Violadas e desamparadas: vítimas de estupro têm medo de denunciar

Estima-se que apenas 10% dos casos cheguem às delegacias

Tina Borba
Redação Beta
11 min readApr 11, 2018

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Revitimização afasta as mulheres da delegacia. (Foto: Renata Simmi/Beta Redação)

Renata Simmi e Tina Borba

“Em uma tarde de janeiro, no interior da Bahia, Bianca estava voltando para sua casa depois de visitar uma amiga em um bairro próximo. De repente, quatro homens a abordaram com uma arma, perto de um matagal. Um dos homens que estava no grupo era vizinho e amigo de infância da vítima. ‘Eles colocaram a arma em mim e disseram que, se eu gritasse, eles iam me matar. Quando eles me levaram para o matagal, sofri todos os tipos de tortura’, lembra Bianca”. Esse relato é do Observatório do Terceiro Setor, grupo de comunicação sem fins lucrativos cujo propósito é estimular uma sociedade mais justa. O nome da vítima foi alterado por solicitação dela.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 10% das mulheres que foram violadas tomam a decisão de denunciar. Ainda assim, as 1.682 denúncias de estupro ajuizadas pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP) em 2017 representam um crescimento de 10,5% com relação ao ano de 2016.

Quando a vítima decide denunciar, acaba revivendo momentos horríveis ao contar o que lhe ocorreu, e ainda corre o risco de ser atendida por um agente do Estado mal preparado para desempenhar a sua função. “No momento em que ela se apresenta numa delegacia de polícia, não pode haver perguntas sobre sua roupa, o local em que estava, consumo de álcool, o horário em que estava na rua ou por que estava desacompanhada e não se cuidou. Esse tipo de pergunta, que decorre de uma educação machista, não deve ser feita”, aponta a promotora de Justiça Ivana Battaglin.

A promotora alerta que a revitimização é o principal motivo para que as vítimas desse crime hediondo não procurem os seus direitos junto às autoridades. “Isso pode acontecer logo no primeiro atendimento, em uma delegacia de polícia, com o juiz, pelo representante do Ministério Público, pelo representante da Defensoria Pública, pelo advogado da parte, até mesmo pelo perito que for fazer o exame nela”, revela Ivana.

E mesmo após a mulher tomar coragem e denunciar, o caminho ainda é longo. Apenas 6% dos homens denunciados foram a julgamento no ano de 2015, segundo o MP.

Em 2018 a Lei Maria da Penha comemora seu 12º aniversário e a Lei do Feminicídio completa 3 anos de vigência. Apesar de serem recursos importantes no combate à impunidade contra os agressores, o Estado ainda está distante de garantir integralmente a segurança das brasileiras.

Rede de apoio às vítimas de violência

A ONG Themis — Gênero, Justiça e Direitos Humanos, situada na capital gaúcha, tem como uma de suas frentes o acolhimento de vítimas nos primeiros momentos pós-agressão. Há 25 anos, ela forma Promotoras Legais Populares (PLP), mulheres capazes de se defender e auxiliar outras mulheres. Os bairros Rubem Berta, Cruzeiro e Restinga contam com o Serviço de Informação à Mulher (SIM), que são locais onde as PLPs atendem as vítimas que buscam orientação, fornecendo aconselhamento jurídico e social.

As Promotoras Legais preenchem um espaço deixado pelo poder público. São procuradas por escolas e postos de saúde para ensinar às mulheres como se libertar de seus abusadores. “A gente participa de rodas de conversa na saúde, na educação, nos movimentos. Eles nos procuram para pegar informações e muitas vezes acabam encaminhando essa mulher até nós, para que a gente oriente e acolha”, relata Maria Guaneci de Ávila, PLP desde 1994 e técnica da Themis.

(Charge: Carlos Latuff)

Maria Guaneci salienta a dificuldade que as mulheres têm em contar para outras pessoas que sofreram uma violência. “A mulher que sofre algum tipo de violência não sabe o que fazer num primeiro momento. Ela está fragilizada. A gente tem que acolher, encaminhar e, às vezes, andar junto com ela”, conta.

Além do medo sobre como suas denúncias serão recebidas e da timidez em assumir perante outras pessoas as violências que sofreram, as mulheres também enfrentam obstáculos de ordem prática. Muitas vivem com os companheiros e não têm para onde ir se pedirem uma ordem de restrição para pôr fim à violência. Um estudo recente do Ipea aponta que 70% dos agressores são familiares (pais, padrastos, tios, maridos etc.) ou amigos das vítimas.

A promotora Ivana alerta para a necessidade de ter empatia antes de julgar o comportamento das vítimas. “Quando tu consegues te colocar no lugar do outro, tu consegues perceber a dimensão das coisas. Em uma palestra que participei, a palestrante indagava quantos dos ali presentes já haviam apanhado do pai e da mãe. Depois ela explicou que aquilo também é violência doméstica. E por que não foram embora quando apanharam? Dependência econômica? Porque amavam o pai e a mãe? Porque tinham medo? Porque tinham vergonha?”, relembra.

Um enfrentamento diário vivido pelas PLPs é o de aproximar as vítimas dos serviços básicos. Quando a mulher toma coragem de denunciar, precisa estar próxima da delegacia, do posto de saúde, para não desistir. “Se ela tiver que se arrumar e esperar 1 hora e 30 minutos o Restinga (ônibus) para chegar no Palácio da Polícia, onde é a Delegacia da Mulher, a dor já passou, o medo voltou e essa mulher não vai procurar ajuda”, argumenta Maria Guaneci.

Violência física e psicológica

A cada 5 horas uma mulher é estuprada no Rio Grande do Sul, de acordo com os indicadores da violência da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP). E as consequências vão muito além dos hematomas e sangramentos pelo corpo, explica a psicóloga clínica Mariângela Feijó. “Às vezes, a mulher sofre um estresse pós-traumático, não consegue sair, trabalhar. Ela busca ajuda principalmente por causa disso, porque não consegue dormir, não consegue esquecer da cena e fica revivendo aquela situação”, aponta.

Mariângela explica que o atendimento prestado quando a mulher decide procurar ajuda profissional é focado apenas em ouvir as vítimas, sem julgá-las. Por vezes, as mulheres não procuram as delegacias, nem mesmo o amparo familiar, por medo de serem responsabilizadas. “É mais para ela saber que tem alguém ali que vai estar pronta para ouvir se ela quiser falar, e não para acusar”, diz a psicóloga.

Delegacia da Mulher

“Dedico meus dias a lutar pelos direitos das mulheres e conheço bem os números de violência e como o sistema é despreparado para lidar com o problema. Por isso, ontem, quando o motorista enfiou o dedo dentro da minha vagina depois de me empurrar do carro na rua escura ao lado da minha, eu vim pra minha casa e não fui à delegacia. Não fui fazer corpo de delito. Não fui mesmo. Quem vive na fantasia de que ‘é só ir à Delegacia da Mulher’, certamente jamais esteve em uma.” Esse é o relato da escritora gaúcha e feminista Clara Averbuck. Ela relatou em suas redes sociais o estupro que sofreu em agosto de 2017 dentro de um veículo do aplicativo de transporte Uber.

Clara atualmente mora em São Paulo. Pelos relatos que tivemos acesso, a recepção de mulheres vítimas de violência nas delegacias da capital paulista e de Porto Alegre são semelhantes. Entretanto, em meio ao machismo estabelecido de que certas mulheres “merecem” de alguma forma ser estupradas por conta de suas roupas ou de seus comportamentos, encontramos um local onde o atendimento às mulheres vítimas de violência é feito com dignidade, a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), em Porto Alegre.

A reportagem visitou a delegacia, que fica localizada na lateral do Palácio da Polícia. É um prédio antigo, que foi reformado há pouco mais de cinco meses, com aporte integral da iniciativa privada. O saguão é claro, bem iluminado e conta com uma exposição com quadros de mulheres fortes, que também tiveram suas histórias manchadas pela violência. À esquerda, ao lado das cadeiras para esperar o atendimento, há o espaço kids, colorido e com alguns brinquedos para os pequenos que acompanham as mães.

A delegada titular da DEAM, Tatiana Barreira Bastos, reforça a questão da subnotificação. Segundo ela, são inúmeros os fatores que levam a essa condição, e um deles é o atendimento que a vítima recebe ao denunciar. “Em relação ao atendimento, a gente sabe que muitas vezes as falhas nos equipamentos (pessoas e instituições) que fazem essa primeira abordagem contribuem, não só para a não denúncia, mas também para a revitimização dessas mulheres, que acabam não seguindo até o final de um processo ou de uma ação penal”, elucida a delegada.

A mulher vítima de violência pode fazer o registro na delegacia mais próxima. Entretanto, a DEAM é o local mais indicado e preparado para receber essa denúncia. “Temos um atendimento diferenciado, até pela estrutura física, pela articulação com a rede, pela qualificação dos profissionais que aqui atuam, além de termos a atribuição de fazer a investigação do processo todo”, afirma Tatiana.

Ao chegar na DEAM, a vítima deve preencher um formulário através do qual será feita a triagem. Esse procedimento é importante pois exclui a necessidade do relato ser feito no saguão, em frente às outras pessoas que aguardam no local. Então, ela pega uma senha e aguarda o atendimento. Nesse ponto se encontra a principal deficiência da DEAM, que, por não contar com um número grande de servidores (são 28 servidores e sete estagiários — em sua maioria, mulheres), acaba demorando no atendimento, dependendo da movimentação do dia.

Após ser chamada para o atendimento, a mulher vai até uma sala reservada, onde será ouvida por uma agente treinada. Caso a vítima esteja muito nervosa ou fragilizada, pode ser acolhida na Sala Lilás, para atendimento psicossocial. Em caso de estupro, a mulher narra nessa sala particular a violência que vivenciou, faz o registro de ocorrência e já é encaminhada à profilaxia (atendimento recebido nos hospitais cadastrados a fim de prevenir doenças sexualmente transmissíveis e gravidez), e também é encaminhada ao exame de corpo de delito. Também é nesse momento que a vítima pode solicitar uma medida protetiva. “São a maioria dos casos, já que quase 60% dos agressores são pessoas conhecidas, do convívio da vítima. Ela pode solicitar a medida protetiva de urgência através da Lei Maria da Penha”, esclarece a delegada.

O ideal é que a vítima procure a delegacia o quanto antes. “As medidas de profilaxia têm prazo e são mais eficazes em até 48 horas, por conta do coquetel anti-retroviral e da pílula do dia seguinte”, ressalta a delegada.

Sala Lilás, sala de atendimento e espaço kids. (Foto: Renata Simmi/Beta Redação)
Delegacia da Mulher tem ambiente acolhedor. (Foto: Renata Simmi/Beta Redação)

Apoio online é possível

“Tento seguir em frente, seguir aquele conselho de não me culpar. Algumas vezes é inevitável eu não me sentir um lixo, suja e vadia. Porque me tornei vadia segundo alguns conhecidos e parentes. Não queria me sentir assim, mas o mundo me diz isso o tempo todo. Não sei o que é o prazer do orgasmo, de ser amada e respeitada.” Esse é um relato anônimo de uma mulher que foi estuprada repetidas vezes por seu então namorado, divulgado pelo projeto Não Aguento Quando (NAQ). Criado por sete jovens universitárias em outubro de 2012, o NAQ é uma comunidade online para esclarecer dúvidas e dar voz às mulheres.

Nem sempre as vítimas encontram o suporte que precisam em casa ou têm a coragem necessária para ir procurar ajuda por si mesmas. E, nesse sentido, a internet e as redes sociais têm se mostrado cada vez mais úteis. Redes se formam, no país (e no mundo), entre mulheres que buscam auxílio e que compartilham os seus momentos de sofrimento, para que não se sintam sós.

Uma dessas redes é o Mapa do Acolhimento. O projeto foi criado em junho de 2016 com o intuito de fornecer apoio jurídico e emocional para mulheres do Brasil. Já são mais de 2 mil voluntárias, que disponibilizam seus serviços em várias cidades do país. Ao entrar no site, a mulher pode escolher se quer acolher alguém, se quer ser acolhida ou se quer apoiar a ideia. 371 mulheres já buscaram acolhimento após sofrerem algum tipo de violência.

Violência estrutural

Junto ao Atlas da Violência 2017, o Ipea elaborou um estudo específico, Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, no qual evidencia que a violência contra a mulher está na base da sociedade na qual estamos inseridos. “A violência de gênero é um reflexo direto da ideologia patriarcal, que demarca explicitamente os papéis e as relações de poder entre homens e mulheres. Como subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita, coloca a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem”, diz o documento.

No Brasil, 90% das mulheres temem ser vítimas de estupro, de acordo com o Ipea. Todavia, a insegurança em existir como mulher não está limitada ao nosso país. A Organização Mundial da Saúde (OMS) liberou um estudo, em 2014, que indica que uma em cada três mulheres será alvo de violência durante a sua vida.

No ano passado, 63 mulheres denunciaram, por dia, algum tipo de lesão corporal, conforme apontam os indicadores da violência da SSP. Isso equivale a uma mulher sendo agredida a cada 23 minutos no nosso estado.

“É necessário que haja uma desconstrução de estereótipos de gênero. E para haver essa desconstrução é necessário um investimento de todas as instituições nisso. Desde a Polícia Civil, passando pelo Ministério Público, Poder Judiciário, Defensoria Pública, enfim, todos os órgãos têm que estar engajados nisso”, afirma a promotora de Justiça Ivana Battaglin.

Se você passou por uma situação de estupro ou violência, leia as orientações da delegada Tatiana Bastos:

  • Vá à Delegacia da Mulher (ou qualquer outra delegacia próxima), o mais breve possível, sem tomar banho ou trocar de roupa. Caso tenha trocado a roupa, tente levá-la consigo;
  • Preencha o formulário presente em cima do balcão de atendimento na delegacia;
  • Aguarde para fazer o Boletim de Ocorrência e receber o encaminhamento para o Instituto-Geral de Perícias (IGP) — para realização do exame de corpo de delito — e para o hospital para receber a profilaxia contra doenças e gravidez.
  • Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher: Rua Professor Freitas e Castro, s/n — Azenha/Porto Alegre. Telefone: 3288–2173
  • Central de Atendimento à Mulher: Ligue 180
  • Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM): (atendimento psicológico, assistencial e orientação jurídica). Rua dos Andradas, 1643, 3º andar — Centro/Porto Alegre. Telefone: (51) 3289–5110
  • Defensoria Pública: para resolver questões cíveis (separação, partilha de bens, guarda de filhos, pensão alimentícia, internação compulsória para tratamento).Rua Caldas Júnior, 352 — Centro Histórico/Porto Alegre. Telefone: (51) 0800 644 5556 (das 9h às 12h e das 13h às 18h).
  • Solicitou medida protetiva de urgência: (depende de representação criminal da vítima) — em 72 horas deverá comparecer ao Foro Central, das 11h às 18h. Rua Márcio Luiz Veras Vidor, 10 — Praia de Belas/Porto Alegre. Telefone: (51) 3210–6500.
  • Primeiro passar no guichê C, no térreo, para identificação e informação atualizada do processo. Depois, dirigir-se até ao 5º andar do Foro Central, no Juizado de Violência Doméstica, para saber se a Medida Protetiva de Urgência foi deferida.
  • Solicitação de acompanhamento para retirada de pertences pessoais do lar conjugal: deverá agendar pelo telefone: (51) 3288–2287.
  • Escuta Lilás: 0800 541 0803 — segunda a sexta, das 8h30min às 18 horas.

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Tina Borba
Redação Beta

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