Três histórias de quem enfrenta o preconceito de perto

A gordofobia está presente na rotina de 92% dos brasileiros

Daniela Tremarin
Redação Beta
9 min readSep 5, 2018

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As gaúchas Paula Kochem e Juliana Oliveira e a paulista Milena Paulina narram histórias de como é viver com o preconceito diariamente. Usando suas profissões, elas mostram como estão tentando fazer a diferença não apenas nas suas vidas, mas influenciando pessoas que passam pelas mesmas situações. Não se assuste com cada subtítulo dessa matéria, pois eles são frases que toda pessoa gorda já ouviu um dia.

De acordo com a pesquisa solicitada pela SKOL Diálogos, realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ipobe) no segundo semestre de 2017, ainda que velada, a gordofobia está presente na rotina de 92% dos brasileiros. Apesar do alto número, apenas 10% daqueles que se declaram preconceituosos assumem que são gordofóbicos.

Entre os entrevistados, que não se reconhecem preconceituosos, 89% admitem que já falaram ou ouviram alguém dizer a frase “ele (a) é bonito (a), mas é gordinho (a)”. À primeira vista, a frase soa como inofensiva. Porém, a sentença carrega um preconceito claro e enraizado pela sociedade: o uso da conjunção adversativa, “mas”, como se os adjetivos “bonito ou bonita” não combinassem com o “ser gordo ou gorda”.

#GordofobiaMédica no Twitter

No início de agosto deste ano, a hashtag #gordofobiamédica foi um dos assuntos mais comentados na plataforma, após a blogueira Flávia Durante narrar uma situação vivida por uma amiga gorda. Prestes a dar à luz, a moça ouviu um comentário preconceituoso de um médico presente no parto. Desde então, a hashtag já contabilizou 746 retweets e mais de 2.420 curtidas apenas no post original, além é claro, das centenas de comentários gerados.

Após a divulgação do caso, centenas de pessoas começaram a publicar suas histórias no microblog, trazendo à tona a problemática que uma pessoa acima do peso sofre todas as vezes que precisa realizar uma consulta médica. A gordura é tratada como doença e causadora de todos os problemas da mesma.

Fobia, de acordo com o dicionário, significa um sentimento exagerado de medo ou aversão por algo ou alguém. Normalmente, é tratada como uma patologia, considerada uma doença psicológica e que causa o medo mórbido. Gordofobia, portanto, seria o medo que pessoas magras têm de pessoas gordas?

Mas o que levaria alguém a ter alguma coisa contra pessoas gordas? Gordo é uma característica como qualquer outra. Magra, alta, forte, baixa, fraca, morena, loira. São diversas características, mas nenhuma delas parece incomodar tanto quanto o “ser gorda”.

“Você não acha que está muito gorda para usar isso?”

Formada em moda, Paula Kochem é idealizadora de marca plus size (Crédito: Reprodução)

Formada em moda, Paula Kochem, 24, desenvolveu a marca Curvas de Maria, que trabalha com tamanhos plus size. Considerada “fora dos padrões”, ela é uma mulher que não vê apenas um mercado, mas também uma forma de mostrar para outras mulheres que, independentemente do tamanho, é possível estar na moda e se sentir bem consigo mesma.

Para Paula, a gordofobia é utilizada para caracterizar um preconceito, uma discriminação às pessoas gordas, acima do peso e que o assunto precisa continuar a ser debatido.

Justamente por ser formada em moda, percebo a pouca importância da inserção do plus size nas marcas. As marcas que começam a ter essas peças acabam não atingindo o público, podem se denominar plus, mas vendem peças até o 48 ou 50, sendo ainda que, muitas vezes, o tamanho 50 não serve realmente um manequim 50. Outra parte do mercado vem de pequenas marcas que, muitas vezes, por serem pequenas, não conseguem competir, tendo que trabalhar quase sem lucro ou ainda com preços altos, que impedem deixar as peças competitivas no mercado.

Mesmo para uma profissional que trabalha na área de vestuário, é perceptível a dificuldade em se inserir no mercado. Uma das motivações dela para seguir com seu trabalho foi justamente ter sofrido com o preconceito quando nova.

Eu aprendi a me amar de um tempo para cá. Comecei a conhecer o universo plus size, a conversar com meninas como eu e a me achar no mundo. Durante toda minha infância sofri por causa de peso e preconceito, pois sempre fui gorda, “fora dos padrões”, diferente das coleguinhas. Atualmente eu tento não me importar com a opinião, mas é impossível não perceber olhares na praia, por exemplo.

Paula transformou o preconceito em motivação para seguir com o seu trabalho (Crédito: Reprodução)

“Não falo por estética, minha preocupação é com a sua saúde”

Juliana Oliveira utiliza seu trabalho para empoderar outras mulheres "fora dos padrões" (Crédito: Caroline Tedesco/Beta Redação)

Maquiadora profissional, Juliana Oliveira, 25, utiliza o seu trabalho como uma ferramenta de empoderar mulheres. Por não se encaixar nos modelos de beleza, todos os dias ela tenta mostrar para suas clientes a importância de se valorizar.

Questionada sobre o uso da palavra gordofobia, ela não teve dúvidas em responder que acredita no verdadeiro significado da palavra: não gostar de gordo, de achar que gordo é sem vergonha (preguiçoso), que não se cuida direito, que está sendo relaxado consigo. “Eu acho que é bem isso, assim como tu tem 'nojinho' de uma aranha: uma pessoa que repudia quem está acima do peso”, completa.

Como maquiadora, tem muita mulher que não se gosta maquiada, mas tu vê que o problema não é a maquiagem, mas a autoestima dela. Se ela estiver com ou sem maquiagem, cabelo arrumado ou não, ela não gosta de si porque ela se culpa por estar acima do peso, por se achar “relaxada”. Ela não consegue dar uma chance de se amar: — Olha essa minha versão? Eu gosto dessa pessoa que eu sou e ponto final. É difícil saber se elas estão se aceitando ou não, mas percebo uma diferença nas mulheres em elas perceberem que a beleza é só uma casca.

Juliana, usou suas próprias experiências como motivadora para seguir em uma profissão responsável por destacar uma beleza já existente em cada uma das mulheres que ela atende diariamente.

Por muito tempo, e até hoje muita gente fala, quando falo que sou gorda “não, é porque tu é alta”. As pessoas têm uma dificuldade muito grande de me aceitar. Claro, por muito tempo eu também tive problemas com isso, porque tu ter um corpo “fora do padrão” já é autoexplicativo, é algo que não se encaixa na sociedade. O preconceito com as pessoas gordas é bem real, assim como todos os outros. O lance do pessoal é reclamar do que é diferente, do que eles acreditam e não dá apenas para aceitar que existe. Isso realmente me incomodou durante um tempo da minha vida, principalmente na adolescência, aonde a gente queria ser aquela garota magrinha igual as da revistas. Hoje pra mim é uma glória ser diferente e quem não aceitar é uma pena.

“Percebo uma diferença nas mulheres em elas perceberem que a beleza é só uma casca” (Crédito: Reprodução)

“Ela é tão bonita de rosto”

Paulina, criadora do projeto Eu, Gorda (Crédito: Reprodução)

Milena Paulina, 23, paulistana e criadora do projeto Eu, Gorda busca, por meio da fotografia, incentivar as mulheres a aceitarem e amarem suas curvas da forma que são.

Desde quando trabalha com fotografia, como surgiu o teu interesse por essa arte?

Milena Paulina — Eu sempre amei ficar olhando fotos e imaginando o que as pessoas estavam sentindo quando elas foram tiradas, aquelas fotos que vemos na internet ou nos livros. Aquilo me instigava tanto, me prendia tanto, era como se aquelas pessoas conversassem comigo, ou me fizessem sentir menos sozinha. Quando tive a oportunidade de comprar minha câmera, em 2016, eu já sabia que era isso o que eu queria fazer: gravar o que as pessoas estavam sentindo.

O que é o projeto Eu, Gorda?

Milena — O Eu, gorda é um projeto autoral que nasceu quando eu nem tinha a real noção do quanto necessitava de ajuda. Eu sempre soube que queria construir algo para outras mulheres. Mas foi quando percebi que além de ajudar outras mulheres, semelhantes a mim, eu também poderia me ajudar, que este projeto nasceu. Ele é extremamente pessoal: um grito que sai do fundo da minha alma e que grita por mudança, que grita por arte, que grita por beleza, que grita pela humanização do corpo gordo, que grita basta a todos os tipos de violações aos nossos corpos!

Como, quando e onde surgiu o projeto Eu, Gorda?

Milena — O projeto teve início no ano de 2016, na cidade de São Paulo. Quando eu percebi que me focar no que eu sou e contar a minha história através das fotos — que também é a história de outras mulheres -, era o que eu precisava fazer de corpo e alma. São muitas coisas que me fazem pensar no que me inspirou a criar esse projeto. Mas o que mais me impulsionou foi a busca por uma representatividade. Essa palavra é falada, às vezes, em alguns movimentos, mas a maior parte das pessoas não conhecem a real diferença que ela faz na vida das pessoas. Você se sentir representada — de uma forma humana e com muito amor, é claro — te faz se sentir “normal”, mesmo que o resto das pessoas tentem provar o contrário.

Como você faz para que as meninas se sintam à vontade para posarem nuas?

Milena — Eu dou tudo de mim para mostrar a elas que somos iguais. Eu sempre procuro tratar todas as mulheres (e homens, casais, etc.) da mesma forma que eu gostaria de ser tratada. Acredito que esse pensamento, mesmo que óbvio, é o que falta em muitas relações. Se eu procuro conhecer a alma das pessoas, então eu preciso mostrar a minha alma. Se eu procuro trabalhar com a nudez de maneira normal, humana e sem tabus, então eu preciso mostrar a minha nudez normal, humana e sem tabus. Se eu preciso que elas fiquem à vontade e se sintam seguras, então eu preciso criar um ambiente seguro.

A sociedade vem mudando e sendo mais aberta ao diferente, concorda? Já sofreste como profissional algum tipo de preconceito por escolher essa temática?

Milena — A mudança ainda é extremamente pequena e isolada, principalmente quando falamos para/sobre pessoas gordas. Ainda temos um preconceito enorme cravado nas pessoas, contra o corpo gordo. Ser gordo ainda é considerado, por muitos, algo pior que a morte. Ainda vemos diariamente exemplos — muitas vezes vindo com máscara de “piada” ou de “cuidado com a saúde” — de que você pode ser o que quiser, menos gordo, pois “ninguém gosta de quem é gordo”.

Suas fotos buscam trabalhar a nudez humana de maneira normal, sem tabus (Crédito:Milena Paulina/Projeto Eu, Gorda)

Vocês podem conferir mais do projeto pelo Instagram:

A luta contra os padrões de beleza impostos acabam sendo reforçados todos os dias pela sociedade e pela mídia. O exemplo mais recente é a nova série da Netflix: Insatiable. A produção mostra os estereótipos que uma pessoa “fora dos padrões” sofre e coloca em múltiplas plataformas para o mundo inteiro assistir e reafirmar preconceitos.

A caminhada para um mundo com aceitação e respeito ainda é longa. Porém, com exemplos positivos como dessas três mulheres, é possível direcionar o futuro para algo melhor.

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Daniela Tremarin
Redação Beta

Jornalista, cinéfila, apaixonada por histórias e criadora do @bergapop