Velhas ruas, novos espaços.

Manuela Allo
Blend_Juicing Ideas
6 min readMar 2, 2016

A ressignificação dos espaços urbanos como locais de encontro e criação coletiva.

Créditos: Gray Malin

Na semana passada, recebi um amigo que nunca tinha visitado o Rio de Janeiro antes. Enquanto o ciceroneava pelas paisagens deslumbrantes da Cidade Maravilhosa e os seus charmosos cantos mais escondidos, fui me descobrindo tão turista quanto moradora. Meu olhar para a cidade, em busca de prédios monumentais ou singelas casas que merecessem ser apontados, se revelava a cada dia mais curioso e encantado com os mesmos trajetos que costumo fazer todos os dias. E a medida em que o apresentava a minha cidade, fui percebendo também o quanto o espaço público é presente nas relações que desenvolvo: ruas e praças contavam história de encontros e de celebração, cenários de muitos dos capítulos da minha vida.

A arte de ressignificar o comum e cotidiano.

Enquanto entendemos a rua apenas como uma reta (ou uma sequência de curvas) que une o ponto A — Onde estou — ao ponto B — Onde quero chegar — , o seu potencial de troca se reduz aos muitos "Com licença" e "Desculpe" que ressoam (quando ressoam!) dos diversos corpos apressados que se esbarram limitados às suas próprias individualidades.

Porém, quando a rua assume o seu papel de espaço de troca, e deixa de ser apenas o local do Ir-e-Vir para ser o do Estar, é que a construção coletiva começa. Como diria o filósofo esloveno Slavoj Žižek, "a dimensão do Universal emerge quando as duas carências — a minha e a do Outro — se sobrepõem" e é no espaço público que esse encontro acontece da forma mais genuína e honesta possível.

É na rua que se torna possível a concepção de Alteridade e, com isso, o reconhecimento do que há em nós do Outro, do que há no Outro de nós e do que nos difere e, assim mesmo, nos une.

A rua e os seus rituais.

Nesse exercício de ressignificação do espaço urbano, o Carnaval de Rua desponta como um dos mais importantes rituais da atualidade. Através da celebração do sagrado e do profano, a festa popular tem como missão quebrar paradigmas, reinventar espaços e favorecer relações. E é desde a Idade Média que o Carnaval se propõe a ser desconstrução. Como analisa o filósofo russo Mikhail Bakhtin em "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento", "ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto."

Pois é neste tempo-espaço outro que os cinco dias de folia proporcionam que a rua passa a ser espaço de criação de novos significados. O espaço público, que normalmente nos serve como local de transição, vira em si o local de convivência quando o bloco passa por ruelas esquecidas e avenidas importantes do centro financeiro da cidade, em meio a prédios imponentes, onde sua arquitetura de concreto e pedra é substituída ou, melhor, incluída em uma massa feita de carne, sangue e coração pulsante. As relações são reintrepretadas e vemos conhecidos e desconhecidos se aproximando no encontro e no afeto, que é esbanjado sem moderação. Os corpos são reapropriados por quem, de fato, tem a sua posse e a nudez é celebrada não como objeto de satisfação alheia mas como sujeito de libertação. É nesse processo de contestação e de construção de uma coletividade que entendemos a força que a purpurina e a folia tem como instrumentos políticos.

Desfile do bloco Mulheres Rodadas em 2016 — Créditos: https://www.facebook.com/vidacomarte/

As manifestações populares também se apresentam como rituais importantes dentro deste espaço. Desde a retomada das ruas com as manifestações de 2013, passando por todos os atos que se seguiram desde então, vemos os espaços públicos se tornarem verdadeiras assembleias populares, onde entendemos e construímos coletivamente nossos papéis de cidadãos políticos com voz ativa. Ao nos reunirmos para marchar por vias públicas e sentar no chão de praças, muito além do muros que nos separam das múltiplas realidades que habitam uma mesma região, para discutir os rumos que queremos e acreditamos para a cidade e o país, começamos um processo de empoderamento político que traz à tona a certeza de que é no coletivo que entendemos e potencializamos as nossas demandas e as nossas vozes.

Aos poucos, outros rituais são incorporados, como as festas de rua em contraponto às badaladas festas VIPs, com suas bebidas caras e seu público selecionado e homogêneo. A falta de "ingresso para pagar" torna esses encontros mais democráticos e acessíveis, onde o asfalto vira pista de dança e espaço de troca. Essas festas resgatam, sobretudo, a nossa cultura e a nossa ancestralidade, ao celebrar o samba, o maracatu, o carimbó, o coco de roda, o forró e tantas outras manifestações populares que constituem a nossa riquíssima produção cultural; e dão lugar para outras culturas musicais, como a cumbia e o afrobeat, que não se encontram nos Top 10 da maior parte das rádios que acessamos.

Passamos a ser produtores do nosso entretenimento. Amigos músicos começam a tocar em frente à praia e temos uma festa. Encontramos conhecidos em uma praça pública e temos uma celebração. Sem que seja necessário um espaço particular, onde pulseiras e cartelas de consumação definem quem pode ou não festejar conosco, nos abrimos para conhecer melhor o outro, sua visão de mundo e suas experiências tão plurais que expandem também as cercas limitadoras da nossa própria consciência.

Os personagens dos espaços urbanos.

A retomada dos espaços urbanos pede um olhar mais atento tanto para as paisagens quanto para os seus personagens. Projetos como o SP Invisível e o Rio Invisível são um convite para que se veja a cidade sob uma ótica mais humana: a partir de fotos e narrativas, eles desvelam pessoas que se tornaram parte da paisagem urbana — em sua maioria pessoas em situação de rua — e, portanto invisíveis os olhos viciados dos que transitam na cidade sem o encontro com o Outro.

Créditos: SP Invisível

O Projeto Ruas também parte do objetivo de resgatar a dignidade humana e a voz de pessoas em situação de ruas, gerando empatia da sociedade com a causa. Através de rondas semanais, os voluntários desenvolvem relações com essas pessoas, conhecem suas histórias de vida e as ajudam a se recolocar socialmente através de programas de informação e do resgate da cidadania.

Os muros falam: a língua das ruas.

É através da arte urbana que as ruas estabelecem diálogos conosco que nos convidam à reflexão, com denúncias sociais das relações que se estabelecem nela, frases motivacionais e também como oportunidades de ressignificação dos espaços urbanos. Inspirado pela eloquência das ruas, o coletivo Inspiration Page reúne em sua página no Pinterest registros desses desabafos urbanos. Já o projeto Oraculo Project tem como objetivo levantar questões que são postas de lado na correria do dia-a-dia, como por exemplo, o chamado para apreciarmos o aqui e o agora.

Créditos: Ygor Marotta

E para onde esses caminhos nos levam?

Se analisarmos sob a ótica do geógrafo britânico David Harvey, que defende que "o direito a cidade é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade", entendemos que as interações e relações que se estabelecem no espaço público são os nascedouros da construção do coletivo, a partir de uma perspectiva mais empática, que abraça diferentes realidades e repertórios.

Pois é quando ultrapassamos os muros que nos separam das múltiplas experiências de vida e demandas e, então, descobrimos o nosso eu enquanto ser coletivo que conseguimos ter discussões mais amplas para construir alternativas que sejam viáveis e inclusivas, através das relações de confiança e de acolhimento.

É a partir dessa construção que surgem conceitos como Economia Colaborativa e a lógica da Abundância em oposição à lógica da Escassez. É também através dessas interações que entendemos que somos parte de um todo e assumimos a responsabilidade e o poder de mudança das nossas ações. Ainda estamos iniciando esse processo, descobrindo possibilidades e testando alternativas, mas a certeza é uma: a cidade só se torna mais do que apenas concreto e tijolo quando a ocupamos de forma coletiva e construímos uma comunidade inclusiva e participativa.

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