RPG das Antigas

Mih Lestrange
Biblioteca das Ancestrais

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Nem sempre existiu o Discord para facilitar as campanhas entre pessoas de lugares diferentes. Nem sempre tivemos D&D Beyond pra ter fichas online (e portanto à prova de perda e/ou manchas de comida). Aliás, nem sempre tivemos algo no mundo do RPG muito além de D&D, de forma geral.

Hoje, vamos falar sobre RPG das antigas. Como era o RPG na época em que os nerds (como eu) não tinham muito mais do que a internet discada, o MSN e a quase completa impossibilidade de importar um livro de RPG sem ter que oferecer um órgão vital como pagamento.

Já contei aqui diversas histórias da época em que comecei a jogar RPG. E se você me acompanha desde essa época, já deve ter reparado uma coisa bastante evidente: eu sou velha.

Na época em que aprendi o que era RPG (em torno dos meus 13 anos) a única possibilidade além de encontrar meus amigos para jogar (uma vez por mês quando eu ia pra capital) era me divertir nas comunidades de Orkut e no MSN.

Caso você seja novo demais para entender do que eu estou falando, Orkut foi a rede social que viralizou entre os brasileiros antes da chegada do Facebook. Consistia em um perfil pessoal (como sempre) e era basicamente um sistema de fórum. As comunidades tinham diferentes temas, e era extremamente difícil encontrar comunidades sérias.

Como toda boa rede social povoada essencialmente por adolescentes, a imensa maioria das comunidades levavam nomes como: Odeio Segunda-feira; Amo batata frita; Fãs de Bon Jovi e por aí vai.

Mas qual era o esquema: dentro de cada comunidade, tinhamos os tópicos de discussão. Cada tópico tinha o seu propósito (por exemplo: lugar onde você comeu a pior pizza da sua vida) e a ideia era que as pessoas trocassem comentários sobre o assunto do tópico em questão. Bastante simples.

Não demorou muito pra que os perfis fake viralizassem no Orkut, é claro.

A moda era bem simples: as pessoas criavam um perfil fake do personagem que mais gostavam (anime, filme, série ou mesmo atores) e passavam a acompanhar comunidades como: bar fake; balada fake; praia fake. Nessas comunidades, cada tópico correspondia a um lugar, e nós e nossos perfis fakes nos divertíamos conhecendo outros fakes e brincando por horas.

Caso vocês estejam se perguntando: não, eu não ia à praia fake nem à balada fake (nasci careta, nem em balada fake eu vou). Eu, paticularmente, fazia parte da vanguarda dos perfis de animes do orkut, e frequentava lugares icônicos como A Pensão Funbari e o Bar Shinigami.

Se você reconhece qualquer um desses lugares, possivelmente fomos amigos. Ou nossos fakes foram. Vocês entenderam.

Com a internet discada e a óbvia limitação nas primeiras redes sociais, vocês podem imaginar que não tinhamos muitos recursos além da nossa criatividade. E, posso garantir, funcionava perfeitamente bem.

Além das comunidades do Orkut, o MSN também era uma opção bastante válida. Aos que já leram meus outros textos, a história do ET abismo surgiu de uma aventura inesperada de RPG entre amigos no MSN.

Já naquela época, era possível ter coisas como nicknames coloridos no MSN (o que parece legal mas era, em verdade, um pesadelo), além de conseguirmos colocar partes do texto em negrito e/ou itálico. As regras eram simples: ações eram colocadas em negrito, diálogos em off iam entre parênteses e, pra ser sincera, não lembro a função do itálico. Mas, como vocês podem ver, nós tinhamos um sistema.

E falando em sistema, vocês devem estar se perguntando: como nós organizávamos a aventura? Quem era o mestre? Como se subia de nível?

Bem, aí é que está… ou não está, no caso. Vejam bem: não existia um sistema. Ao menos não no sentido tradicional. Sim, já naquela época existiam algumas poucas pessoas com acesso aos livros de D&D, que passavam algumas informações gerais pelo MSN ou Orkut para ajudar a estruturar alguma coisa, mas era uma minoria.

De forma geral, acho que posso dizer que o jogo era bastante colaborativo.

Como funcionava: no Orkut, nós íamos até a comunidade e o tópico fake que nos interessavam, e começávamos a postar no tópico anunciando a chegada do personagem ao lugar. Se houvesse alguém online (e geralmente havia) começavamos a conversar e/ou brigar e criar as cenas conforme as outras pessoas reagiam.

O local era pré-estabelecido. Os tópicos geralmente tinham um post fixado, contendo a descrição física daquele ambiente. Por exemplo: o tópico diz “quarto 417”, ali, o post fixado vai dizer que o quarto tem setenta metro quadrados, conta com dois quartos, uma sala grande, cozinha equipada, etc etc. De maneira que não precisamos nos preocupar com muita coisa relacionada ao cenário.

Claro, muitos dos personagens entravam nos lugares carregando bolsas, mochilas, alguns até eram mágicos e alteravam coisas no ambiente. Porém, de forma geral, ao entrar no quarto fake, já tinhamos um cenário bem estabelecido, de forma que tudo o que precisavamos fazer era interagir com os outros personagens.

Não se enganem, era uma zona.

Em lugares como a Pensão Funbari era comum ter vinte, trinta ou mais pessoas online ao mesmo tempo, por vezes interagindo em um mesmo tópico. As mensagens subiam loucamente (como as lives do instagram hoje em dia) e era comum ter diversas interações simultâneas, entre grupos de personagens diferentes. Quando um lugar ficava muito lotado, o mais sensato a se fazer era mover o grupo de amigos a um outro lugar da pensão, mais vazio.

Juro a vocês, num determinado ponto, nós ficamos tão acostumados a esse tipo de interação que os tópicos das comunidades realmente começam a parecer lugares reais, onde podemos entrar e encontrar pessoas com quem interagimos sempre.

No MSN, era um pouco mais difícil. Por não termos nada além da imensa janela de conversa coletiva, algumas coisas eram estabelecidas antes de o jogo começar. Eram elas: personagens, descrições e etc; o ambiente e a direção geral da história. Por não termos um Mestre do jogo, geralmente todos os cenários e situações eram mais ou menos combinados entre os jogadores.

Também funcionava relativamente bem, e de forma geral, funcionava como as comunidades do orkut: várias pessoas interagindo ao mesmo tempo, porém com uma regra de turnos, de forma que os acontecimentos não saíssem (muito) do planejado.

Por fim, acho que o recado principal desse artigo é um só. A regra de ouro: não existem regras, contanto que os participantes se divirtam.

E, apesar das limitações da internet, nós (os nerds antigos) eramos perfeitamente capazes de nos divertir com não mais do que alguns tópicos com descrições breves e textos em negrito e itálico.

Pode ser a nostalgia falando, mas acredito que funcionava tão bem quanto qualquer mesa com livros, fichas oficiais e dados bonitos.

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Mih Lestrange
Biblioteca das Ancestrais

📚 Cheiradora de livros •🖋 Histórias bizarras e contos estranhos • 🌙 Barda na Noite • Bibliotecária com as Ancestrais •