O que aprendemos no maior evento de bicicleta do Brasil

Hannah Kny
bike de boa
Published in
10 min readNov 26, 2017

No último mês de setembro rolou o “Bicicultura 2017, A revolução das bicicletas” em Recife. O Bicicultura é o maior evento de cicloativismo do Brasil e ocorre todo o ano, cada vez numa cidade diferente.

As discussões desse evento quase não tocaram no “objeto” bicicleta, por incrível que pareça, e se focaram no seu papel de mudança em todo o nosso modelo de sociedade e de cidade. Falar de bicicleta significa falar sobre mobilidade urbana, democratização dos espaços públicos, sustentabilidade, economia local e planejamento de cidades para pessoas. Unir forças pra tratar dessas questões num encontro nacional é muito importante e tem muito poder. E nós do bike de boa participamos pela primeira vez este ano.

Falar de bicicleta significa falar sobre mobilidade urbana, democratização dos espaços públicos, sustentabilidade, economia local e planejamento de cidades para pessoas.

É muito importante contar o que rolou para todo mundo que não esteve no evento, tanto quem curte bicicleta, quanto quem está totalmente fora disso. Fizemos relatos diários de cada dia de evento e fomos postando na nossa Página do Facebook, mas ainda assim isso atinge somente os nossos seguidores e inevitavelmente, por mais que façamos esforços pra estourá-la, se trata de uma bolha.

Sabemos que é textão, mas é bem importante! Então aqui vai o nosso resumão de como foram esses 4 dias pra gente :)

Dia 1 — Momento de Opressão

Bicicletários biodegradáveis em Recife — Foto: Equipe Bike de Boa

A dinâmica do evento se dividia em uma ‘Aula Magna’ por dia, que tratava de questões mais amplas e depois várias pequenas rodas de conversa com assuntos diversos. No primeiro dia a Aula Magna tratou de questões mais gerais sobre os lugares da sociedade onde o movimento pela bicicleta se insere. Foi apresentada por Carmen Tornquist e Leo Liberat. Eles colocaram na mesa questões muito importantes sobre o panorama político econômico brasileiro, os movimentos sociais e a relação do movimento da bicicleta nesse contexto.

  • O que esse movimento significa nos vários âmbitos políticos?
  • O que a bicicleta significa nas questões de direito à cidade e de economia?
  • O cicloativismo é um movimento de classe média para classe média?
  • É possível um simples objeto como esse estimular uma verdadeira revolução?
  • Como fugir das referências eurocêntricas, dado que vivemos uma realidade muito diferente de países como Dinamarca e Holanda?
  • O equipamento bicicleta pode por si só ser disparador de revoluções?

Depois da abertura começaram oficialmente as atividades e a tarde estava cheia de debates interessantes para participar. Escolhemos participar de uma roda de conversa sobre A Bicicleta e sua relação com grandes e pequenos centros urbanos. Nessa conversa tinha gente de todos cantos do Brasil: Ceará, São Paulo, Espírito Santo, etc. Algumas pessoas apresentaram projetos sobre ciclo ativismo mais voltados aos problemas das grandes cidades, enquanto outros trouxeram questões sobre as pequenas.

As discussões foram muito ricas e se focaram em tentar entender as diferenças de urbanização, dinâmicas do espaço público, mobilidade urbana, participação da população e principalmente de planejamento urbano de todas as escalas de cidade.

  • Como prever o crescimento de uma cidade pequena?
  • Como fazer planos de mobilidade em espaços que muitas vezes não possuem uma estrutura viária definida, ou que possuem uma dinâmica urbana muito mais baseada nas relações de vizinhança?
  • Como evitar o uso de modelos de cidade grande em cidades menores? Quais referências são possíveis de serem utilizadas?
  • Como garantir a continuidade do uso da bicicleta nas cidades pequenas em crescimento uma vez que no Brasil elas possuem uma taxa percentual muito maior de uso se comparado às grandes cidades?
  • Como garantir uma mobilidade saudável e equilibrada desde o início do seu crescimento?
  • Se grande parte da população brasileira mora em pequenas cidades, por que só se fala de planejamento urbano e mobilidade urbana para cidades grandes?

Entramos em contato com gente muito legal que está se movimentando nesse Brasil a fora, tanto nos interiores quanto nos centros urbanos. Isso de certa forma nos faz repensar de que maneira podemos ter um olhar mais abrangente e que considera outras realidades de cidade.

Dia 2 — Momento de Organização

As bicicletas invadiram Recife Antiga ❤ Foto: Equipe Bike de Boa

O segundo dia foi de reflexão sobre a luta pela bicicleta em relação aos outros movimentos sociais da cidade. A Aula Magna de hoje entrou a fundo nas questões de organização interna do movimento. É um assunto muito complexo que foi apresentado por gente com muita vivência e conhecimento na questão: Rud Rafael e Sylvia Siqueira.

Esse debate não tratou só das estratégias de organização e obstáculos internos do próprio movimento, mas também sobre como essa luta da bike se relaciona com outros movimentos sociais. Afinal a mobilidade urbana sustentável, o transporte público, as questões ambientais e de gênero, também têm como finalidade uma cidade mais humana e mais justa. Além disso, o movimento da bicicleta precisa se conectar entre classes. Principalmente porque o uso da bicicleta nas classes baixas é enorme, mas a maioria da infraestrutura cicloviária, quando existe, fica nas áreas centrais e de classe alta.

  • O que falta para criar essa conexão entre classes e criar essa identidade coletiva, que é o primeiro passo para a organização do movimento?
  • Por que apenas se organizar internamente se pode ser muito mais efetivo se organizar articulando com outros grupos?

O uso da bicicleta nas classes baixas é enorme, mas a maioria da infraestrutura cicloviária, quando existe, fica nas áreas centrais e de classe alta.

Durante a tarde, escolhemos uma roda de conversa sobre Outros Olhares em que pessoas de todo o Brasil apresentaram projetos que se relacionam com comunidades vulneráveis e de periferia. Eles mostraram outras visões sobre a bicicleta nesses contextos, e abriram-se discussões muito interessantes sobre autonomia, emancipação e direito à cidade.

  • Como pesquisas de perfil de ciclista se aplicam em regiões diferentes de uma mesma cidade?
  • Como fazer para enxergar a maior amplitude possível de realidades dos ciclistas das nossas cidades?

Essas questões nos intrigaram no sentido de pensar em como transformar a bicicleta numa real ferramenta de aproximação das realidades, já que a simplicidade do objeto bicicleta traz consigo esse potencial.

“Macho, eu não pedalo pra fazer exercício, eu passei o dia todo levantando saco de cimento. Eu pedalo pra relaxar!” — Um trabalhador brasileiro anônimo

Dia 3 — Momento de Rebelião

Discussão Maravilhosa sobre Empoderamento das Mina :) Foto: Catarina Silver

O terceiro dia foi diferente. Foi o dia da nossa apresentação como projeto e, portanto, estávamos especialmente empolgados.

Começamos o dia participando de um painel sobre Índice de Desenvolvimento Cicloviário e mapeamento fotográfico de ciclovias/ciclofaixas. Nele assistimos a apresentação de um projeto que criou diversas métricas para avaliar e dar uma nota final a uma malha cicloviária inteira.

Alguns dados interessantes sobre essa atividade foram os critérios levados em consideração para poder analisar a malha. São eles: velocidade do carro na via ao lado, bidirecionalidade, sombreamento, manutenção, traçado da via, pavimentação, sinalização e obstáculos permanentes e temporários. Além disso foram apresentadas algumas plataformas de mapeamento fotográfico colaborativo que podem ajudar a comunidade a manter a malha atualizada e facilitar essas métricas. Mas a questão do mapeamento vai além das métricas e passa por outras questões mais complexas que foram muito discutidas no painel.

  • Será que devemos abrir questões mais subjetivas sobre o traçado viário? Por exemplo, a conectividade da malha cicloviária ou a sua relação com a infraestrutura do pedestre?
  • Como criar uma métrica completa dessa malha e ao mesmo tempo criar um método que consiga ser aplicado em cidades de várias escalas e realidades?
  • Como depois de toda essa complexidade conseguir criar um método relativamente fácil de aplicar por voluntários e diferentes organizações?

Depois veio a terceira Aula Magna. Ela foi dada por Peter Cox e Áurea Carolina. O assunto central desta vez foi a importância da bicicleta nos movimento sociais e como ela não pode criar revolução sozinha, mas sim conectando-se a outros movimentos.

  • Quais são as maneiras de tornar essa diversidade entre movimentos uma riqueza e não um problema?

Os movimentos sociais não são coisas, mas sim o que dizem delas, como a sociedade os vê. Baseado nisso Peter Cox trouxe um método de análise dos movimentos e de suas frentes, que serve para que cada grupo consiga pensar no seu papel e nas suas prioridades, para que os movimentos possam coexistir e se completar.

“No que você vai focar depende da situação em que a tua organização se coloca e com quem ela se relaciona. Pra se relacionar com crianças ou políticos temos que ter formatos diferentes. E os dois formatos são importantes.”

Depois, a partir da fala da Áurea Carolina, criou-se um debate interessante sobre como podemos entrar na estrutura política tradicional com o nosso movimento. A bicicleta coloca em pauta outras formas de ver o espaço público e a economia e isso se relaciona com outras lutas como o feminismo e a luta de classe. Ocupar as instituições é necessário, mas sem esquecer as nossas práticas autônomas.

“A revolução da bicicleta não será feita em um giro, devem ser feitas constantes revoluções” — Peter Cox

Durante a tarde participamos como apresentadores da roda de conversa sobre Produção e Análise de Dados. Nessa roda, alguns projetos eram mais focados em coletar dados sobre o próprio ciclista e outros mais focados na infraestrutura e questões urbanas.

  • Quais são as plataformas de mapeamento colaborativo e aberto que podem ser usadas para unificar as varias iniciativas pelo Brasil?
  • Como essas informações podem estar aliadas ao planejamento cicloviário de uma cidade, uma vez que elas podem trazer as visões reais da população que usa esses espaços e suas opiniões?
  • Como estender essas análises além dos centros das cidades e para os subúrbios?
  • Como analisar as qualidades do espaço público a partir destes mapeamentos?
  • Como podemos tensionar o poder público e os estabelecimentos a partir dessas análises?

Foi nesta roda que fizemos uma apresentação e demonstração do bike de boa. Ficamos lisonjeados com o espaço que nos foi dado e a recepção mais do que calorosa de gente de todo Brasil que adorou a ideia. Desde pessoas de cidades onde ainda não há mapeamento até as que já são contempladas por outras iniciativas mas que admiraram nosso trabalho em tornar essas informações mais acessíveis e fáceis de usar.

Mas não termina por aí, ainda tinha muita roda de conversa rolando até o fim do dia e dividimos nossa equipe para participar de duas delas ao mesmo tempo. A primeira, a roda de conversa sobre Trabalhos Acadêmicos , tratou de vários assuntos, entre eles a relação das mulheres e os hábitos de pedalar; a criação de uma pontuação de ciclabilidade das cidades para criar comparativos; e a história do movimento ciclo ativista, porque ele começou e no que ele se transformou.

Na segunda, sobre Empoderamento Feminino na Bicicleta, conhecemos vários grupos do Brasil inteiro que focam na questão da mulher ciclista e cada movimento atingiu esse assunto à sua maneira. Temos movimentos mais focados na mulher negra e o acesso à cidade; grupos de ciclistas esportivas; grupos de ciclistas urbanas, etc. Todos esses projetos têm como fim a busca pelo espaço da mulher na cidade e o protesto contra o machismo em todos os locais da sociedade, tendo as ruas como principal cenário simbólico. Essas mulheres buscam serem vistas e ouvidas ao se movimentarem autonomamente pela da cidade. Mas a discussão vai além, ao colocar na mesa questões importantíssimas sobre a integração das mulheres mães, de periferia e transsexuais nos movimentos ciclísticos de mulheres.

“Quando uma mulher avança, nenhum homem recua. E as mulheres são as primeiras que avançam nos movimentos sociais. Sempre são as primeiras que pegam no facão.”

Quarto dia

Esse dia foi loco: teve corrida cargueiras — Foto: Roderick Jordao

Depois de 3 dias de discussão intensa, muita reflexão crítica e muitas ideias fervilhando na nossa cabeça, o último dia de bicicultura foi no parque, pra curtir a cidade e esse encontro entre tanta gente legal! Foi um dia de discussões importantes, mas também de atividades recreativas.

A bicicleta coloca em pauta outras formas de ver o espaço público e a economia e isso se relaciona com outras lutas como o feminismo e a luta de classe. Por isso a gente já imaginava que ia ser um baita evento, mas também porque foi a junção das maiores organizações de cicloativismo do Brasil e disso só poderia sair coisa boa. Sentimos que havia uma boa diversidade de visões sobre o tema e esperamos que tenha cada vez mais, de modo a ir mais longe e atingir as parcelas da sociedade que ainda estão à margem dessa discussão.

A bicicleta coloca em pauta outras formas de ver o espaço público e a economia e isso se relaciona com outras lutas como o feminismo e a luta de classe.

Os dois próximos Biciculturas já estão confirmados: a edição de 2018 será no Rio de Janeiro e a de 2019 será em Maringá, no Paraná. A gente espera muito que até lá o movimento evolua a partir dessa rede que se fortaleceu em Recife e, finalmente, que vocês tenham curtido acompanhar a nossa aventura em Recife. Ter tido a oportunidade de estar no Bicicultura foi incrível para a nossa equipe e com certeza mudou a nossa maneira de enxergar o que fazemos e o que mais podemos fazer pela cultura da bicicleta no Brasil.

Nós somos um grupo de ciclistas do Rio Grande do Sul que sempre tivemos problemas pra encontrar onde prender a bike. Por isso criamos o bike de boa, um mapa colaborativo de lugares para estacionar a bicicleta, onde você pode aprender sobre os bicicletários da sua cidade e deixar avaliações pra ajudar outros ciclistas. Curtiu? Acessa www.bikedeboa.com.br

--

--

Hannah Kny
bike de boa

Arquiteta, Urbanista e Paisagista. Criada na floresta, formada na cidade e recém chegada na maior floresta urbana do mundo. @RiodeJaneiro