Sobre ser seu próprio gatilho, segurança e o fim de uma mesa

Flávia Ramalho
Biblioteca das Ancestrais
12 min readDec 16, 2021

Olá. Antes de ler este texto, saiba que eu vou tratar de experiências pessoais, saúde mental e gatilhos, então, se esses assuntos te fizerem mal, sugiro que pare por aqui e agradeço por ter dado alguma atenção ao que estou disposta a dizer. Já é mais do que eu recebi antes.

Um texto sobre gatilho e segurança de mesa não é nenhuma novidade no meio do RPG. Recentemente, eu completei dois anos nesse hobby e não pretendo reinventar a roda com esse tema, que, inclusive, já foi muito bem discutido por outras criadoras de conteúdo, mas às vezes tudo o que se precisa é falar da própria experiência. Quero recuperar a minha voz e, se possível, abrir o caminho para que outras vozes se libertem e não passem pelo que eu passei, afinal, representatividade importa, né? O termo está batido, mas não deixa de ser verdade. Ao final do texto, deixarei os links de outras vozes que me inspiraram, porque sem as delas, a minha não teria a coragem necessária para esse texto aqui.

Antes do relato, vou apresentar a minha história com o RPG, porque os dois se entrelaçam e se embolam, até se transformarem na jogadora que sou hoje. Em 2019, quando uma pessoa muito querida da minha vida (que escreve muito bem, inclusive, vou deixar o medium dela aqui) estava tentando me convencer a entrar no mundo do RPG, eu li um texto que ela me mandou cujo título era “Eu sou meu próprio gatilho — Relato de uma jogadora de RPG ansiosa” da Anaíse Nóbrega, e ele virou uma referência para mim antes mesmo de ter vontade de jogar. O texto fala sobre jogo seguro a partir da perspectiva de uma jogadora com transtornos de ansiedade, e de como às vezes sua maior ameaça de segurança é você mesma.

Quando o li, mesmo sem nunca ter jogado RPG, me senti totalmente contemplada. Fazia terapia já há nove anos e o principal assunto das sessões sempre era como eu não precisava de inimigos, porque ninguém era capaz de fazer mais mal a mim do que eu mesma. Depois de lê-lo, inclusive, passei a chamar a vozinha do mal de dentro da minha cabeça de Anapoli, assim como a autora fazia. Nada do que eu te diga será suficiente para descrever a qualidade desse texto, então apenas deixarei o link no final para que você o leia.

Em 2020, eu finalmente entrei nesse mundo. Estava muito feliz jogando em mesas queridas e consumindo mesas de RPG streamadas, muito empolgada com as possibilidades que se abriam para mim. Comecei a receber convites para jogar ao vivo e passei a participar ativamente da comunidade. Então foi uma grande honra ser chamada para participar de um canal que foi uma das inspirações para a minha mais nova paixão, e foi nessa oportunidade que eu tive que aprender a cuidar melhor de mim mesma. Não vou citar nomes, nem de canal, nem de pessoas. Não importa. O que importa é poder finalmente falar o que não pude falar antes.

Era uma mesa de investigação adolescente. Montei uma personagem popular com um passado problemático que escondia de todos a sua situação financeira. Essa personagem foi extensamente baseada na minha adolescência e foi proposital. Eu tinha a ilusão de que eu poderia resolver questões minhas com o passado em um jogo. Atualmente, eu enxergo esse como sendo o meu maior erro. Meus personagens sempre vão ter partes de mim e, se isso me trouxer uma epifania sobre a minha vida durante uma mesa, que bom. No entanto, se o objetivo é resolver questões do passado, principalmente questões mal resolvidas, o RPG não é o lugar para isso, a terapia é. Nessas horas, é inevitável lembrar do texto da Nisi e me dar conta de que eu estava, mais do que nunca, sendo meu próprio gatilho, me colocando em uma posição complicada, na qual eu teria que confrontar constantemente partes da minha vida que eu não estava pronta para enfrentar.

Apesar disso, eu tinha a noção de que eu estava sobre um terreno perigoso, então procurei o mestre antes mesmo do jogo começar para conversar com ele sobre o quão sensível eram esses temas para mim, mas que eu tinha tomado essa decisão porque eu confiava nele, confiava que a minha personagem fosse respeitada. Eu acompanhei jogos dele antes, vi pessoas importantes para mim jogando com ele, eu o via falando sempre sobre segurança de mesa, então, não havia dúvidas. Ele agradeceu a confiança que estava sendo depositada nele. Desde o início, ele deixou claro que o jogo trataria de assuntos sensíveis, tivemos sessão zero definindo nossos limites, mas eu imaginei que seguiríamos conversando sobre possíveis incômodos, afinal, consentimento não é dado, é emprestado. Pelo menos pensei que assim seria.

O jogo começou e tomou proporções gigantescas. Era uma bela produção, com um belo elenco entrosado e um público fiel assistindo. Toda semana, o jogo era um evento, eu estava engajada na história e no sistema e tudo era uma grande alegria, até começar a não ser mais. Quanto mais o tempo passava, mais angustiada eu ficava. Eu senti minha personagem crescendo na narrativa e, ao mesmo tempo, se estrangulando nela. Não vejo problema em uma personagem se dar mal, faz parte da história, mas ia além disso. Quando eu olhava para o futuro da personagem, eu não conseguia enxergar um final que não fosse autodestruição, mesmo eu me esforçando em todas as sessões para que ela tivesse outras possibilidades. Durante todo o tempo, eu continuei me comunicando com o mestre, levantando para ele as minhas preocupações, pedindo para que ela tivesse uma chance de trégua. Mas não chegava, pelo contrário, a situação só piorava. Um jogo que era uma grande alegria se tornou um grande peso, toda sessão, e eu me sentia 100% responsável por isso. Eu criei uma personagem problemática, eu que trouxe a atenção para mim com as minhas interpretações nas streams, eu que não via saída. Eu me sentia o grande problema dentro de um grande problema criado por mim. Não parece um lugar mental saudável de se estar, né?

Para a minha sorte, eu tenho uma rede de apoio incrível que estava sempre ao meu lado e que me fez perceber, mesmo que pouco, que isso não era um problema meu. Se eu não estava confortável, se eu não estava me divertindo, isso era um problema da mesa, e os outros participantes estavam ali para me ajudar. Eu dividia as angústias com o narrador, principalmente, mas toda conversa com ele me deixava com a sensação de que eu estava saindo dela pior do que antes. Eu não conseguia, de fato, falar dos meus incômodos livremente. Eu sentia que precisava suavizar tudo o que falava. Eu não me sentia acolhida ou ouvida.

Eu continuei pedindo ajuda. Pedi que outras pessoas que tivessem contato com ele conversassem sobre o assunto, que outros jogadores levantassem outros incômodos, se inserissem mais na história, tirassem o foco da minha personagem. Nada adiantava. Até que chegou o dia da nossa última sessão do ano, antes do recesso. O jogo continuaria no ano seguinte, mas nenhum de nós sabia que aquela seria, no final das contas, a última sessão da mesa. Nesse fatídico dia, um dos PNJs do círculo da minha personagem deu o golpe final na minha saúde mental.

O jogo tem um sistema de relacionamentos que te permite quantificar o quanto uma pessoa gosta de você ou não e, no início, criamos alguns PNJs com relações pré-estabelecidas. Eu o criei como um obstáculo para a minha personagem, como uma lembrança de uma atitude horrível que cometera, que ela não tinha como consertar, e o resultado disso foi adquirir um inimigo, uma relação com o maior nível de ódio que o jogo permite estabelecer. Os dois eram amigos de infância, e ela o abandonou para escapar de uma vida de bullying e se tornar, ela mesma, a opressora. Acho necessário destacar também que, por mais que o jogo fosse sobre os protagonistas, a ideia da história era que nenhum personagem era um herói. Eles faziam coisas ruins e questionáveis, o tempo todo, não só os PNJs, e suas ações tinham consequências. Inclusive, um dos meus objetivos para a minha personagem era reparar os seus erros e melhorar como pessoa. De qualquer forma, no tempo da narrativa, esse PNJ assumiu o papel de difamá-la constantemente, e ele tinha poder para isso, afinal, era o presidente do clube de jornalismo e o responsável pelo jornal da escola, além de persegui-la obsessivamente, até mesmo furtando itens pessoais dela para a sua coleção. Ele foi criado para ser problemático. Com o tempo, ele continuou babaca, mas minha personagem se reaproximou para ter mais acesso às pistas da investigação, fingindo um interesse romântico. Como eu disse, protagonistas questionáveis. Entretanto, ao longo das sessões, uma imagem que eu não queria enxergar começou a se construir na minha frente. De vez em quando, ele demonstrava sinais de decência, mas soavam forçados, principalmente intercalados com as babaquices. Quanto mais eles apareciam, mais soavam forçados, ainda mais pareciam uma fachada, sinais de um comportamento tipicamente abusivo, de quem tenta manter uma imagem de bom moço, mesmo que não seja. Eu fazia questão de deixar claro que era um problema, assim como outros jogadores da mesa também faziam. Você deve estar se perguntando se isso não seria um sinal de que o personagem estava, assim como a minha, tentando se redimir de seu passado. O mestre me questionou isso, inclusive. No entanto, não fazia sentido. Em nenhum momento da narrativa ele foi confrontado pelas suas atitudes. Tudo o que ele fez de ruim gerou resultados POSITIVOS para ele, diferentemente do que estava acontecendo com a minha. De onde, então, viria essa redenção? E, indo mais além nessa reflexão, por que aquele personagem precisava de redenção? Por que um típico homem cis branco, numa história em que ele não possuía nenhum protagonismo, precisava de uma redenção? Por que a minha personagem deveria fazer parte dessa redenção? Por que, mesmo comigo, como jogadora, insistindo que não o veria para além de um babaca, a redenção dele continuava sendo tão importante? Tenho as minhas teorias, mas não me cabe expô-las aqui. O que importa é que naquela sessão, ele veio pedir desculpas por tudo o que fez ao longo da relação dos dois, finalizando com um presente raro, caro, com uma grande carga afetiva para a minha personagem. Mesmo tendo conquistado tudo o que queria na mão, ele estava diante dela, pedindo desculpas. Para nós, mulheres, acostumadas com situações de abuso, isso era um sinal claro: uma estratégia de manipulação para manter uma mulher em uma relação de poder que a desfavorece, que a coloca em perigo. Por mais que se tratasse de uma obra de ficção, não havia qualquer verossimilhança em um homem cis branco pedindo desculpas sem que fosse cobrado por isso. A personagem era adolescente, mas a jogadora não. Por mais que eu acreditasse que ela, com a sua idade, nunca se daria conta disso, eu, como jogadora, não podia deixar isso passar. Era um jogo com audiência, acompanhado por gente de todas as idades, a mensagem de que isso não é aceitável deveria ficar mais do que clara. Uma das habilidades da minha ficha era um detector de mentiras. Sempre que eu a utilizava, ela me dizia se um personagem estava sendo verdadeiro ou não. Eu perguntei ao mestre, usando essa habilidade, se ele estava mentindo. O mestre disse que não, que ele estava sendo sincero.

Nesse momento, meu corpo inteiro ficou dormente. Eu precisei pedir uma pausa, ficar sozinha. Eu precisei parar e perguntar a pessoas que estavam assistindo se eu estava vendo coisas, se eu estava criando problemas onde não tinha. Não existia uma possibilidade lógica para que o personagem estivesse mudando completamente suas motivações e, de repente, ser redimido por tudo o que ele fez com um presente caro e um pedido de desculpas. Sincero? Depois de anos de abuso? Eu não conseguia continuar, eu me senti violada, como se um pedaço da minha consciência estivesse sendo retirada de mim, como se a minha noção de certo e errado não fosse mais capaz de julgar as situações nas quais eu me metia. A sessão seguiu, mas eu não tinha cabeça para pensar em outra coisa. Os jogadores demonstraram apoio a mim, mas o mestre parecia confuso. Depois disso, de novo, eu tentei conversar com ele, explicar qual era o problema. Não só eu, outras pessoas tentaram. Não funcionou.

No final das contas, eu tive ajuda. Minha rede de apoio, novamente, me mostrou que eu não estava imaginando coisas, então isso me deu forças para agir. Escrevi um textão dividindo minhas angústias e enviei para o grupo. Nele, eu falava como aquilo me atingia, porque atingia, o que significava para mim. Pedi para que tivesse espaço para, antes da próxima sessão, fazer um bate papo ao vivo, para mostrar ao público que, por mais que isso tivesse acontecido na narrativa, esse comportamento não era aceitável em nenhum lugar. Apontar para outras jogadoras e outras mulheres que aquilo que aconteceu não era certo. Era nossa responsabilidade como uma stream de RPG popular, era a minha oportunidade de falar sobre a experiência a partir do meu ponto de vista. Apesar de todas as angústias que a mesa me trazia, eu ainda assim gostava muito dela, acreditava muito nela. Eu deixei claro no texto que eu precisava desse espaço, como mulher e educadora. Novamente, os jogadores me apoiaram e também a minha ideia, concordaram sem nem pensar duas vezes. Novamente, o mestre não entendeu. Novamente, tentamos explicar. Novamente, nada.

A mesa entrou em um hiatus ainda maior que o planejado. Ela passou a trazer mal estar para o mestre. Quanto mais eu esperava pela minha oportunidade de ser ouvida, menos ela se aproximava. Combinamos da mesa ser adiada por mais tempo, de termos uma conversa sobre o futuro dela no próximo mês. Ele chegou e não havia papo. Eu cobrei a conversa, não funcionou. Cobrei mais uma vez. Pedi para que outros jogadores fizessem isso, já que isso também interessava a eles e eu estava cansada de ser a chata que queria resolver. Em algum momento, a conversa foi marcada e a emenda saiu pior do que o soneto.

Na decisão sobre continuar a mesa, dois jogadores disseram que sim, outros dois disseram que não. Eu estava do lado de continuar. Como disse anteriormente, eu gostava da mesa, ao mesmo tempo que não enxergava o tamanho do problema que se passava justamente comigo. Por fim, não dá para continuar uma mesa com metade dos jogadores, então eu perguntei se poderíamos ter uma sessão para finalizar a mesa. Conversar sobre ela, dar um fim aos personagens, ouvir o público. Já que era tão popular, tão querida, eu achava que ela merecia uma despedida, achava também que era uma boa oportunidade de falar do que havia acontecido antes. Todos os jogadores, mais uma vez, concordaram. O mestre não. Dessa vez, o meu ódio finalmente cresceu.

Isso porque eu já estava cansada. Eu tentei resolver pacificamente muitas vezes, dei diversas chances, mas nada mudava o fato de que eu tinha sofrido abuso ao vivo e não teria uma chance sequer de retratação. A minha confiança, que eu depositei sem hesitar, foi testada muitas vezes, e deveria ter se quebrado muito antes, mas eu acreditei até o fim. Acreditei até o final de que eu receberia um mísero pedido de desculpas, uma chance de conversar com o público. Não tive nada, a não ser dos jogadores.

A continuação da história foi revelada e, por fim, fiquei feliz de não termos continuado. Por mais que o mestre falasse muito de segurança de mesa e dissesse que alguns assuntos nunca seriam abordados em uma mesa com ele, lá estavam assuntos como esse. Eu fico me questionando em que momento ele perceberia que havia abuso sexual na história que escrevera, havia até instruções de como conseguir fazer o mesmo. Até hoje ele não percebeu. Até hoje eu sou o problema, até quando fiz de tudo para não ser.

Hoje eu posso finalmente contar a minha parte da história, depois de um ano desde o fim dessa mesa. Eu cansei de me calar e espero que outras mulheres não se calem. A lição que fica, para mim, são muitas: não confie cegamente em quem você não conhece com profundidade, principalmente homens cis; tenha uma rede de apoio, pessoas nas quais você acredita de olhos fechados, pessoas que saibam se impor, que te mostrem quando você está errada e quando não está; se una com outras mulheres, afinal, unidas somos mais fortes; não tenha medo de um nome do RPG, enquanto ninguém falar nada, ele vai continuar sendo um nome do RPG; entre outras.

Porém, a mais importante eu quero deixar aqui, para finalizar o meu texto. Falar sobre segurança de mesa e fazer uma mesa segura são duas noções que estão muito distantes. Não se deixem levar pelo discurso e não se valham dele para fazerem o que quiserem. Segurança de verdade é ouvir seus jogadores, é saber admitir quando erra, é olhar para além do próprio umbigo e ter a humildade de se perceber como humano, perfeitamente capaz de errar. Senão, você corre o risco de perder a confiança das pessoas à sua volta. Senão, corre o risco de ter aquele problema que você varreu para debaixo do tapete ficar exposto, para todos verem, como uma grande atração.

Se você chegou até aqui, obrigada, de verdade. Os textos de referência para este estão nos links

RPG INDAGAÇÕES

TEXTO DA NISI

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Flávia Ramalho
Biblioteca das Ancestrais

Professora, escritora, jogadora. O resto são cores e flores.