Um lugar para se permitir ao novo

No Agulha, a música alternativa encontra espaço e diferentes culturas podem interagir

Anderson Guerreiro
Redação Beta
8 min readApr 20, 2018

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Ambiente do bar no Agulha. (Foto: Anderson Guerreiro/Beta Redação)

Um espaço de interação, de conhecimento do outro, de novas culturas e formas de expressão artística. Um ambiente que permite que bolhas sociais e culturais sejam furadas e atravessadas. O Agulha surge com este propósito. Aberto há nove meses no final da rua Conselheiro Camargo, no bairro São Geraldo, em Porto Alegre, o galpão industrial de 350 metros quadrados se coloca como um espaço onde a arte alternativa — principalmente a música — pode ecoar e encontrar apoio.

Se fosse um simples bar com espaço para shows, talvez o Agulha compusesse uma lista de outros ambientes que também têm este propósito. O inusitado vem, no entanto, quando se está chegando ao local. O galpão, que antes abrigava uma oficina de carros, estava fechado há oito anos. Logo na entrada, uma grande porta se abre em duas partes e, lançando um olhar distante, como se um diafragma se fechasse levemente, é possível avistar o bar em quase toda sua extensão. Além da estrutura física diferenciada, não é qualquer artista tocando qualquer música que tem espaço no local.

Eduardo e Fernando Titton Fontana são os irmãos criadores do Agulha. O primeiro, advogado trabalhista. O segundo, administrador. Hoje, dedicam suas vidas ao recente Agulha e a outro bar que têm no bairro Bom Fim. O contato com músicos e musicistas sempre fez parte do cotidiano dos irmãos e, aos poucos, começaram a perceber que a quantidade e a qualidade de artistas de diversas áreas era desproporcional à quantidade e à qualidade de espaços para eles se apresentarem em Porto Alegre.

Eduardo tem 31 anos e, hoje, não advoga mais. No Agulha, circula por todos os cantos, cumprimenta clientes que também são amigos. Conversa com um e outro. Recolhe copos, serve bebidas no bar. Ele, o irmão e mais oito funcionários atuam hoje no Agulha. Em dias de shows maiores, o número de funcionários chega a 11. Na noite do dia 18 de abril, o bar lotou. Pequenas rodas se formavam ao som ambiente, com predomínio de música alternativa nacional, enquanto o show de Juçara Marçal não iniciava. O Projeto Concha teria, naquele dia, mais uma edição no Agulha. A cada mês, uma mulher diferente canta no local como parte do projeto.

Juçara Marçal canta no palco do Agulha como parte do Projeto Concha. (Foto: Anderson Guerreiro/Beta Redação)

O propósito dos irmãos Fontana era oferecer um espaço à cultura porto-alegrense que permitisse trocas de experiência. As bolhas, como disse Eduardo, precisam ser furadas e o nome Agulha vem desta necessidade. No entanto, a identidade que hoje o bar apresenta não era algo exatamente concreto quando o aluguel do espaço foi fechado e iniciaram as reformas, que duraram cerca de seis meses. “Tínhamos um projeto em mente e quando fechamos o aluguel é que fomos fazer a parte de design do negócio e da arquitetura. E nisso o espaço foi se moldando. Optamos por ter toda uma estrutura de bar mesmo, balcão extenso e uma coquetelaria específica, uma parte de cervejas artesanais, de cozinha. Transformar em bar também, não só em espaço de arte”, afirma Eduardo. A oferta de arte, pondera, precisa estar atrelada a uma experiência. Daí a ideia de se ter, num mesmo ambiente, duas frentes: a da música e a do bar.

As surpresas a cada porta

Quando a porta do Agulha é transposta, o primeiro ambiente se mostra já acolhedor. Sofás, cadeiras e um piano formam o espaço denominado por Eduardo como de serviço. “A Letrux, no meio do show, parou lá no palco e convidou todo mundo para vir pra cá porque ela queria cantar uma no piano, vieram umas 300 pessoas junto”, comenta. Ali também funcionam a cozinha e o balcão de conferência dos ingressos em dias de shows. Também a lojinha do artista, quando preciso. Uma estante marrom com três televisões antigas e um rádio dão o tom da decoração que se encontraria em maior escala mais a frente.

O segundo ambiente é, sem dúvida, o mais imponente, tanto por ser o maior da casa como por abrigar o bar especificamente. Um extenso balcão de concreto fica em frente a três grandes estantes que abrigam dezenas de garrafas com as mais diversas bebidas. O espaço também mescla refrigeradores e geladeiras novos e antigos. Do outro lado do balcão, além das banquetas altas que não poderiam faltar em um bar, sete mesas com todos os tipos de cadeiras e poltronas, todas antigas, ficam no grande salão. Garimpos e ferros-velhos foram o alvo de Eduardo e Fernando para a compra da mobília do bar.

A iluminação do espaço central estabelece uma relação simbiótica com o telhado, digno de construções do século passado, mas totalmente preservado e à mostra. Sete luminárias, todas diferentes entre si, iluminam o maior ambiente do Agulha. Quadros nas paredes, folhagens por todos os cantos e até em lugares inusitados, como dentro de uma cadeira quebrada, uma estante com LPs, um armário do tipo roupeiro de aço e um rack antigo ajudam a formar a identidade do local.

Segundo Eduardo, a ideia era mesclar equipamentos novos e funcionais com mobiliário e decoração que remetessem a algo um pouco mais confortável, como à casa da vó. “Queríamos estabelecer esse contraponto: ser um galpão industrial com um mobiliário mais aconchegante. Imaginamos que se a gente fizesse tudo de ferro e madeira poderia ficar frio demais”.

Nas bebidas, especificamente, a proposta é ter no cardápio coquetéis com ingredientes um tanto escanteados. “Fomos pra um lado de insumos e identidade Brasil mesmo, de boteco e tentando revisitar ingredientes que são quase vulgarizados, desde a Canelinha da Serra até a catuaba”, afirma Eduardo. Também há quatro cervejas artesanais, produzidas por uma cervejaria parceira. Na cozinha, baião de dois, o exótico bolovo de feijão e outras opções igualmente incomuns para um bar gaúcho. O cardápio será renovado nos próximos dias, segundo Eduardo.

(Foto: Anderson Guerreiro/Beta Redação)

Lucas Machado, 24 anos, estava no Agulha pela primeira vez. Ele, que tomou conhecimento do bar dias antes, acompanhava um amigo na noite do dia 18. “A proposta é muito interessante e o local extremamente agradável. Bons drinks, boa música e um público verdadeiramente diverso”, destaca o turismólogo. Para ele, a aposta é inovadora por estar fora do circuito boêmio da cidade e, também, pelo fato de primar por atrações musicais independentes.

O verdadeiro motor do Agulha

O último espaço do Agulha é destinado às apresentações musicais. Um palco levemente mais alto que a pista, ao fundo da sala, acolhe artistas da cena alternativa e que tenham seu trabalho centrado nas produções próprias. O local tem equipamentos de som, como caixas, amplificadores, bateria, mesa de som digital. O básico para algum artista que — ou por estar vindo de outro lugar ou por falta de recursos mesmo — não os tenha, mas que possa, ainda assim, se apresentar ali. “E aí eles complementam com os equipamentos deles”, enfatiza Eduardo. Atrás do palco, tapetes com estampas diversas. No teto, quatro cavalinhos que, possivelmente, eram de carrosséis de parques de diversão.

O Agulha tem curadores que identificam pessoas com o perfil do local que estejam produzindo arte, especialmente na seara musical. Nos nove meses de atividades, já passaram pelo palco do bar nomes como a francesa Camille Bertault, que se apresentou com o pianista franco americano Dan Tepfer, o trio do Não Recomendados, a cantora e compositora paulista Tiê, a rapper porto-alegrense Jaqueline Pereira, a Negra Jaque, o rapper Zudizilla, a banda Marmota e dezenas de outras atrações locais ou de fora. O número de shows por mês varia, mas geralmente fica entre dez e 16.

O público também é variado e se estabelece a cada noite de maneira diferente, muito em função da atração musical do dia. Naquela quarta-feira, 18, a cantora Juçara Marçal, da chamada “nova vanguarda paulista”, subiu ao palco a partir das 22h30 e tocou para pessoas que eram a materialização do significado de diversidade. O bar, quando lota a partir da presença de um público tão diverso, alcança o objetivo de seus donos. “A gente notava que a galera que ia no show de uma banda de jazz era sempre a mesma, (as bandas) tocavam sempre pras mesmas pessoas. Em shows de um artista a gente percebia que o público se repetia bastante também”, comenta Eduardo.

Trecho de Velho Amarelo, de Juçara Marçal. (Vídeo: Anderson Guerreiro/Beta Redação)

Havia, portanto, uma não-interação e o Agulha surge assumindo a responsabilidade de pluralizar a cena musical alternativa de Porto Alegre. “A gente já levou isso ao extremo em alguns dias misturando atrações bem distintas. E numa em específico foi bem interessante: juntamos a Kiai, banda de jazz, com o Zudizilla, que é um rapper, ambos de Pelotas, e o show era isso, uma banda de jazz e um rapper cantando em cima. Vieram os dois públicos e eles interagiram bastante”, afirma o proprietário.

Uma localização nem tão incomum

O Agulha abre de quarta a domingo, a partir das 19h. Nos dias em que não há shows, não há qualquer cobrança de entrada. O bar fica no bairro São Geraldo, próximo à Estação São Pedro da Trensurb. Incomum geograficamente, mas não muito. O local está inserido dentro do chamado Quarto Distrito, um conglomerado de bairros que vai desde a rodoviária até o Humaitá, costeando o Guaíba. “Dentro dele (do Quarto Distrito), muito embora ainda seja grande, são mais de 200 negócios criativos, desde ateliê de arte até o Vila Flores, o 4beer (bar e cervejaria). Então é, de certa forma, um lugar isolado, mas nem tanto”, pondera Eduardo.

O público de calçada não é, de fato, o alvo dos proprietários do bar. Por estarem no final de uma rua sem saída e que só tem circulação durante o dia, é praticamente impossível que alguém chegue ao Agulha por acaso. O boca a boca e a internet são os caminhos mais prováveis para que o bar torne-se cada vez mais conhecido na cena cultural de Porto Alegre e região. E, a cada noite, com show ou não, furar as quase intransponíveis bolhas culturais e de relacionamento às quais se faz parte e se ajuda a compor, ainda que involuntariamente.

(Fotos: Anderson Guerreiro/Beta Redação)

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