A "aplicativização" das pessoas

Quando foi que a gente parou de ver os prestadores de serviço como pessoas, e passou a enxergá-los como botões?

Beatriz Guarezi
Bits to Brands
5 min readJun 30, 2020

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Essa é, na minha visão, uma das mudanças mais importantes no mundo em que vivemos (esse de tecnologia, marcas e comportamento).

A nossa relação com aplicativos de entrega e a conveniência às custas da precarização do trabalho de muita gente exige no mínimo uma reflexão.

Muito se fala sobre a ‘aplicativização’ dos serviços e como ela revolucionou a forma com que nós vamos aos lugares e pedimos delivery, e como isso consequentemente mudou nossos hábitos alimentares e a frequencia com que saímos de casa… Mas não há discussão suficiente sobre a ‘aplicativização’ das pessoas.

Não faz muito tempo que o entregador do seu restaurante favorito era sempre o mesmo, e se duvidar quando você ligava para o restaurante eles te conheciam pelo nome, sabiam o seu pedido e você podia pagar fiado. Ou que o meio de transporte era o taxista do ponto mais próximo da sua casa, para onde você ligava e eles não precisavam de GPS para te encontrar.

As nossas relações com prestadores de serviço estão mudando muito, muito rápido. E questiono se para melhor.

A gente nunca teve tantas pessoas diferentes nos prestando serviços e nunca soube tão pouco (ou sequer se importou em saber) sobre elas.

Porque agora, entre nós e esses prestadores de serviço, tem uma tela. Um produto. Uma UX. Uma marca.

Quem está vindo te buscar é “o Uber”, quem está trazendo a sua janta é “o iFood”, quem faz suas compras é “o Rappi”. E para quem gostaria de pedir silêncio em um botão, o que é um bom dia, um boa noite, ou um muito obrigado?

Aí eu penso no carteiro Floyd [entenda no link] e a sua intimidade com aquela vizinhança. Não estamos nada longe do dia em que não haverão Floyds, mas drones. Ou self-driving vans. Ou lockers onde cada um pega a sua própria correspondência. Conveniente? Super. Mas será que é um substituto válido para a familiaridade com outra pessoa?

O papel das marcas

E quanto às marcas e produtos que se inserem nessa relação, será que as empresas em geral têm a preocupação de evitar a desumanização dessas pessoas — tanto nas relações de trabalho, quanto na interface com o consumidor?

Se por um lado uma das maiores marcas desse segmento passa a ter um olhar atento e empático aos entregadores, por outro, houveram discussões infinitas no Twitter sobre o tal botão "silenciar" da Uber — e se ele é ofensivo ao motorista ou ‘business as usual’ e direito da pessoa cansada que chama um carro para voltar para casa.

Me pergunto se é a categoria do serviço em si, ou se o próprio aplicativo estimula esse tipo de dinâmica impessoal, e a envelopa como mais uma conveniência. Por exemplo, você “silenciaria” uma diarista com um botão? Uma manicure? Um eletricista? Um garçom no bar? Por que é ok silenciar um motorista de aplicativo?

A conta da conveniência que não fecha

Tambem no Twitter, vi gente comentando que se os novos benefícios que o iFood está oferecendo encarecerem o serviço, vão migrar para a concorrência.

Minha conclusão é que fomos muito, mas muito mal acostumados com o excesso de conveniência e os preços irrealistas desse tipo de serviço. Ao mínimo sinal de incômodo, silenciamos. Ao mínimo sinal de investimento nos entregadores, reclamamos.

Nesse cenário, acredito que as marcas envolvidas tem muito a ganhar tomando a frente dessa discussão e tratando seus prestadores de serviço como as pessoas que são — cada qual com suas necessidades, sua história e sua luta diária. Mesmo que o posicionamento incomode alguns. Mesmo que cobrar um preço justo afaste outros.

Porque se depender só dos consumidores, essas pessoas só tendem a se tornar mais invisíveis, conforme o nosso padrão de “on demand” vai ficando cada vez mais exigente.

Desse jeito, essa conta não vai fechar tão cedo — pelo menos não para os entregadores ou motoristas.

E não sei quanto a vocês, mas eu prefiro viver num mundo que trate as pessoas mais como “Floyds”, do que como botões de liga/desliga.

O pós-pandemia

Uma previsão que especialistas se arriscam fazer nesse momento em que não há muito como prever nada, é que o coronavírus é um grande acelerador de movimentos que já vinham acontecendo.

Ele forçou a digitalização das empresas e dos processos. Potencializou o efeito confortante das chamadas de vídeo com pessoas queridas. Fez com que todo mundo parasse para questionar seu estilo de vida e consumo, talvez de forma irreversível.

Mas encarando a realidade, boa parte dos efeitos não serão positivos. Especialmente para boa parte da população, vulnerável a essa instabilidade na saúde e na economia.

Refleti essa semana novamente sobre uma parcela específica: a dos entregadores, motoristas e prestadores de serviço via aplicativo em geral.

E se há um ano isso era uma verdade, a pandemia do coronavírus tem escancarado a frieza dessas relações nos últimos tempos.

Porque enquanto muita gente coloca a sua vida, da sua família e da sua comunidade em risco para manter restaurantes operando e as nossas casas abastecidas, para muitos, segue sendo não mais do que “pede ali um iFood”.

Por outro lado, vem surgindo movimentações interessantes nas redes sociais, incentivando as pessoas a pagarem um lanche para o entregador, como exercício de solidariedade nesse momento.

Mas passada a tempestade, e nessa lógica de que estamos acelerando o que vinha tomando forma na sociedade, o que nos espera no depois?

Será que estaremos de fato mais humanos, e mais conscientes de que a nossa saúde e bem estar depende tanto de nós quanto dos outros? Ou será que nos tornaremos definitivamente alheios à presença e história das pessoas por trás dos nossos pedidos e trajetos, pedindo entregas “sem contato” ao toque de um botão?

Para além da inevitável questão econômica, acredito que temos aqui também uma questão comportamental. Se tudo parece absolutamente incontrolável, nesta nós podemos escolher de que lado queremos estar.

E algo me diz que essas escolhas também são contagiosas.

Esse artigo é resultado da soma de três edições da newsletter Bits to Brands, que vem tratando dessa temática desde maio de 2019.

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Beatriz Guarezi
Bits to Brands

estrategista de marcas, curadora de conteúdo e escritora de e-mails. criadora da newsletter Bits to Brands. assine em http://www.bitstobrands.com