Um espaço de resistência

A Livraria Taverna, no Centro Histórico de Porto Alegre, se consolida no cenário cultural da cidade ao ter um acervo especializado e promover saraus, debates e cursos

Anderson Guerreiro
Redação Beta
11 min readMar 17, 2018

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Livraria Taverna em uma noite de sarau literário. (Foto: Andre Günther)

Faltavam alguns minutos para as 18h quando Maria Helena Weber e Lélia Almeida entraram na Livraria Taverna. Era sábado, 10 de março. Algumas pessoas já as aguardavam. Havia, também, quem estivesse no local sem saber que em instantes começaria um sarau literário denominado A escrita é mulher. Por cerca de uma hora, as escritoras leram trechos de obras feministas de autoria própria ou de terceiros, locais ou de fora, em português e espanhol. Cervejas artesanais e salgados veganos completavam o encontro, marcado pela crítica ao machismo e a reafirmação da literatura produzida por mulheres.

Nove pessoas sentadas, sete de pé, alguns no lado de fora e três da própria livraria. Este era o público que, apesar de ter alguns homens, tinha o predomínio feminino. Nove dias antes, outro evento feminista ocorreu na mesma Livraria Taverna. No ano passado, raros eram os finais de semana em que algum encontro voltado às minorias políticas, à propagação e discussão da arte e da literatura não era realizado na livraria. Em novembro, mês da Parada Livre de Porto Alegre, quatro eventos debateram gênero e sexualidade.

Nas prateleiras envernizadas, que vão do chão de cera vermelha ao teto branco, mais de três dezenas de temas denotam o perfil da Taverna. Literatura brasileira, russa, africana, alemã, tcheca, latino-americana. Linguística, crítica literária. Suspense, quadrinhos, ficção científica. Filosofia, antropologia, sociologia, marxismo, anarquismo. Gênero e sexualidade, livros escritos por mulheres, questão racial. Teatro, cinema, música, poesia. Ciência política, economia, ditadura brasileira.

O acervo da livraria é político. Tudo que lá ocorre reafirma vivências e corpos abjetos. A Taverna é resistência.

O nascimento da Taverna e as feiras

Tocava The XX e já não havia mais clientes na Taverna pouco antes das 19h, dois dias após o sarau de Maria Helena e Lélia. Os fundadores da livraria — André Günther, 26 anos, e Ederson Lopes, o Ed, 32 anos — contaram, em duas horas, sobre o projeto e o nascimento da Taverna. Gestada desde que eles se conheceram em 2012, em uma disciplina de Sociologia do curso de Ciências Sociais, da UFRGS, a Livraria Taverna nasceu oficialmente no dia 31 de outubro do 2014. Inicialmente, os acervos pessoais de André e Ed, que somavam cerca de 500 livros, formavam o da livraria. Ela estava na internet, mas era entre quatro paredes que os jovens a imaginavam num futuro hipotético.

Desde as primeiras conversas de ambos, um mero local de venda de livros nunca esteve nos planos. A ideia era ter um espaço que tivesse, em paralelo a isso, trocas culturais, cursos e bebidas. Entre a criação da Taverna online e a abertura do espaço físico no Centro, cerca de um ano e muitas feiras de rua se passaram. As feiras serviram para que André e Ed consolidassem internamente — e de certa forma até acelerassem — o projeto da criação de uma livraria que transpassasse o digital.

Em março de 2015, eles participaram, de maneira improvisada, de uma feira alternativa de arte em um casarão na Rua dos Andradas. O convite partiu da proprietária da loja de artes da Casa de Cultura Mário Quintana, onde Ed já havia estagiado. “Colocamos um tecido em cima de umas caixas e os livros ali. Estava pronta a banca”, relembra André. “Era uma feira com muitos artistas que produziam arte independente. Vendemos muitos livros, várias pessoas adoraram nosso acervo. Eram os livros certos diante das pessoas certas. Isso nos motivou”, comenta Ed. Porto Alegre vivia, naquele 2015, um boom de feiras de rua e aquela era a primeira dos jovens livreiros.

A alta circulação de pessoas, dos mais diversos estilos e gostos, fez com que os proprietários da Taverna tivessem, pela primeira vez, um contato cara a cara com os compradores de seus livros. Na banca deles, nomes como Gabriel García Márquez, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa. Ed afirma que nas feiras perceberam que havia um espaço a ser ocupado. “As pessoas não compram literatura clássica porque não é oferecido a elas. Nas vitrines o que as editoras estão enfiando pra dentro das livrarias, como autoajuda”.

Durante vários meses, André e Ed enchiam três caixas de supermercado com livros, colocavam toda a armação da banca de 1,80m no carro e iam para as feiras. As praças onde antes havia arte alternativa e uma literatura selecionada começaram a ser tomadas por comerciantes diversos. A renda começou a cair junto a uma mudança de perfil do público. “Uma menina chegou na banca com um copo de cerveja artesanal na mão, pegou um Drummond que tava 10, 15 reais e disse ‘tá muito caro’. Concluímos que os livros não são caros, mas sim desvalorizados. A cerveja dela certamente custava o mesmo que o livro”, pondera Ed. Esta feira ocorria na Praça Garibaldi, na Cidade Baixa, numa tarde de calor extremo. As vendas serviram basicamente para cobrir as despesas com locomoção, inscrição da feira e alimentação. Ao final, uma vendedora de óculos da banca ao lado regozijava-se. Havia vendido R$ 3 mil naquela tarde. Depois deste dia, André e Ed decidiram não participar de feiras de rua.

Saraus, debates e apresentações são frequentes na Taverna (Foto: Andre Günther)

A Taverna física

Quando a fatídica feira da Garibaldi ocorreu, a Livraria Taverna já havia sido inaugurada no Centro. No inverno de 2016, a procura por uma sala comercial que pudesse abrigar o projeto de André e Ed aumentou. O acervo já estava unificado com a decisão de ambos de saírem de seus apartamentos e morarem juntos. Faltava a loja e o local em que as trocas com os leitores das feiras poderiam ser retomadas. Outros espaços foram cogitados, até que a própria Fernando Machado, rua onde passaram a morar, os ofereceria uma sala a cerca de 150 metros de onde moram.

Uma oficina de máquina de lavar roupa, micro-ondas e geladeira se transformou na Livraria Taverna. “Reformamos tudo, pintamos, demolimos uma pia. Fizemos tudo sozinhos porque não tínhamos dinheiro para pagar alguém de fora”, diz Ed. Em junho de 2016, 20 meses após ser fundada na internet, a Taverna passou a ocupar um espaço num prédio residencial verde, de quatro andares e com três salas comerciais no térreo.

Tão logo as primeiras prateleiras chegaram, a porta de correr subiu e os clientes começaram a aparecer. A região tem circulação basicamente de moradores e, portanto, era preciso atingir possíveis frequentadores através das redes digitais, visão que têm, até hoje, os proprietários da livraria.

A Taverna não está pronta. Ela se molda, física e intelectualmente, a cada dia. No entanto, quando abriram a loja física, André e Ed sentiram que o acervo precisaria ser ampliado não só em número, mas na diversificação dos títulos e temas. Foi aí que a literatura contemporânea começou a fazer parte, de maneira mais significativa. “A gente não tinha a literatura que está sendo produzida agora, talvez por falta de conhecimento mesmo. Começaram a vir escritores até nós, que são muito engajados com livrarias. E aí começamos a ler escritores contemporâneos. Tem muita gente boa”, afirma André. A cada mês, uma estante nova era adquirida e, aos poucos, o acervo aumentava visualmente.

Quase dois anos depois de ter se fixada, a Livraria Taverna se consolida com a oferta de literatura diversa que não prima por oferecer de tudo um pouco, mas um pouco do que é bom, na visão dos seus donos. A curadoria literária feita por eles é aprovada pelo público formado por dois terços de mulheres, a maioria de esquerda e feminista. De esquerda como eles? “Sim, como nós”, firma Ed. Uma fajuta imparcialidade ideológica não é o objetivo. “Adam Smith é dos males o menor. Ele faz parte da ciência política e tem que ler até pra poder criticar, tanto quanto Marx. Mas Olavo de Carvalho não vai achar aqui. Olavo não há o que criticar”, rebate Ed quando provocado sobre a presença de títulos desses autores, símbolos da direita e do liberalismo.

“A gente não escolhe nosso acervo a partir das listas de mais vendidos. É a partir do que lemos e de obras que nos indicam. Lemos (Aldous) Huxley e sabemos que é bom. Ou vem algum amigo, alguma pessoa e indica uma obra. A gente lê e compra. Faz estudos de área, pesquisa”, comenta André sobre a formação do acervo. Os livros dispostos nas prateleiras serviram para que eles percebessem que havia uma discrepância entre a oferta de autoras mulheres e obras escritas por homens. A partir daí, outras minorias políticas, antes pouco representadas em livrarias, passaram a estar na Taverna. “Partimos para uma pesquisa a fim de encontrar escritoras mulheres que pudessem ser interessantes, que tratassem das questões da mulher, que fossem feministas. Autores negros também, percebemos que seria importante. Fomos atrás de escritores e hoje temos no nosso acervo, por exemplo, Conceição Evaristo, Ronald Augusto, Lilian Rocha. Tudo a partir de pesquisa e por interesse nosso mesmo. Nosso leitor é muito qualificado e, para ampliar o nosso acervo, foi necessário fazer esta pesquisa”, ressalta Ed.

Sarau ‘Três Vozes”, sobre questões raciais no mês da Consciência Negra, com Lilian Rocha, Ronald Augusto e Marcelo Martins. (Foto: Andre Günther)

Os livros estão em todas as paredes da Taverna. Nove luminárias, fixadas em um suporte de alumínio, ficam apontadas para as prateleiras, jogando luz sobre autores como Michel Foucault, Friedrich Nietzche, Angela Davis, Chimamanda Ngozi Adichie, Virginia Woolf e Eduardo Galeano. As três mesas redondas e as banquetas no balcão permitem que ali parte de um livro seja consumido. Ou, então, uma das cervejas artesanais dispostas em quatro fileiras numa uma geladeira branca. “Nós conhecemos todos os cervejeiros que produzem essas cervejas e conhecemos inclusive o processo de fabricação de algumas delas”, comenta Ed. A Taverna ainda tem café espresso e vários tipos de cachaça. O nome da livraria vem exatamente da presença de bebidas no espaço. Segundo os proprietários, sempre houve um cuidado para que a Taverna se consolidasse como uma livraria que tenha bebidas e não um bar com livros.

O professor de Literatura João Armando Nicotti compõe o grupo de pessoas que, aumentando a cada dia, leva à Taverna cursos, saraus e debates. De março a agosto do ano passado, o professor se encontrava no local com duas turmas, nas manhãs de quarta e sábado, para um curso sobre a obra de Fiódor Dostoiévski. Os encontros eram quinzenais, com duração de duas horas. Nicotti foi professor de Ed, que o convidou para ministrar o curso na livraria. “Ederson e André resistem, graças às suas particularidades, a um mercado editorial e livreiro carnificinas e apelativos, além de endinheirados. O trabalho deles é exemplar e, basicamente, isolado. Por isso, merece respeito e admiração. A resistência ao padrões morais e conservadores faz destes garotos e sua Taverna símbolos de uma cultura não somente alternativa e clássica, mas de consciência de que a arte pode sim alterar alguns rumos reacionários”, comenta o professor. Nos mesmos moldes, a partir do próximo mês Nicotti ministrará o curso Introdução à Poesia Russo-Soviética.

Debates que têm o feminismo como tema central também ocorrem com frequência na Taverna. Alguns deles, no ano passado, foram organizados pela advogada feminista Gabriela Souza. “Os guris são fomentadores de cultura e tudo na livraria cheira e transmite cultura. É muito bom estar lá, sou vizinha da livraria, então sou uma frequentadora. Vou lá porque gosto de ler e porque o ambiente é muito agradável”, diz. Ela abriu recentemente seu escritório de advocacia que atende somente mulheres e tem na Livraria Taverna um espaço que ela define como seguro para se conversar. “Nós fizemos alguns encontros de conversas femininas e feministas lá e o espaço de fala sempre foi muito respeitado”. Assim como Gabriela, a escritora Lélia Almeida, que participou do sarau citado no início deste texto, destaca o cuidado com o acervo da livraria. O trabalho artesanal, de tomar conhecimento de uma obra e problematizar sua presença ou não nas prateleiras, faz com que a Taverna tenha um acervo peculiar. “Acho que não existe em outro lugar de Porto Alegre”, comenta Lélia. “Eu não conhecia a livraria e estou apaixonadíssima”, disse ela durante o sarau do último sábado.

Um dos saraus feministas com a participação da advogada Gabriela Souza, ao microfone. (Foto: Andre Günther)

Os desafios de uma pequena livraria

A Livraria Taverna abre de segunda a sexta, das 10h às 19h, e aos sábados, das 14h às 19h. Em abril de 2017, André e Ed sentiram que uma terceira pessoa teria que integrar a livraria. Willian Caetano, formado em Letras e com experiência no ramo, passou a fazer parte do time atendendo clientes e contribuindo nas rotinas internas. Hoje, os proprietários se dividem entre a parte financeira, administrativa, compras, reposições e contato com os clientes do e-commerce, a cargo de Ed, e comunicação, redes sociais, eventos e imprensa, com André. A curadoria das obras é feita por ambos.

A aposta dos jovens em uma livraria num momento de avanço das narrativas que circulam na internet, da expansão de grandes redes, como Saraiva e Cultura, e do próprio comércio de livros na rede, está exatamente em serem um ponto fora da curva e em materializarem um enfrentamento de mercado e ideológico. André diz que a Taverna existe em um novo modelo de negócio. “Livro tu pode comprar em qualquer lugar. Mas o que faz uma pessoa vir até aqui é saber que vai ter um serviço de assessoria literária. Ela sabe que pensamos na construção do acervo. Já tivemos vários feedbacks legais. Num site não vai ter isso”. Os bons livreiros, segundo Ed, tem um domínio sobre os livros que vendem e isso dá a eles autoridade para falar sobre os livros. “Mas isso é cada vez mais raro. Nas livrarias grandes é humanamente impossível que o vendedor domine todos os assuntos de livros que estejam ali”, pontua.

A Taverna apresenta um crescimento contínuo de público e, por consequência, faturamento. Janeiro e fevereiro, meses de férias, e novembro, da Feira do Livro de Porto Alegre, são de baixa, mas os demais períodos compensam o menor fluxo nesses meses. Este crescimento possibilitou o lançamento da Editora Taverna no ano passado. Vida e morte de Rimbaud na terra do sempre, livro de poemas do gaúcho Stéfano Deves — que faleceu meses antes do lançamento, aos 25 anos -, foi lançado em 21 de outubro de 2017 e é a primeira publicação da editora. Nas próximas semanas, Andarilhos, de R. Tavares, será lançado. Há conversas com outros escritores para a publicação de suas obras pela Editora Taverna. As publicações independentes com as quais André e Ed tinham contato nas feiras impulsionaram o desejo pela editora. “Nosso pensamento foi: a gente também pode, vamos fazer livros”, enfatiza Ed. Eles cuidam de todo o processo de confecção do livro, incluindo capa, projeto gráfico, diagramação e processos burocráticos, como cadastro na Biblioteca Nacional. A revisão da obra de Deves ficou a cargo de Willian.

Em novembro de 2017, André e Ed gravaram um vídeo para explicar por que não estavam na Feira do Livro de Porto Alegre. (Divulgação: Taverna)

André e Ed são, por óbvio, empresários e comerciantes, mas se autodefinem livreiros. A Taverna é pensada, dia a dia, para ser diferente. O retorno dos clientes — muitos acabaram se tornando amigos dos proprietários — serve para consolidar a livraria como um espaço de afirmação cultural e literária. Na fanpage da Taverna, há 121 avaliações unânimes de cinco estrelas. A página é atualizada praticamente todos os dias com conteúdos diversos. Desde dicas de livros até lives dos eventos da livraria. No Instagram, stories diários com as novidades do acervo. Um blog literário e um canal no YouTube são as recentes novidades na comunicação. Neles, textos e vídeos falarão basicamente de literatura.

Segundo André Günther e Ederson Lopes, saraus, como o de Lélia Almeida e Maria Helena Weber no último final de semana, seguirão fazendo parte da programação de eventos da Livraria Taverna. Cursos, como os ministrados pelo professor Nicotti, da mesma forma. As minorias continuarão tendo na Taverna um espaço para debater as suas vivências. E o acervo, com novos nomes e temáticas.

André e Ederson, os fundadores da Livraria Taverna. (Foto: Willian Caetano)

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