A caminhada de Tiago objetiva um futuro melhor. (Foto: João Rosa/Beta Redação)

O rapaz com as caixas de sapato

Na primeira matéria da série Vidas da Rua, Beta Redação acompanha a rotina de um frequente personagem no cotidiano da estação Canoas/La Salle

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Talvez fosse a véspera de Natal de 2007 ou 2008, não me recordo bem. De longe vi que ele estava lá, sentado no chão, com suas muletas e uma caixinha de papelão. O clima era de pressa entre as pessoas que saíam do trabalho naquele fim de tarde, afinal, logo mais seria hora da ceia.

Um dos lados da passarela da Estação Canoas/La Salle, que leva os cidadãos ao conhecido “Calçadão” de Canoas, era o ponto de um jovem, aparentemente abatido, mas grato pelos transeuntes que contribuíam com um troco. “Muito obrigado e Feliz Natal”, disse com um sorriso de canto, aparentemente sincero, quando me aproximei dele para ceder uma nota de R$ 5 que estava no meu bolso. No entanto, somente 12 anos depois eu descobriria seu nome e história.

“Meu pé esquerdo”

No fim da manhã de 26 de março de 2019, após compromissos pessoais no centro da cidade, resolvi conferir se ainda estava por ali aquele jovem que observei há mais de uma década recebendo trocados. Ele realmente se encontrava no mesmo espaço, com o fiel par de muletas deitados na via, uma necessaire junto à coxa esquerda, um jornal do dia dobrado no meio e, desta vez, duas caixas de sapatos com as tampas abertas.

“Fico estrategicamente aqui no meio, pois tudo na vida é uma questão de marketing”, dispara Tiago da Silva Teixeira, natural de Esteio, 28 anos de vida e mais da metade dela vivida diariamente no centro de Canoas, cidade localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre. Ele acredita que se posicionar na metade do trajeto, que liga as pessoas às plataformas do metrô, é uma “estratégia” porque a maioria delas, quando chegam no ponto que ele está, “puxam o ar para recuperar o fôlego”, diz. E é neste instante que Tiago se sente notado.

Os dizeres da caixa despertam a atenção dos que passam depois de olhar seu pé esquerdo, roxo, inchado e enfaixado. Se no filme premiado Meu Pé Esquerdo”, o jovem personagem vivido pelo brilhante ator Daniel Day-Lewis conseguia fazer tudo com o pé canhoto devido à uma paralisia cerebral, na história de Tiago, o membro inferior é tido com um fardo, mas que não o impede de trabalhar.

A caixa de sapato com os trocados que garantem o sustento da família de Tiago. (Foto: João Rosa/Beta Redação)

Desde seu primeiro dia de vida, ele carrega consigo uma malformação congênita (MC) nas mãos e no pé esquerdo, que precisa de curativos duas vezes ao dia. “Compro gaze todo dia porque não é sempre que tem no Postinho. Já fiquei um mês sem”, dispara, mencionando a Unidade Básica de Saúde (UBS) Parque Claret de Esteio. Além disso, Tiago usa duas pomadas, que se estão em falta na UBS, é necessário desembolsar R$ 62 mensais para adquirir em uma farmácia de manipulação de Canoas.

A chamada MC é definida como uma anomalia funcional ou estrutural presente no nascimento ou que se manifesta ao longo dos anos, decorrente de fatores genéticos, ambientais ou até desconhecidos. No Brasil, a doença constitui a segunda causa de mortalidade infantil, em 11,2% dos casos, sendo o sistema cardiovascular o mais afetado, associado ou não a outras malformações, segundo dados do Ministério da Saúde.

Mas, “a perna é uma coisa que incomoda”, fala Tiago com um tom estafado apontando para a mesma. Quando fez a segunda cirurgia no local, o “médico errou”, nas palavras de Tiago, e cortou um nervo indevido, deixando o rapaz sem sensibilidade do joelho para baixo. A pele acaba ficando mais suscetível a bactérias, uma vez que a perna e o pé ficam expostos e em contato com o chão sem nenhuma proteção.

Segundo estudos de 2017 do Instituto de Pesquisa da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais (FCM-MG) e Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), seis pessoas morrem a cada 60 minutos por erros médicos, falhas assistenciais ou infecções nos hospitais brasileiros.

Apesar de estar em um ponto estratégico da passarela, a presença de Tiago passa muitas vezes despercebida. (Foto: João Rosa/Beta Redação)

Em busca de direitos

Se para muitas pessoas a amputação de um membro é um filme de drama como o citado acima, para Tiago o procedimento é um sonho próximo de se realizar. “Estou esperando a próxima cirurgia, mas está tudo enrolado. Quero poder amputar para colocar uma perna mecânica”, deseja.

Uma defensora pública do Estado o auxilia para que consiga o Benefício Assistencial, conhecido como Benefício de Prestação Continuada (BCP). O BCP é pago pela Previdência Social e visa garantir um salário mínimo mensal para pessoas que não possuem meios de prover à própria subsistência ou de tê-la provida por sua família.

No ano passado, Tiago recebeu uma boa quantia de parcelas atrasadas referentes à Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Ele espera garantir mais ainda em 2019. “É um direito meu e quero ter o quanto antes”.

Depois de escutá-lo um pouco e entender melhor quem era aquele pai de família, que é ignorado muitas vezes pelos que ali passam, me despedi e disse que voltaria ainda na mesma semana.

Mas antes, peguei seu número de WhatsApp.

“Um rico dum guri”

Dois dias depois voltei ao centro no meio de uma tarde de quinta-feira. Alguns metros antes, estiquei o pescoço para encontrar Tiago na passarela, e ele não estava lá. Subi para ter certeza e realmente não o achei em seu canto. Embora frustrado, aproveitei e dei uma volta nos arredores para perguntar sobre o rapaz.

A primeira parada foi na própria estação. Chamei um segurança metroviário e questionei se conhecia o cara que ficava sentado na passarela com as caixinhas de sapatos. Prontamente ele me orientou a passar no guichê de compras de bilhetes. Quem estava lá era o funcionário Leonardo Ferreira, há oito meses trabalhando na Trensurb. “Conheço ele sim. Toda noite ele compra passagens conosco”. Mas o que mais instiga Leonardo é que Tiago faz questão de comprar os bilhetes mesmo sem necessidade, já que é portador de uma deficiência que lhe dá o direito ao benefício.

Assim que saí na porta da estação, desci a passarela pelo lado oposto no qual ficava Tiago, em direção à Igreja da Matriz. Fui até a banca Lanches da Praça e conheci Karla Randon. A dona do local revela que o rapaz costuma trocar notas altas para ela. “Dou dinheiro e ele vai nas lojas e substitui para as pessoas que precisam de troco”, explica. Segundo a empreendedora, as lojas o agradecem dando desconto ou cedendo lanches. “Gente boa e honesta para caramba”, alega sem pestanejar a mulher que conhece Tiago há 15 anos.

Um momento marcante para ela foi quando Tiago recebeu os salários atrasados do Governo. “Fiquei muito feliz”, confessa. Karla conta ainda que quando o rapaz costuma lhe dizer algo, torna-se realidade. “Ele brinca que quando fala as coisas para mim, tudo costuma dar certo. Daí eu falo para ele cuidar das coisas que diz, pois tem muito olho grande por aí”.

Retorno para a parte superior da estação e decido entrar em uma espécie de camelódromo. Direciono-me a um senhor com mais de 60 anos e pergunto se conhece Tiago. Ele indica a senhora da banda ao lado. Ela é Soeli de Oliveira e diz que conhece ele desde pequeno. "É um ‘rico dum guri’, pai de família que trabalha direito e não usa drogas”, relata. Natural de Sapucaia do Sul, a ambulante não se cansa de usar adjetivos para descrevê-lo. “É um menino normal, que cresceu na rua, muito educado, batalhador e que merece todo o apoio”, revelando que o rapaz compra roupas para ele e a filha Ághata, de quatro anos, na sua banca.

A ambulante Soeli conhece Tiago desde a infância. (Foto: João Rosa/Beta Redação)

Depois de me despedir de Soeli, passei em uma pequena loja de bijuterias ao lado. Na porta, perguntei se alguém conhecia o Tiago e uma senhora, que não quis se identificar, começou a falar sem parar. “Conheço ele desde que era criança, sempre o vi aqui pedindo dinheiro. Uns falam que é um cara legal, outros dizem que maltrata um dos filhos, que não precisaria ficar ali”, comenta a proprietária, que finaliza dizendo que “é tudo meio boato”.

“Se eu paro de vir para cá, não tenho dinheiro para comer”

Ainda sem saber do paradeiro de Tiago — seu WhatsApp permanecia sem visualização das mensagens enviadas — , parto em direção a duas localidades do Calçadão buscando saber mais sobre quem é ele. Uma delas é a Baby Modas, que fica quase no pé da passarela. Entro na loja e sou atendido por um vendedor que me leva ao fundo do estabelecimento para falar com a gerente Carla Almeida. Ela sorri e diz que conhece Tiago há quatro anos. “É nosso cliente. Compra roupas conosco e damos descontos ou até mesmo mercadorias. É bem família, sempre fala dos filhos” — além da Ághata, Tiago é pai do Arthur, de oito meses.

Em frente ao estabelecimento de roupas infantis, encontra-se uma farmácia. Pergunto quem costuma atendê-lo e sou direcionado até a vendedora Jéssica Rodrigues. “Vem todos os dias para comprar fraldas ou pomadas e curativos para o pé, como gaze, atadura, esparadrapo e soro”, relata a jovem, apontando para a prateleira dos medicamentos. Ela diz ainda que Tiago é muito paciente, e que brinca a todo momento com sua condição. “‘Posso esperar vocês atenderem, tenho bastante tempo’”, conta ela, relembrando as falas do cliente.

Voltei ao local de Tiago e lá estava ele, com as muletas deitadas no chão e a perna esticada para a esquerda.

“Onde tu estavas?” pergunto.

“Pagando umas contas em lotéricas e trocando uns dinheiros”, responde.

Ele se considera um “Severino quebra-galho”, fazendo menção ao personagem vivido pelo falecido comediante Paulo Silvino, no programa Zorra Total, da TV Globo. “Isso que faço é mais uma forma de ganhar uns trocados, além da venda de balas”, afirma.

Retomo alguns questionamentos e ele dispara: “se eu paro de vir para cá, não tenho dinheiro para comer”. Tiago também comenta que prefere não pedir diretamente para as pessoas. “Se eu fizer, parece que as pessoas têm a obrigação de ajudar”. Sendo assim, optou pela placa e também vende balas por R$ 1,00.

Ele não faz questão de dizer que tem filhos. “Usar as crianças é errado, as pessoas não são obrigadas a me ajudar”, frisa. Por falar em ceder ao próximo, ele admite que dá lanches para uma idosa que passa dia e noite na porta da mesma estação. “Assim como é comigo, não custa nada ajudar. Afinal, ela dorme na rua e eu, graças a Deus, tenho um teto”.

Para aumentar a renda, Tiago decidiu vender balas. (Foto: João Rosa/Beta Redação)

“Vai atrás dela!”

Cenas cômicas, de preconceito e generosidade, também fazem parte da vida de Tiago ao longo desses anos. Como certa vez em que um jovem, aparentemente office-boy, deixou cair muitas notas de 50 reais na passarela e uma senhora, que estava logo atrás, pisou em cima do dinheiro para que ninguém visse, “fingindo um tombo cinematográfico”, relembra o nosso personagem gargalhando.

Tiago, que observava o momento, conseguiu alertar o menino desatento. “Olha, aquela senhora que está indo embora apressada pegou umas notas que caíram do teu bolso. Vai atrás dela!”. Por fim, “a tia devolveu tudo, pois eu avisei o cara. Mas o tombo foi de atriz”, destaca o rapaz.

Em seguida, questiono sobre quanto ele recebe diariamente: "uma média de R$ 40,00", conta. Recorda também que uma vez que uma senhora, passando no fluxo contrário à passarela, "simplesmente me chamou de vagabundo. Não tive reação a não ser olhar bem para a cara dela. Ela continuou e disse que eu não precisava ficar ali”, relembra com um ar de tristeza.

Em contrapartida, questionei também se ele havia vivido algum momento positivo nos quase 15 anos de passarela. Tiago não hesitou e lembrou de uma cena que o emocionou em 2014, quando uma idosa, antes de parar para ajudá-lo, confessou que havia feito uma promessa. Tiago nos conta com sua própria voz no áudio a seguir.

A noite estava caindo e perguntei se podíamos nos encontrar no sábado. Ele aceitou e combinamos um almoço por minha conta. Cumprimentei Tiago com um aperto de mão e um tapinha nas costas, ainda sentado no chão.

“Sempre vivi na rua e meio que me acostumei a ganhar dinheiro”

Meu celular marcava 11h30 do sábado quando liguei para ele. “Estou aqui te esperando”, declara Tiago. Chamei um motorista pelo aplicativo, ansioso para saber sobre o passado, gostos e planos de Tiago nesse terceiro dia de encontro.

“Tô por ti”, disse ele quando me viu.

“Então vamos almoçar porque estou em jejum”, disse eu rindo, junto do canoense com o qual eu já me sentia muito à vontade.

Andando lentamente, fomos até o Ponto XV, restaurante de uma galeria na Rua 15 de Janeiro, a principal de Canoas. Depois dele ter servido um bom prato de comida caseira, nos sentamos e questionei como ele tinha passado os últimos dias. Tiago revelou que seu sogro estava internado no Hospital Nossa Senhora das Graças por problemas no coração. Por causa do imprevisto, ele teve que ficar a tarde toda em Canoas para esperar a ligação da esposa Ana Paula, de 35, que conheceu há 11 anos em uma festa.

Percebo que em dois dias de aproximação ele ainda não tinha falado sobre as pessoas que fazem parte da sua vida fora das ruas. Então, contou que a mãe Ivone Teixeira faleceu em 2009, com 53 anos. “Não saia do sofá e se recusava a ir ao médico”, contou. A catadora teve uma infecção no trato urinário, seguida de uma insuficiência renal crônica. Deixou para trás a convivência com ele e os três irmãos: Alexandre, 39, Lucas, 21, e Ana Cláudia, de 20 anos .

O mais velho não pode mais pisar em Esteio devido à complicações com o mercado do tráfico de drogas na região. Ele virou pastor e está morando no interior. Já Lucas morou um tempo com Tiago, que hoje está segue sem notícias do irmão e também da caçula, Ana.

Todos eram filhos do padrasto de Tiago, homem que ele não faz questão de saber onde está. “Maltratava muito a minha mãe”, relembra com rancor. “Para ter noção, quando o Lucas fez dois anos, ele pegou o filho, tirou de casa e deu para a ex-mulher criar”, relata.

Tiago e sua mãe Ivone, em meados dos anos 1990. (Foto: arquivo pessoal)

Desviando um pouco o assunto, comento que a polenta do restaurante estava muito boa e ele rebate: “tenho trauma disso, principalmente a cozida”, referindo-se a iguaria. Tiago afirma que todos os dias ele e seus irmãos comiam polenta — pura, com molho ou com sobras de proteínas que pediam nos mercados. “A gente via os açougueiros raspando as carnes para ficarem mais apresentáveis no balcão e pedíamos o que sobrava dizendo que eram para os cachorros”.

Depois de relembrar o período difícil, Tiago dispara a falar sobre sua vontade de ligar para o irmão mais velho, Alexandre, para pedir ajuda para encontrar Lucas e Ana. “Quero trazer eles pra dentro da minha casa, mesmo com todas as minhas dificuldades, e tentar cuidar deles”, deseja.

Tiago conta também sobre sua experiência na escola. Com muita dificuldade terminou o ensino fundamental, já adulto, em um supletivo, pois não teve a oportunidade de frequentar a sala de aula no momento adequado. “Sempre vivi na rua e meio que me acostumei a ganhar dinheiro das pessoas. Fui parar no centro de Canoas por acaso, devido às andanças com a gurizada”, conta o esteiense.

“Mas por que tu acabastes escolhendo essa cidade para pedir?”, questionei.

“Porque uma vez os seguranças do trem nos correram e eu acabei ficando para trás devido as muletas. Aí chorei, e me recolhi no canto. Começaram a me dar trocados, pois era ainda uma criança e sentiram pena. Desde então, fiquei aqui”, respondeu com um pastel em mãos.

“Tá bom o pastel? Acho que vou pegar um”, digo.

“Sim, muito! Uma vez me deram 17 pastéis no centro!”, recorda.

No televisor do restaurante chega ao fim o programa Globo Esporte, sintonizado a partir da TV Globo, levando-me a perguntar: “Gremista ou Colorado?”

“Inter!”, exclama.

“Conhece o Beira-Rio?”

“Nunca fui”, ele diz.

Começou o Jornal Hoje e a primeira notícia comenta a viagem do presidente Jair Bolsonaro para Israel. Pergunto a ele em quem votou na última eleição e o que está achando do novo Governo Federal:

“Votei no Jair Bolsonaro”, diz rapidamente.

“Mas já votou no PT alguma vez?”, investigo.

“Sim, votei no Lula nas duas vezes (2002 e 2006) e na Dilma uma vez (2010). Votei no Aécio em 2014 e me arrependi muito. Homenzinho falcatrua!”, opina em meio a risos.

“Então por que Bolsonaro em 2018?”.

“Porque acho que algo tem que mudar, não dava mais para ficar como era antes, e o Haddad estava me parecendo um fantoche do Lula”.

“E o que está achando do trabalho do seu candidato?”.

“Está passeando muito, né?! Muita viagem! Já notei isso”, observa, finalizando a conversa e também o nosso almoço.

Após o almoço, Tiago retorna para o seu ponto estratégico e passa em frente a loja Baby Modas. (Foto: João Rosa/Beta Redação)

“Sou obrigado a vir”

Quando voltamos ao ponto onde tudo começou, puxei assunto novamente, curioso sobre suas atividades de lazer. Notei que antes de irmos almoçar, Tiago estava assistindo um filme, série ou clipe no celular e com fones de ouvido. Era uma cena com a personagem Coringa, interpretada por Heath Ledger, morto em 2008, no filme “O Cavaleiro das Trevas”.

“Eu gosto muito de assistir filmes em DVD ou vídeos no YouTube, principalmente os de curiosidades sobre filmes” revela. Emendei perguntando se ele tinha pisado alguma vez na sala escura do cinema. Ele começa a rir. “Foi muito engraçado. Eu, minha mulher e o filho dela queríamos assistir o filme “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”. Mas tivemos que assistir “A Era do Gelo 4”, pois a classificação indicativa era de 12 anos e ele tinha oito”, recorda a primeira e única vez no cinema.

Como era sábado, o movimento da rua estava baixo em relação aos outros dias em que estivemos juntos. A caixinha, então, permanecia praticamente vazia com o passar das horas. Para as poucas pessoas que contribuíram naquela tarde, Tiago agradecia. Mas por mais que sua gratidão prevalecesse, ele confessa que chega um momento em que não quer mais viver nessas condições. “Sou obrigado a vir”, declara. “Quero demais sair daqui. Sou muito grato, inclusive, a Trensurb, que querendo ou não cede esse espaço e, com ele, tiro meu sustento. Graças a Deus nunca passei fome”, desabafa.

O maior motivo para que o desejo de mudança de vida aumente em Tiago foi a vinda de seus filhos, Ágatha e Arthur. “Eu quero dar um futuro melhor para eles. Meus filhos me renovaram!”, exclama. Sua grande realização profissional seria fazer um curso de confeiteiro ou de administração de empresas. “Gosto demais de fazer doces em casa e acredito que me dou bem com números, desde garoto”, expõe. Contudo, ele fica desconfiado em pagar alguém para realizar um destes cursos, pois já foi enganado. “Uma vez um cara disse que eu só pagaria a apostila de um curso de confeiteiro. No fim, ele fugiu com meu dinheiro”, relembra indignado.

Despedi-me de Tiago e iniciei minha volta pra casa. Enquanto andava, lembrei daquela véspera de Natal, quando notei Tiago pela primeira vez. "Na verdade foi em 2009", corrijo-me, quando dei uns trocados a ele e escutei seu “Feliz Natal!”. Recordo-me que senti certa leveza naquele momento, na trêmula passarela da estação, mas sem puxar conversa. "Vidas da rua. Vidas que seguem", pensei.

Levei 10 anos para descobrir também que as caixas de sapato são também doadas para Tiago. Afinal, ele nem lembra da última vez em que pode calçar um tênis. Tiago não consome, devido à sua doença, esta mercadoria tão cotidiana para todos nós, que a usamos para andar nas cidades — sem perceber que o valor arrecadado nos cofres improvisados constroem, diariamente, a história de uma família.

Tiago planeja seu futuro observando o presente. (Foto: João Rosa/Beta Redação)

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João Rosa
Redação Beta

Jornalista, produtor de eventos e apaixonado por cinema, Copa do Mundo e Rolling Stones.