A transformação digital também é cultural — e na saúde não é diferente

Mais do que orçamento ou domínio das tecnologias, a cultura é um fator determinante na digitalização de empresas e negócios, independente do setor

Raquel L. Duque
bionexo
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6 min readAug 7, 2017

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Pesquisa da consultoria McKinsey (leia aqui) feita com executivos em todo o mundo aponta fatores culturais e comportamentais das empresas como as maiores barreiras rumo à transformação digital. Em seguida, surgem a falta de conhecimento de aplicações e tendências digitais e falta de infraestrutura ou talentos de TI. Entre os fatores culturais que podem prejudicar a evolução digital de instituições, destacam-se aversão a risco, distanciamento do cliente e mentalidade de departamento. Conhecer suas implicações, por outro lado, pode ajudar gestores que buscam evoluir suas culturas rumo à transformação digital no desenvolvimento de estratégias.

De fato, a cultura tem sido um importante fator de entrave em empresas que buscam evoluir seus processos ou serviços para serem mais digitais; na área de saúde este fator se soma a uma natureza intrínseca, de assumir poucas mudanças e riscos, pois em última instância, arriscam-se vidas. Assim, muitas instituições de saúde ainda rodam em papel e caneta, mas cada vez mais vulneráveis a disrupções tecnológicas e demandas crescentes dos clientes, fenômenos que não têm poupado nenhum setor da economia.

Por outro lado, é preciso reconhecer que fazer este movimento não é simples, muito menos num mercado complexo em stakeholders como o da saúde. São tantas as possibilidades abertas pelas tecnologias digitais que uma instituição/empresa pode não saber qual abordagem ou inovação trará mais valor para seu cliente, o que pode diluir esforços, investimentos e até prejudicar a performance econômica da empresa.

Uma coisa é certa: a penetração das tecnologias digitais nos mercados com certeza é mais rápida do que as mudanças “naturais” de cultura organizacional necessárias para trazê-las dentro de casa. Isso quer dizer que os esforços da empresa para incorporar a digitalização precisam considerar o componente humano e cultural com o mesmo empenho dedicado a mudanças operacionais.

Para instituições de assistência em saúde, nas quais o colaborador é parte fundamental da criação de valor do serviço, envolver este profissional desde a avaliação até a implementação de novas tecnologias é ainda mais importante para seu sucesso. A seguir, algumas considerações sobre o fatores culturais a serem atacados.

AVERSÃO A RISCOS

Na prática, riscos e fracassos são um tema delicado tanto para pessoas quanto para as empresas, pois a percepção dos mesmos é distinta no tempo: enquanto os riscos são avaliados prospectivamente, os fracassos só ganham dimensão de aprendizado quando vistos retrospectivamente, o que exige grande esforço na criação de um ambiente ou mentalidade que tolere “antecipadamente” eventuais fracassos.

Como já mencionado, se assumir riscos em instituições de saúde ganha uma outra perspectiva, os processos não assistenciais ou que não afetam diretamente o paciente acabam sendo bons candidatos para primeiras tentativas de inovação e tomada de risco. Para tanto, também é necessário fortalecer as parcerias nesta cadeia altamente interdependente de hospitais, operadoras e fornecedores de serviços e produtos, para que as inovações sejam bem recebidas e, quem sabe, inspirem os demais no mesmo sentido.

Vale notar que a mudança de cultura em direção à tomada calculada de riscos envolve necessariamente um movimento top down (de cima para baixo) de liderança pelo exemplo, no qual gestores de níveis mais altos possam dedicar, com o aval do C-level, uma parte do seu trabalho a inovar, e não apenas otimizar. Some-se a isso a contratação de talentos nativos digitais ou oriundos de startups, de forma a oxigenar equipes específicas sem perder a expertise em saúde dos demais profissionais.

DISTANCIAMENTO DO CLIENTE

Colaboradores da linha de frente das empresas conhecem bem seus clientes, mas nem sempre estão a par de conhecimentos consolidados que orientam macroestratégias do negócio. De certa forma, conhecem um e outro cliente, mas nem sempre enxergam o todo. Empoderá-los com tais dados pode trazer bons resultados, pois ganham uma visão mais estratégica de cada situação e seu significado geral; podem assim solucionar problemas, tomar decisões mais rápidas, impactar positivamente a experiência do cliente e ter mais insights de melhoria do serviço.

Vale notar que o sucesso desse movimento depende da confiança dos gestores na capacidade de seus colaboradores em avaliar e decidir sem necessariamente pedir aprovação superior, o que por sua vez pede um alinhamento fino com a área de Recursos Humanos na contratação e desenvolvimento dos profissionais.

Por mais que a saúde seja um serviço distinto dos demais e o paciente não seja exatamente um consumidor no sentido geral do termo, profissionais e instituições não podem descolar-se de uma tendência inexorável de consumo: boas experiências digitais com serviços de diferentes mercados inevitavelmente aumentam as expectativas sobre todos os serviços, inclusive saúde. Com as tecnologias disponíveis, qualquer empresa pode e deve se aproximar e conhecer melhor seus consumidores.

A boa notícia é que fazer isso diminui os riscos da experimentação, pois o consumidor é que guiará melhorias e novos produtos por meio da co-criação. E não é necessário começar em grande escala: um momento de interação com a instituição, como uma consulta médica, envio de documentos ou contato telefônico pode facilitar o convite, que se feito com cuidado, pode inclusive ajudar no relacionamento com a instituição, com o cliente sentindo-se escolhido e valorizado em sua opinião.

Não custa lembrar que mesmo instituições pouco digitalizadas já contam com um mínimo de informações sobre seus clientes (dados pessoais, agendamentos, pagamentos, etc.) e podem reforçar seu conhecimento com a organização e extração destes dados para o embasamento de decisões específicas de melhoria de experiência e produto.

MENTALIDADE DE DEPARTAMENTO

Mais do que uma questão estrutural, o pensamento compartimentado das equipes é um entrave significativo para a transformação digital, visto que a multidisciplinaridade é grande aliada de soluções inovadoras e decisões menos arriscadas.

Como inspiração, vale lembrar que na assistência direta ao paciente, trabalhar em equipes multidisciplinares não é novidade e traz benefícios claros para todos os envolvidos. Entender os pontos fracos ou objetivos da empresa como pacientes que necessitam de múltiplas atividades coordenadas — que só podem ser feitas por uma equipe e não por uma pessoa só — é uma analogia inusitada, mas na qual na qual ambas atividades visam o mesmo resultado: valor.

A departamentalização, associada à falta de informação, tem dois sintomas principais. Um deles é o estreitamento da percepção; os colaboradores têm dificuldade de ver “the bigger picture” (o contexto no qual a empresa atua) tanto do mercado quando do cliente e consequentemente, ficam limitados na identificação de ameaças e oportunidades — e até mesmo no entendimento e engajamento com prioridades não oriundas do seu departamento.

Para combater esse fenômeno, é essencial investir tempo e recursos em fluxos de comunicação consistentes e bidirecionais, para o compartilhamento de conhecimento sobre os clientes e mercado entre todos os níveis e times da empresa. Novamente, a área de Recursos Humanos pode contribuir com a facilitação de carreiras rotativas ou não lineares (que não se restringem a um setor), nas quais os gestores podem ter mais facilidade em enxergar além dos “silos de trabalho”.

O segundo sintoma é a pouca responsabilização colaborativa entre departamentos — em outras palavras, o conhecido “não é meu trabalho”. Se o objetivo da empresa é forte o suficiente em todos os departamentos e os gestores agem como exemplos, profissionais de áreas distintas podem sentir-se à vontade para trocar informações em busca de colaboração, pois todos compartilham do mesmo propósito de solução.

Isto parece ser mais comum em empresas de TI, que criam times multifuncionais para projetos específicos e delimitados no tempo. Aqui vale novamente a analogia com a equipe multidisciplinar que atende pacientes: enquanto o mesmo não for atendido ou pelo menos encaminhado em todas as necessidades que a instituição de saúde abrange, o resultado saúde não é alcançado.

Concluindo, os esforços institucionais rumo à transformação digital devem considerar o papel fundamental das lideranças na reformulação de culturas, pois a digitalização bem-sucedida depende de ambientes organizacionais favoráveis; também é importante monitorar o ritmo das mudanças no mercado, entender seus impactos e buscar caminhos de evolução.

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