Identidades líquidas e o mercado do autoconhecimento

Manuela Allo
Blend_Juicing Ideas
4 min readJan 24, 2017
Créditos: Douglas Coupland

A modernidade líquida, conceito defendido por Zygmunt Bauman como o retrato da nossa sociedade atual, dissolveu instituições, autoridades e costumes tradicionais e, com isso, diluiu também a noção de identidade(s), tornando-a fluida e, principalmente, autodefinida. Se antes as identidades individuais eram determinadas por fatores externos, como nacionalidade, credo, gênero, ou seja, algo com o qual nascemos, atualmente cabe a nós construí-las e, em consequência, construir também nossas comunidades, uma vez que a própria ideia de identidade nasceu da crise do pertencimento: ansiamos por nos conectar com semelhantes e evitar a todo custo a solidão e o ostracismo.

A oportunidade de criar a própria narrativa identitária, em contraponto à apenas refutar/apropriar-se de identidades impostas pelos fatores externos, assume então um papel de libertação individual dos costumes tradicionais e de autoridades inquestionáveis. Para o ensaísta francês Alain Peyrefitte citado por Bauman em sua obra Identidade, “essa liberdade nova, sem precedentes, representada pela autoidentificação, que se seguiu à decomposição do sistema de estados, foi acompanhada de uma confiança igualmente nova e sem precedentes, em si mesmo e nos outros, assim como nos méritos da companhia de outras pessoas, que recebeu o nome de ‘sociedade’”. Essa nova dinâmica permite a convivência social de narrativas identitárias plurais e heterogêneas, como vemos acontecer nas identidades de gênero e orientação sexual, onde a ditadura da heternormatividade vêm sendo combatida para que se faça espaço para outras orientações, como a homossexualidade, a bissexualidade ou até mesmo a assexualidade.

Ao mesmo tempo, é preciso ter coragem para fazer escolhas: a autoidentificação imputa no indivíduo a responsabilidade sobre a definição de suas identidades e, neste momento, o questionamento “Quem sou eu?” cai como um peso sobre os nossos ombros.

A dissolução das instituições sólidas também teve consequência nas nossas identidades, assim como fatores como globalização, internet e redes sociais. Como cita o sociólogo Stuart Hall, “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas”. Neste eterno choque dialético em que vivem nossas narrativas identitárias, as escolhas individuais operam o papel dos grandes juízes definidores do “eu”. E, por mais líquidas e instáveis que essas tenham o direito (e o dever) de ser, a incumbência da autodefinição e a própria relevância que a identidade possui na nossa sociedade provoca angústia e insegurança.

É neste cenário que o autoconhecimento surge como ferramenta cada vez mais valorizada na busca por tais identidades. Se a única pessoa que pode responder à pergunta “quem sou eu?” somos nós próprios, entendemos que, então, precisamos nos conhecer profundamente.

Neste sentido, os números de mercado são bastante eloquentes: a meditação, prática ancestral, tornou-se um mercado de quase $1BI em 2015, de acordo o IBISWorld. “Mindfulness” é a palavra da vez, centros de meditação espalharam-se pelo Ocidente, modernos apps com o objetivo de nos guiar por esse ensinamento milenar são lançados a toda hora. O segmento de viagens também vem se ressignificando para atender à busca pelo autoconhecimento. Viajar deixou de ser apenas um lazer para se tornar uma oportunidade para reflexão, meditação e autodescoberta. Locais que possibilitem o isolamento, retiros espirituais e contato com culturas diversas são oportunidades para testar nossas identidades através de experiências múltiplas que vão além de simplesmente descansar e conhecer novas paisagens. Não à toa, o mercado do Turismo do Bem Estar movimentou $563BI em 2015, um aumento de 14% em relação a 2013, segundo o Global Wellness Institute.

Crédito: The Village Voice Blog

Experiências imersivas como festivais cuja filosofia gira em torno do autoconhecimento e autoexpressão andam conquistando cada vez mais adeptos. O icônico festival Burning Man, evento fundado há 30 anos e que acontece anualmente no deserto de Black Rock City, em Nevada (EUA), viu o seu público aumentar de 50 mil pessoas em 2010 para 70 mil pessoas em 2015 e a segunda resposta relacionada ao quão transformador a experiência no festival havia sido foi “Eu sinto como se pudesse ser eu mesmo e explorar uma nova parte de mim”, de acordo com o censo do mesmo ano. Em paralelo, outros festivais com este mesmo objetivo também estão em crescimento, como o Envision, na Costa Rica, e o Restival, no Marrocos. O uso de substâncias alucinógenas com o intuito de se conectar com o “eu” mais profundo também está vivendo um boom: o recente documentário da artista performativa Marina Abramovic, Espaço Além, relata a sua busca pela espiritualidade e autoconexão incluindo cerimônias com ayahuasca. Experiências desse tipo em tribos amazônicas tem movimentado o turismo local, inclusive gerando críticas em relação à transformação de um ritual ancestral em um mercado lucrativo.

O processo de individualização “é caracterizado por ambivalências e contradições: amplia e limita as possibilidades de ação dos indivíduos, sendo compreendido e experimentado como fardo e como chance concomitantemente”, nos diz o sociólogo alemão Ulrich Beck.

Experiências com foco em autoconhecimento tornam-se tanto ferramentas quanto manifestações das tendências atreladas ao paradoxo da identidade autodefinida: a liberdade e a responsabilidade que assumimos neste mesmo contrato social. Beck nos alerta: vivemos o tempo em que “consolida-se a biografia da escolha, da construção, do malabarismo, da ruptura, do risco. Apesar das novas liberdades, há muito esforço e desgaste”. É com o intuito de minimizar tais desgastes e lidar com nossas próprias inseguranças que recorremos às experiências de autoconhecimento para que consigamos nos assumir como os “humanos irrestritos” que a modernidade líquida nos permite ser.

Artigo escrito para a cadeira de Sociologia e Comunicação de Tendências da Pós Graduação em Comunicação e Tendências da Universidade de Lisboa.

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