Uma década de políticas afirmativas para afrodescendentes

Idealizada pela ONU, iniciativa tem objetivo de garantir visibilidade e direitos para o povo afro

Carolina Schaefer
Redação Beta
8 min readOct 24, 2017

--

Reconhecimento, justiça e desenvolvimento. Você já deve ter sido impactado por essas três palavras avulsas em muitas rodas de conversas com amigos, mas você sabe o que elas representam em conjunto? Elas são os três princípios da Década Internacional de Afrodescendentes, declarada pela ONU em 2015 e em vigência até 2024.

O objetivo da iniciativa é dar visibilidade ao povo afrodescendente por meio de políticas afirmativas que cumpram todos os direitos humanos e liberdades fundamentais do ser humano, sem importar sua classe, credo ou cor. Além disso, é gerar informação, conhecimento e respeito pelas culturas afrodescendentes, que influenciam no desenvolvimento da sociedade desde seus primórdios.

(Foto: Logan Abassi/ONU)

As medidas da Década foram pensadas em níveis nacionais, regionais e internacionais. De forma geral, eles pretendem que cada instância tome providências para garantir o combate ao racismo e a afirmação dos três princípios fundamentais que norteiam o assunto: reconhecimento, justiça e desenvolvimento.

Conversamos com o coordenador de Educação Física da Unisinos e professor da disciplina de Afrodescendentes na América Latina, Jorge Teixeira, para compreender como o trabalho da Década está sendo realizado aqui no país e como isso influencia na vida da população afro. Confira a entrevista:

Beta Redação: Como você vê a criação da Década Internacional dos Afrodescendentes?
Jorge Teixeira: Com o objetivo de manter o assunto em pauta. Então, assim que foi instituída a Década Internacional dos Afrodescendentes, é porque alguma coisa com os afrodescendentes não está de acordo, está em desalinho diante de igualdades. Esses temas eles procuram manter em pauta, porque uma vez já foi instituído o Ano Internacional do Afrodescendente. Há aquele impacto inicial e depois meio que murcha, sai da pauta. Portanto, a ideia de se fazer como se fossem 10 anos é porque de tempos em tempos esse assunto vem à tona de novo, as pessoas falam e percebem que existe desigualdade. É uma forma de esse tema voltar para os ouvidos e olhos das pessoas, bem como atingir um pouquinho o coração. Depois eles saem de pauta de novo, mas dá uma leve modificada no pensamentos de alguns. Então, a Década tem esse papel de trazer para discussão, de fazer com que atinjam alguns setores mais nebulosos da nossa sociedade.

Beta Redação: E qual é a importância de debater a Década dentro do meio acadêmico?
Jorge Teixeira: A universidade não tem só o papel de ensino e aprendizagem de seu corpo discente, de seus estudantes. No seu corpo docente, no seu corpo técnico funcional, também há aprendizado com o nosso dia a dia, uma vez que a gente tem o objetivo de levar para os nossos estudantes que os afrodescendentes têm um papel e um lugar de desigualdade muito grande na sociedade. “Somos estudantes” não é o suficiente, é importante que os professores também abracem essa causa, que o corpo técnico administrativo da universidade abrace essa causa porque os afrodescendentes estão aí, estão nos corredores. Esse tema não pode ficar restrito somente à sala de aula, somente a uma atividade acadêmica. Uma vez que a ideia da universidade é também ser transdisciplinar, é importante que esse tema apareça em outros lugares além das atividades acadêmicas, não só nas disciplinas.

Jorge Teixeira, integrante da Década Unisinos, coordenador de Educação Física e professor da atividade acadêmica “Afrodescendentes na América Latina”. (Foto: Rodrigo Blum/ Unisinos)

Beta Redação: E você acha que os estudantes afrodescendentes estão em posição de igualdade aqui na universidade?
Jorge Teixeira: Na universidade, sim. Na universidade eles têm todo o respeito para que não se sintam e não se vejam em desigualdade, mas a universidade está inserida numa sociedade desigual. Uma vez que eles chegam na universidade, eles vivem num mundo diferenciado, mas assim que saem daqui eles voltam para esse mundo de exclusão, de racismo, de preconceitos. Mas eles voltam sabendo disso, porque muitas vezes eles não sabem. Tem uma afro-americana, que trabalhou fortemente pelo final da escravidão nos Estados Unidos, Harriet Tubman (a foto dela está estampada na nota de vinte dólares), que dizia que quando ela se propôs a libertar os escravos, ela conseguiu libertar mil pessoas, conseguiu com que eles saíssem da escravidão. Ela libertaria mais mil se eles soubessem que eram escravos. Isso quer dizer que as pessoas não sabem que estão nessa situação de, não de escravidão, mas de efeitos de escravidão. Não sabem que estão excluídas, não sabem que são impostos a trabalhos diferenciados porque há resquícios ainda muito fortes de escravidão. O fim da escravidão tem mais de 100 anos, mas os efeitos ainda são muito fortes, e as pessoas precisam saber disso, precisam sair desse estado de torpor. O Brasil viveu um período muito forte de um mito de uma democracia racial, onde todo mundo dizia: “Não, aqui não tem racismo, aqui todo mundo é tratado de maneira igual”. Não é assim. Faz pouco tempo, faz 40 anos que começa a se dizer que isso não é verdade.

Harriet Tubman, abolicionista americana. Em 2016, foi anunciado que ela substituirá o presidente americano Andrew Jackson na nota de vinte dólares. O novo design circulará em 2020. (Foto: Wikipedia/Wikicommons)

Beta Redação: Tu és professor da disciplina de “Afrodescendentes na América Latina”, aqui na Unisinos. Como é essa troca com os alunos?
Jorge Teixeira: Essa experiência é muito legal. Por ser uma disciplina relativamente nova, nós vamos aprendendo também. O professor sempre tem essa coisa de ensinar, mas também aprende muito. Nos primeiros semestres de implantação dessa disciplina a gente entra de coração aberto, achando que
todo mundo gosta, todo mundo é legal. Mas não é verdade. Nós temos muitos
estudantes que não acham que esse tema seja importante para sua carreira, que acham que não vai acrescentar. Então a gente tem o papel de desconstruir essa ideia de que a universidade vai preparar um estudante e fazer que a
capacidade de se humanizar esteja presente. Nós não formamos aqui técnicos, nós formamos profissionais com a capacidade muito forte de se humanizar e levar essa humanidade para o seu meio profissional. Essa disciplina, no decorrer do tempo que eu estou dando ela, tem me ensinado que os alunos precisam falar, precisam trazer suas experiências, como é que eles percebem os privilégios, muitas vezes, de não ser negro. Muitos não percebem, me dizem coisas como “Poxa, eu não sabia que andar na rua, pra mim, não é perigoso. Eu não vou ser visto como um ladrão”. São essas pequenas percepções que vão transformando um pouquinho mais o viver deles.

Beta Redação: Como a reflexão da temática afrodescendente surgiu na sua vida?
Jorge Teixeira: Olha, eu estou debaixo dessa pele preta desde que eu nasci. Mas assim, isso surge quando a gente vai para o mundo do trabalho. Na escola isso sempre aconteceu, sempre houve piadinhas, mas são coisas de jovens e são encaradas como piadas… são verdades encaradas como piada. Mas, uma vez que tu entra no mundo de trabalho e que é um mundo de competição, que é um mundo de “salve-se quem puder”, se essas pessoas não estiverem habilitadas para entender que existem diferenças, isso bate de frente. As piadinhas passam a ser piadinhas de exclusão, piadinhas de superioridade e inferioridade. “Eu sou mais capaz porque sou branco, tu é menos capaz porque tu é negro”, e isso aqui no sul é muito forte. Isso está presente de uma maneira muito grande, porque nós somos impactados pela imigração europeia.

Beta Redação: O que você acha que precisa mudar para serem obtidos o
reconhecimento, a justiça e o desenvolvimento, que são os três princípios da Década?
Jorge Teixeira: Olha, eu acho que o tempo vai ajudar. Com o passar do tempo e com educação das relações étnico-raciais, nós vamos atingir níveis de igualdade melhores. Tem avanços e tem retrocessos, como uma onda que vai e volta. A gente tem que estar preparado para esse balanço de que a gente avança e retrocede, porque uma vez que a gente quer igualdade, a gente vai bater de frente com alguns privilégios, as políticas afirmativas dizem isso. Existe uma percepção que eu costumo trazer para meus estudantes, pois muitos dos estudantes da Unisinos são contra as cotas, muitos são contra políticas afirmativas, e aí tu pergunta para eles: “Por que vocês não estão estudando na UFRGS?”. Se tu não passou na UFRGS não é porque tu não conseguiu, mas sim porque a UFRGS é privilégio, é uma cota para quem é bem treinado, para quem é bem treinado desde pequeno nos melhores colégios, nos cursos de inglês, viagem pelo mundo, e essas pessoas são um grupo muito pequeno na sociedade. Vocês não estão ali porque não fazem parte desse grupo, essa cota que existe desde que o Brasil é Brasil. Vocês não percebem. Agora, quando se fala que a gente precisa reverter essa situação com a população que nunca vai atingir esses setores da sociedade, aí eles são contra, aí eles começam a perceber que existem privilégios não só para eles como para outros grupos também.

Beta Redação: Alguma outra consideração antes de encerrarmos?
Jorge Teixeira: Eu acho que a Unisinos tem sido pioneira — o que é muito legal — em fazer essa discussão. Quando a gente se propõe a discutir isso, a gente troca ideias de “Eu sou a favor”, “Eu sou contra, por isso, por isso…” e chega, através dessa discussão dialética, em um denominador comum. Essa troca de argumentos está nos fazendo amadurecer. Demora? Sim, mas já estamos caminhando.

NEABI Unisinos em sintonia com a causa

O Núcleo de Estudos Afrodescendentes e Indígenas é um dos grandes parceiros da Década. Na Unisinos, por exemplo, eles criaram um grupo especial para debater sobre a causa. Uma vez ao mês, reúnem-se coordenadores, professores, funcionários e até alunos da universidade, com o objetivo de pensar em alternativas de tornar o espaço de estudo e convívio cada vez mais inclusivo.

Isso é possível com a realização da feira dos afrodescendentes. Idealizada pelo grupo, hoje ela acontece mensalmente pelos corredores da universidade, dando visibilidade ao trabalho da cultura afro. Além disso, saraus, seminários e ações afirmativas são explorados a fim de trazer o debate sobre a desigualdade racial e a necessidade de adquirir os três princípios fundamentais da Década.

Na feira afro, os artefatos contam a história da cultura. (Foto: Carolina Schaefer/Beta Redação)

Consciência e homenagem

Faltando uma semana para novembro, mês da Consciência Negra, comemorado no dia 20, é importante refletir sobre as atitudes e o quanto se pode ajudar em relação à temática. Até 2020, a Assembleia Geral da ONU pretende entregar, neste mesmo mês, um memorial em homenagem às vítimas da escravidão e do tráfico transatlântico de escravos.

Quer saber mais sobre a Década Internacional? Confira o site aqui.

--

--