um mesmo período. Não quero ser o professor de história da arte que delimita o término da Idade Média e o início da Idade Moderna quase que como uma passagem de bastão na corrida de revezamento, ou ainda a mudança de pontilhado na linha do tempo desenhada no quadro negro.

Outro fator importante a manter no horizonte é que, no fim das contas, trataremos de períodos quase sempre no sentido de poder de influência — e não exatamente de prática majoritária. Não é sempre sobre vitórias e títulos, mas sobre ideias que percorrem o mundo do futebol de maneira a impactarem trabalhos por todo o canto. Vivemos a era da informação, da troca de saberes, dos famigerados “cursos na Europa” e “períodos sabáticos”. A despeito do descrédito que essas expressões podem receber, o fato é que os trabalhos realizados nos clubes mais ricos do mundo acabam inspirando adaptações — que podem ficar no campo das ideias ou irem ao método. E isso se dá de forma tão acentuada que surgem até mesmo os dogmáticos. Como não me encaixo entre eles, é importante mais uma ressalva: serão expostos trabalhos que são entendidos como exemplos que podem servir como base, mas nunca como manuais prontos e completos, pois devemos partir do entendimento que um trabalho específico só existe porque ocorre dentro daquelas específicas condições em que foram realizados — cultura local, grupo de jogadores, estrutura do clube e momento político da instituição, por exemplo.

O futebol propositivo

Pep Guardiola ganhando sua primeira UEFA Champions League com o Barcelona (Foto: Reuters)

Voltando aos exemplos anteriores, das revoluções aquelas, é necessário entender que os revolucionários não são pessoas que criam tudo do zero, não são seres divinos que pairam sobre uma situação e, em algum momento, a alteram. Um homem é sempre um produto de seu tempo e de seu contexto. Sendo assim, deve ficar claro que Josep Guardiola não criou tudo do zero. Castigar mandando para a Sibéria já era coisa de Czar. As guilhotinadas não eram assim tão diferentes dos esquartejamentos e enforcamentos da nobreza francesa. Valorizar o passe já era mantra desde Johan Cruyff.

Sendo assim, vamos ao Barcelona de Pep. O treinador assumiu a equipe com a missão de recolocar os catalães no topo da Europa. Chegando em maio de 2008, ele teria de lidar com o resquício de uma espinha dorsal que levara a equipe ao topo do futebol europeu em 2005–06, mas que vinha fracassando desde então. Frank Rijkaard treinou o Barcelona entre 2003 e 2008 e apresentou, já no final de seu trabalho, alguns elementos que seriam muito presentes no jogo de seu aclamado sucessor: saída de jogo preferencialmente no chão e toques curtos e rápidos na fase final, por exemplo. Mas Guardiola, mais uma vez cabe esclarecer, radicalizou alguns tópicos de jogo já existentes e acrescentou outros tantos, fazendo com que a equipe ganhasse absolutamente tudo que fosse possível. E talvez não exista forma mais clara de ver como o treinador pretendia montar um time dentro de sua própria filosofia, como notar que ele abriu mão dos três craques-pilares do time campeão antes de sua chegada, Ronaldinho Gaúcho, Deco e Eto’o — que, apesar disso, participaria da sua primeira temporada no clube e seria decisivo.

Na primeira temporada, os títulos provaram que o treinador estava fazendo algo histórico, pois ganhou tudo o que era possível ganhar — Campeonato Espanhol, Copa do Rei, Champions League, Supercopa da Espanha, Supercopa da UEFA e Mundial de Clubes. Hoje, alguns traços daquele time podem parecer básicos, óbvios do alto nível de competição: era um time compacto, que valorizava muito a posse de bola, tinha intensidade ao marcar. Enfim, era um time nos termos do que se convencionou chamar “futebol moderno” — que não necessariamente tem relação com a já citada arte moderna, mas muito mais com a expressão “moderno” enquanto sinônimo de atual. Essa análise pode parecer pura semântica, mas o que proponho é que vejamos o tamanho disso: um time foi capaz de radicalizar conceitos a ponto de deixar todo o resto anacrônico. E o primeiro passo disso se deu a partir da linguagem que o esporte mais conhece (a única que reconhece): o resultado.

O Barcelona venceu, convenceu e precisava ser entendido. O consumidor mais desatento também pode ter deixado passar, mas, antes de Guardiola, quando é que ouvíamos na televisão um comentarista falando em compactação? Intensidade? Profundidade? Amplitude? O vocabulário do futebol se adaptou. Isso aconteceria de qualquer maneira? Difícil dizer. E sim, estabelecer esse tipo de relação de causa e efeito é sempre perigoso. Mas o fato é que as coisas foram estremecidas. Compactação é outra forma de dizer que os jogadores jogam pertinho. Intensidade poderia ser jogar ligado, atento, concentrado. Profundidade poderia ser avançar o time. Amplitude pode ser abrir pra jogar. Enfim, não há ideia do Barcelona que não tenha sido dita e pensada — de maneira solta e rudimentar — por qualquer torcedor agarrado em um alambrado de várzea. Mas pensar que seria interessante ter um elemento específico de jogo é uma coisa, definir vários conceitos como indispensáveis e fazê-los possíveis com maestria é outra.

Na segunda temporada, o técnico fez um time que considero muito melhor que o primeiro. Tomo por base o Campeonato Espanhol. Guardiola chama as ligas nacionais, disputadas em pontos corridos nos principais países do mundo, de “competições da regularidade”. Nesse caso, faz sentido apresentar repetidamente uma ideia de jogo, que em sua biografia foi definida como idioma, com seus pilares fundamentais, de modo que se possa de forma repetida chegar às vitórias. Em La Liga 2008/09, foram 87 pontos. Em 2009/10, 99 pontos — e apenas uma derrota. A dominância foi elevada a um outro patamar, muito por conta da crescente capacidade de reter a bola, criar as chances e se defender de maneira agressiva — com as linhas cada vez mais altas e próximas, fechando espaços e dobrando a marcação, sempre com muita intensidade. Essa supremacia não se reverteu, porém, em um segundo título europeu: a equipe foi eliminada pela improvável Inter de Milão, do ainda mais improvável Diego Milito, pelas mãos de José Mourinho.

Na terceira temporada de Guardiola, o Barcelona já estava consolidado. Ganhava quase sempre, mas o mais importante: jogava sempre do mesmo jeito. E a essa altura já se podia ouvir a expressão que dá nome ao tópico: o futebol propositivo. Já estava claro que o Barcelona iria propor o jogo sempre. E era assim mesmo: a equipe ditava o ritmo e a disputa se dava nos seus termos. E isso ocorria mesmo quando perdia. Vencer o Barcelona não passava por massacrá-lo, mas por aproveitar erros pontuais daquele modelo de sempre.

A versão portuguesa do site da UEFA especificou, antes da final da Champions League 2010/2011, que “O clube catalão tem mais vezes a bola em seu poder do que o adversário em todos os jogos, em casa e fora, desde a derrota por 4–1 frente ao Real Madrid, em Maio de 2008”. Não deu outra: o Barcelona dominou o jogo do começo ao fim, trucidou o Manchester United novamente e fez daquele time incrível duas vezes campeão em três champions possíveis. Na liga espanhola, três títulos em três anos. Um legado estava pronto.

Com o Barcelona, o modelo foi consagrado. A proposição em si talvez não tenha se tornado um modelo tão hegemônico assim logo de cara, mas muitos aspectos que se fazem necessários para que ele ocorra passaram a estar presentes na maioria das equipes: linhas mais avançadas, mais próximas, mais intensidade na marcação, mais trocas de posição. Tudo aquilo que virou nosso senso comum em algum momento.

Nessa época, vários times começavam a praticar essas ideias de futebol em diversas ligas. Com diferentes capacidades e características, o futebol propositivo tomou a atenção do mundo com o Barcelona, mas foi se alastrando com outras caras. Como ideia em construção, é possível dizer que o próprio Barcelona foi melhorando em muitos pontos, à medida que foi sendo estudado pelos adversários e, portanto, enfraquecido em vários outros. Por exemplo, na quarta temporada de Guardiola à frente do Barça, sua média de gols por partida aumentou consideravelmente em relação às outras (2.97 contra 2,45, 2,34 e 2,55), mas isso não se reverteu nos títulos anteriores. Caiu na Champions de maneira parecida com aquela para a Inter, em mais uma semifinal que chocou a europa, só que dessa vez contra o Chelsea. Na Liga, viu o Real Madrid fazer a melhor campanha entre todos os campeonatos nacioais da europa, chegando aos históricos 100 pontos. Era um Real Madrid adaptado aos novos tempos, ainda que com uma filosofia de jogo completamente distinta.

Um exemplo de trabalho notadamente muito influenciado pela equipe de Guardiola foi a seleção espanhola de Vicente del Bosque. O treinador assumiu a Fúria com a imensa responsabilidade de substituir Luis Aragonés, campeão da Eurocopa em 2008. O comandante não implodiu o trabalho do seu antecessor, mas usou a espinha dorsal do time catalão multicampeão e repetiu parte da estrutura de jogo. Manteve entre seus titulares mais da metade de jogadores de Pep. Dessa forma, foi campeão da Copa do Mundo em 2010 e da Euro em 2012, tendo reconhecidamente a seleção mais forte nas duas competições. Foi a vitória do modelo catalão com as cores da Espanha.

Os efeitos dessa avalanche de futebol moderno foram vários. Um dos mais sentidos foi a distância que se passou a ver entre os times europeus de ponta e o resto das equipes — distâncias cada vez maiores passaram a ser percebidas em um contexto no qual times tentavam jogar da mesma maneira, tornando a qualidade dentro de um mesmo modelo o fator decisivo. Mas é nos contextos de maior repressão e tirania que vemos as mais ferozes resistências, não é? Quando todos queriam ópera, um alemão com cara de bêbado preferiu tocar punk rock.

O futebol reativo e o futebol propositivo

Jürgen Klopp (de preto) foi campeão alemão e depois levou o Dortmund à final da Champions (Foto: Reuters)

Nos primórdios do Mixed Martial Arts (MMA), os lutadores representavam estilos. Cada competidor era especialista em uma modalidade e, assim, ia para o combate dotado de habilidades treinadas especificamente. Havia, por exemplo, o lutador de boxe, que só sabia lutar como tal, ou seja, usando os golpes do boxe. Da mesma forma o Jiu-jitsu, o Wrestling, o Judô e por aí vai. Quando uma luta era anunciada entre um lutador de boxe e um lutador de jiu-jitsu, por exemplo, o roteiro do combate já estava pronto. Provavelmente, este tentaria levar a luta para o chão e finalizar, enquanto aquele tentaria mantê-la no alto e desferir golpes.

Essa segunda fase do futebol na década, que provavelmente começou a se acentuar em 2013 ou 2014, é marcada por muitos jogos iguaizinhos às lutas do início do UFC. Eram encontros em que, previamente, qualquer analista já tinha ferramentas suficientes para estabelecer os termos em que se dariam — quem terá mais posse de bola, em que setor do campo o jogo irá se desenrolar e tantas outras coisas. Isso porque o hoje famoso padrão de jogo estava sendo elevado a um outro nível no esporte. A capacidade de reproduzir posições, movimentos, combinações e todo e qualquer tipo de efeito coletivo estava sendo ampliada de maneira incrível. Era um esporte se reinventando. Mas demos um salto no tempo: entre o fim da era do jogo de proposição e os roteiros prontos, algo aconteceu: o mundo viu emergir o modelo reativo. Aqui, faz-se necessário falarmos de Jurgen Klopp e o Borussia Dortmund.

Klopp, assim como Guardiola, foi jogador. Enquanto o espanhol jogou no Barcelona e na seleção Espanhola, sendo um volante técnico e que frequentou os maiores palcos do esporte, Klopp não foi mais do que um zagueiro mediano, com muita identificação com o bem menos conhecido Mainz 05, que na sua época de jogador passou a maior parte do tempo na segunda divisão. Como poderiam estar em centros de futebol e ter características mais distintas?

Como foi apontado antes, é importante entender que Guardiola é fruto de tudo o que veio antes. Klopp, também. Quando Klopp chegou ao Borussia, a equipe aurinegra não vencia o campeonato alemão desde 2001/02. Antes, havia vencido duas vezes na década de 1990. Antes, nas décadas de 1950 e 1960. Ou seja, não é um clube gigantescamente vencedor. A Alemanha sofria uma profunda transformação após as derrotas sofridas em sequência por sua seleção. Os conceitos eram revistos em boa medida e a avaliação daquela comunidade do futebol era de que teria de refazer as bases de sua competitividade, tanto que Joaquim Löw foi mantido no cargo de treinador da seleção até o título da Copa de 2014 — até hoje, na verdade —, sobrevivendo ao fracasso em duas competições europeias e uma Copa, mas em nome de um trabalho de longo prazo envolvendo a base.

Nesse cenário, e talvez só em um como esse, Klopp teve a oportunidade de colocar em prática suas ideias de jogo com toda a força que um título impensado pede. De maneira muito própria, o treinador se aproveitou do que estava se tornando o futebol moderno e o seu apelo a um específico modelo de jogo para criar uma antítese poderosa dessa forma hegemônica de jogar futebol.

Na temporada 2007/08, o Borussia havia ficado em 13º no campeonato alemão. As finanças iam mal. Era nesse cenário que chegava o treinador que havia treinado até então, com boa dose de sucesso, o pequeno Mainz 05 — fizera a transição dos campos para a casinha, diretamente, tamanho era seu respaldo no clube. Na nova fase, cabia a Jurgen recuperar o patrimônio de uma das mais respeitadas torcidas do país.

Em um clube como o Borussia, obviamente, nem tudo é tão fácil como pode ser com um Barcelona. Longe dos holofotes do continente, a equipe teve um desempenho melhor no primeiro ano de seu novo comandante: na temporada 2008/09, veio um sexto lugar. Na 2009/10, um quinto lugar e o direito de voltar às competições internacionais, com uma vaga na fase de grupos da Liga Europa.

A temporada 2010/2011 consagraria o time mais reinante do modelo propositivo. Seria o auge de um modelo de jogo que faria de uma final de Mundial de Clubes uma verdadeira barbada: como esquecer a chinelada que o Santos de Neymar tomou do imparável Barcelona? Mas a mesma temporada marcaria o nascedouro da antítese. Na contramão da história, o Borussia de Klopp provou que, diferentemente do que defendia Guardiola, não era necessário trocar os tais 15 passes durante a transição. Aquele Borussia provou, ainda, que não era necessário ficar massacrando um time de um lado para, num segundo momento, pegá-lo de surpresa do outro, como também pregava Pep. Aquele Borussia abusava das bolas longas, jogadas que os catalães consideravam ser a busca por um milagre. Era o início da era da reação como ideologia, como método de chegar, de maneira repetitiva, às vitórias.

Alguém pode questionar: qual é a maldita diferença entre o que foi narrado no parágrafo anterior e as equipes que haviam vencido o Barcelona anteriormente, naquelas semifinais de Champions? Repetição, prática, método e crença. O que faz desses modelos especiais é a mesma coisa: o futebol reativo e o futebol propositivo são produtos de padrões. Tanto que, inacreditavelmente, são modelos que podem ser descritos em poucas linhas (de maneira vulgar, é claro). O futebol reativo de Klopp era, então, uma ode ao que se chamava antes dele de objetividade.

Na temporada 2010/11, o Borussia jogava com o centroavante recebendo lançamentos todo o tempo, tendo de aparar as bolas entre os zagueiros adversários para esperar os companheiros ou lhes possibilitar o domínio já no terceiro terço do campo e ainda com as defesas desencaixadas a partir de um passe de cabeça. As transições pelo chão eram objetivadas com o menor número de toques à bola, de maneira a jogá-la à frente percorrendo o maior tempo sem ser controlada, de modo que o tempo do processo fosse diminuído. Quando da defesa adversária postada, a equipe abusava das jogadas laterais, fazendo cruzamentos ou infiltrações — o que tinha êxito maior do que o comum pela presença massiva no lugar onde as coisas acontecem, a proximidade do gol. Quando das jogadas por dentro, os toques rápidos, somados às trocas de posições, davam ao esquema a fluidez necessária.

Por mais que isso não ocorra de maneira tão presente nos campeonatos de pontos corridos — principalmente nas principais ligas do mundo -, alguém poderia considerar aquele Borussia um acidente de percurso. Isso se fosse um título isolado. Não foi. Em 2011/12, portanto na quarta temporada de Klopp, o segundo título da liga nacional. E, dessa vez, a equipe também conquistava a copa nacional — em uma chapuletada inesquecível no Bayern de Munique, finalista da Champions League naquela temporada, por 5 a 2.

As duas temporadas eram vitoriosas, de fato. Mas é na Champions que o mundo fica estático para perceber o que será tendência. E por mais que o futebol alemão tenha todo o respeito e a atenção da crônica esportiva e das pessoas que trabalham com o esporte, fazia-se necessário comprovar tudo aquilo em um outro patamar, já que em 2010/11 e 2011/12 o clube não havia passado das respectivas fases de grupo da Europa League e da Champions League.

Em 2012/13, Klopp colocou-se de vez no mapa da Europa. Quando se trata de vitrine, nenhum outro lugar é melhor para chocar o mundo do futebol do que o Santiago Bernabeu. E vencer de maneira impressionante o Real Madrid, em qualquer lugar que seja, é sempre uma sugestão de como fazer as coisas dentro de campo. Nesse ano, as duas equipes se enfrentaram quatro vezes na competição mais importante do continente. O Real vinha de uma temporada incrível, na qual havia conquistado um título que tirava o clube da fila — e da sombra do Barça. Na primeira fase, alemães venceram em casa e houve empate na Espanha. Depois disso, o Borussia eliminou com goleada o bom time do Shaktar e com muito suor — um dos jogos mais emocionantes dos últimos anos — o Málaga, até pegar o Real novamente na semifinal. Com um 4 a 1 no jogo de ida, nem a reação merengue foi capaz, no jogo de volta, de tirar o Borussia da final. Na final, Gotze, um dos craques do time de Klopp, ficou de fora, sem condições de jogo. Já estava contratado pelo Bayern de Munique, adversário da final. O jogo foi duro. Gotze, em uma cena insólita, foi capaz de comemorar um gol dos ainda companheiros sobre os futuros companheiros. Mas a história não fez desse um gol de título, nem mesmo brindou Klopp. O Bayern venceu e consagrou o maior investimento aliado da tradição.

Nesse mesmo ano, o mesmo incrível Borussia caiu aos pés do robótico e insuperável Bayern de Jupp Heynckes em todas as outras competições. Perdeu nas quartas de final da copa nacional, ficou em segundo na liga e perdeu a supercopa. Era o começo do fim da era Klopp, que viria a ter muitas baixas no elenco, com jogadores compradores inclusive pelo Bayern.

A partir da temporada 2013/14, Klopp e Pep passaram a estar na mesma liga. Mesmo que com condições bem diferentes, protagonizaram embates eletrizantes. O Borussia deu uma boa dose de dor de cabeça para o Bayern, e chegou a ganhar as duas supercopas. Mas foi só. Guardiola levou seu idioma para a Alemanha. Adaptou seu jogo à cultura local. Provou não ser dogmático, mas ter princípios. Reinou no país, deixou um legado, mas não voltou a ter sucesso continental e foi buscar outro projeto. Então, devemos chegar à conclusão que o futebol reativo sumiu? Nada disso.

Saímos da Alemanha, em que Klopp provou que ir direto para o gol era uma boa opção, e vamos para a Inglaterra. O ano é 2015, quando Klopp chega ao Liverpool. O treinador teria a chance de provar em um dos maiores clubes do mundo que jogar buscando o gol em quase toda a jogada é um método que funciona. E, ao final do ano, ninguém é capaz de duvidar disso, mas o próprio treinador tornava-se vítima do próprio veneno e via o campeão mais improvável dos últimos muitos anos: era o Leicester, de Ranieiri, vencendo a maior liga de pontos corridos do mundo.

Quando talvez alguém pensasse que o futebol reativo estivesse perto de morrer, ele aprontou a sua maior proeza. Na temporada anterior, o modesto clube havia ficado em 14° lugar. Uma posição que, segundo a sua história recente, era até muito boa. Mas em 2015/16, o modelo de futebol jogado com sagacidade, busca a cada jogada do gol, bolas longas, cruzamentos e aversão à troca de passes horizontal, fez do inexpressivo e inesperado elenco o vencedor da liga mais famosa, mais acirrada e mais respeitada.

E se no título de um Barcelona, com elenco cheio de craques, sempre haverá um “porém” em relação ao trabalho do treinador, aqui fica inquestionável: Ranieiri foi o grande culpado pelo título. E se o Barcelona era capaz de passar uma temporada toda tendo mais a bola que os adversários, o Leicester fazia justamente o contrário, dava a bola para as equipes que enfrentava, tinha a posse quase sempre menor, mas conseguia à sua maneira os seus êxitos.

A era da adaptação

Zinedine Zidane conseguiu um feito inédito: ganhar três Liga dos Campeões seguidas (Foto: Reuters)

O futebol propositivo não acabou. O reativo também não. Ficando ainda na Inglaterra, as duas temporadas seguintes ao título do Leicester podem ser um grande deleite para quem gosta de ver grandes trabalhos de treinadores. Na temporada 2016/17, o Liverpool ia para a temporada com o aclamado Klopp. O Manchester United teria o popstar Mourinho. O City anunciava Guardiola com pompa. O Arsenal mantinha o longevo Wenger. E o Chelsea apresentava o vitorioso italiano Conte.

No primeiro ano de campeonato inglês, Conte foi a cara do Chelsea vencedor. Com um 5–2–3, ou 5–4–1 (sempre cabe interpretação), o italiano recuperou um esquema que não se via nas grandes ligas provavelmente desde a década de 1980 — e que nunca foi comum, diga-se de passagem. Mas a ideia era, sim, atual: reagir. No ano seguinte, o campeonato foi parar no bolso de Guardiola.

Batendo recordes, o espanhol comandou um título com sobras — e ainda ganhou uma copa da liga. Num ano, foi a vez dos contra-ataques. No outro, foi a vez do jogo de posição, da troca de passes massiva, do futebol ofensivo. Mas olhar para a Inglaterra é perder de vista o domínio do futebol europeu. Para entender essa terceira fase, é necessário olhar para o time mais reinante do mundo depois do Barcelona de Pep: o Real Madrid de Zidane.

Não é que os times vencedores da Champions nesse meio tempo não tenham acrescentado nada à discussão, mas é que o Real Madrid de Zidane é um marco na história tanto quanto aquele Barcelona de Pep. E, portanto, parece influenciar tantos times quanto pode. Tantos comentaristas quanto consegue. Mas esta é a fase em que ainda estamos vivendo. Ou já acabou? Difícil dizer.

No começo deste texto, aponto para o fato de que momentos importantes da história só são entendidos depois que passam. Tanto que, essas classificações que apresento ao longo de tantos parágrafos são reflexões de praticamente uma década, postas à prova em teses e antíteses intermináveis nos mais diversos ambientes, elaboradas com as mais diversas fontes — e me desculpem se deixei de mencionar os números astronômicos de passe dos times de Guardiola ou a distância que bateu recordes da sua linha de defesa em relação ao seu goleiro, mas não tenho fetiche pelas estatísticas, gosto de interpretá-las.

O Real Madrid do Zidane provavelmente seja o mais incrível de todos esses times porque é o que volta menos no tempo. Explico. Fazendo toda essa investigação pela última década, podemos ver que o futebol acaba por se repetir. Guardiola voltou ao Ajax e à Holanda de 1970, bem como ao Brasil da mesma época, entre outras referências, como o próprio Barcelona em que ele jogou. Times que assumiam que iriam atacar todo o tempo. Já Klopp, por outro lado, refaz aqueles clássicos modelos alemães e italianos, fortes na defesa e que faziam cada ataque como se fosse o último. Cada qual reinventando suas respectivas maneiras, mas readaptando filosofias antigas e, o mais importante, dentro de parâmetros que eles mesmos ajudaram a criar — os tantas vezes já mencionados pilares do futebol moderno, que prefiro chamar de futebol contemporâneo. Mas Zidane faz um time que não é propositivo, não é reativo, mas é um time que se adapta, tal como os times dos anos 2000. É um futebol em uma espiral histórica.

Vale aqui retomar o exemplo anterior, o do MMA. O time de Zidane provavelmente não era o melhor lutador de judô, nem de karatê, muito menos de wrestling, mas era capaz de agregar uma variedade incrível de elementos ao seu jogo, tornando-se um verdadeiro lutador de MMA. No esporte de combate, é possível dizer que isso ocorreu rapidamente. Pouco depois do início do UFC, Marco Ruas já era um campeão respeitado, lutando da maneira que a luta pedisse, adaptando-se ao confronto como fosse necessário.

O impressionante, é claro, não é que o time do francês não tenha tentado ser propositivo ou reativo. Muitos times não podem ser simplesmente categorizados como um ou outro. Mas o que impressiona é a capacidade do time em ser, de fato, as duas coisas, lançando mão da sua faceta necessária conforme o jogo se apresentasse. Não por acaso, foi possível ver aquela equipe vencer três Champions seguidas: 2015/16, 16/17 e 17/18. Desses três anos, só um título espanhol — na última temporada, aliás, não passou nem perto. Ampliando o nosso recorte até a temporada 2013/14, em que ocorre o título europeu com Ancelotti — de quem Zidane foi auxiliar — é apenas um título espanhol em cinco disputados, mas quatro europeus em cinco oportunidades. Isso talvez diga que a opção por uma equipe sem um padrão tão restrito possa servir mais para competições de mata-mata do que para consolidar um plano de dominância nacional. Mas a resposta ainda não está clara.

Olhando para trás, é inegável que Guardiola mudou o futebol. Klopp é o nome mais emblemático dentro de uma onda que projetou outra revolução dentro da iniciada por Pep. E agora Zidane traz uma contra-revolução. Qual é o melhor modelo? Algum assumirá a hegemonia nos próximos anos? São perguntas impossíveis de responder. Não acredito em quem supõe prever o futuro também. Mas o passado dá pistas. E os assuntos diversos também.

Enfim, é possível entendermos que o futebol se repete e se renova. Os traços históricos reaparecem dentro de outros termos, de novos enquadramentos, e produzem algo novo. Daqui a dez anos — ou menos, os ciclos parecem ficar cada vez menores — volto para responder as perguntas que não consigo responder agora.

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