Eleições comprometidas? Entenda como as novas tecnologias podem impactá-las

Marcelo Lisboa de Castro Reis
Blockchain Insper
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10 min readMay 12, 2020
https://gcn.com/Articles/2018/10/18/blockchain-voting-less-secure.aspx?m=1

Atualmente há um grande debate por trás das eleições, justamente por conta de problemas com a elegibilidade, segurança e até mesmo privacidade dos eleitores.

1. Introdução

“Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos negócios públicos do seu país, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos” e “a vontade do povo (…) deve exprimir-se através de eleições honestas que se realizem periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto”.

De acordo com o Artigo 21° da Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela ONU, eleições justas são essenciais para se atingir um sistema democrático, legítimo e honesto. O sistema eleitoral tem o dever de preservar um registro imutável dos votos feitos, representando as decisões de cada indivíduo. Contudo, muitas vezes isso não acontece…

Cédulas de votos ainda são a forma mais comum para eleições por serem menos suscetíveis a ataques cibernéticos do que as máquinas eletrônicas de voto, porém ainda sofrem muito com erros de contagem e fraudes. Em 2017, França e Holanda contaram as cédulas na mão, uma-por-uma, para evitar que hackers interferissem nos resultados.

Independentemente do sistema, os eleitores merecem e demandam a verdade. Mesmo assim, vemos tantas eleições manipuladas, roubadas e hackeadas. Existem diversos exemplos reais de que o sistema eleitoral atual está comprometido e precisa de reformas: eleições na Índia em 1984, em que as pessoas eram forçadas a votar com uma arma apontada para elas; o “voto de cabresto”, ferramenta utilizada pelos coronéis brasileiros desde a República Velha (1889–1930) para abuso de autoridade e compra de votos; ou até mesmo as eleições para presidente da Bolívia que ocorreram em outubro de 2019, em que as listas índices têm menos eleitores do que o número de votos nas atas.

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/11/12/atas-falsificadas-e-numero-inflado-de-eleitores-veja-indicios-de-fraude-encontra

Outro problema é levar as pessoas para votar. Ultimamente, o comparecimento dos eleitores às urnas vem decaindo cada vez mais ao redor do mundo. Cerca de 230 milhões de potenciais eleitores não estão registrados e, dentre aqueles que estão, a maioria ainda está deixado de comparecer aos locais de votação. Nos EUA, por exemplo, aproximadamente um-terço dos que não votaram justificaram sua ausência por não terem conseguido chegar para as eleições.

2. Prospecção de uma solução

Blockchain apresenta uma tecnologia muito interessante e útil principalmente por se tratar de uma inovação na maneira que a informação é registrada e distribuída, eliminando o uso de um intermediário. Desse modo, os dados de todas as atividades são armazenados em um livro contábil (conhecido também como “ledger”), descentralizado e geralmente público. Os “ledgers” são então compartilhados com todos os usuários da rede, podendo ser monitorados a qualquer momento pelos mesmos. Nesse caso, os dados registrados seriam os votos de cada eleitor.

Além disso, à cada dia que passa o mundo está mais tecnológico e digital. Telefones celulares estão cada vez mais espalhados e difundidos. A taxa de posse de smartphones nos Estados Unidos é de 94% para pessoas de 18–29 anos, 89% de 30–49 e 73% de 50–64. Nesse contexto, votação online e a tecnologia blockchain, juntos, têm o potencial de fazer com que o processo de votação fique mais acessível e seguro, garantindo a integridade das eleições.

De maneira geral, com os processos tradicionais, além dos resultados poderem ser alterados, a privacidade dos eleitores também estava em risco por conta dos ataques cibernéticos. As informações de registro que agora estariam com os hackers podem ser vendidas na dark web e utilizadas para fazer propagandas dirigidas e selecionadas, manipulando os eleitores.

Com a tecnologia blockchain, o processo eleitoral pode ser preciso, transparente e imutável, podendo ser utilizado tanto para eleições públicas como privadas. Ademais, a internet e escalabilidade dos celulares proporcionou votar sem precisar ir a um local físico, geralmente repleto de longas filas.

3. Tipos de Blockchain

Blockchains públicos podem ser permissionados ou não permissionados. Esses termos se referem ao processo de validação dos blockchains, em que é ou não necessário permissão para a validação. Ou seja, apenas alguns são validadores ou qualquer um pode ser um validador.

Analisando ambos no contexto de eleições, o segundo é mais atraente para países com sistemas pobres e governos corruptos. Porém, como há um número ilimitado de participantes e de cópias distribuídas do “ledger”, a velocidade da rede é reduzida. Diante disso, é necessário muita energia para o seu funcionamento, o que encarece e dificulta o processo.

Já no primeiro, o “ledger” ainda é distribuído, contudo como o governo ou a instituição organizadora da eleição pode escolher quem terá permissão para fazer parte do protocolo de consenso, ou seja, quem serão os responsáveis por autentificar as identidades e determinar quem pode votar, é possível impedir que atores mal intencionados participem do processo de verificação. Estes podem ser, por exemplo, um consórcio de universidades, organizações não governamentais (ONGs), agências governamentais e entre outros. Assim, mecanismos de consenso mais simples e com menos validadores (nodes) aumentam a confidencialidade da rede e garantem que os sistemas permissionados sejam mais rápidos e eficientes do que os não permissionados. Por isso, todos os casos analisados sobre blockchain para votação (vide seção 6) utilizam sistemas permissionados.

4. Tecnologia

Esse tema foi dividido em quatro diferentes tópicos: identificação, tokenização, armazenamento de dados (blockchain) e confirmação.

4.1 Identificação

O primeiro passo para criarmos um sistema de votação online seguro e confiável é a identificação do eleitor. Dessa forma, para que um eleitor seja completamente autentificado e possa assim poder cumprir seu dever como cidadão, são utilizadas ferramentas de biometria, como impressão digital e reconhecimento facial. Geralmente o eleitor deve escanear seu documento (carteira de motorista ou passaporte) que será verificado com os registros de um banco de dados dos órgãos eleitorais; tirar uma “selfie” que será comparada com a fotografia presente no documento, garantindo elegibilidade; e colocar o dedo no leitor de impressões digitais do celular para conectar o aparelho ao usuário. Assim, como a identidade do eleitor é encriptada e está ligada ao celular, após a validação todas as informações e dados do sujeito podem ser deletados, evitando o comprometimento da privacidade de cada um.

4.2 Tokens

Uma vez que o eleitor é verificado, o órgão organizador da eleição irá mandar um número específico de tokens para cada eleitor, formando uma carteira. Esses tokens são utility tokens, ou seja, representam o acesso a plataforma que irá rodar as eleições. Além disso, para cada funcionalidade na rede é necessário utilizar os tokens, alterando sua quantidade inicial. Ao escolher algum candidato, após verificação, o token do eleitor é debitado de sua carteira e creditado (adicionado) na carteira do candidato.

O número inicial necessário é definido pelo número de potenciais eleitores e pela quantidade de verificadores e segurança de cada ferramenta. Por exemplo, o órgão organizador deseja que cada membro valide seu próprio voto e possa monitorar e verificar, de forma independente, a eleição. Nesse cenário, serão necessários 4 tokens por eleitor (1 para o acesso, 1 para a voto (cédula), 1 para a verificação própria e 1 para validações externas, incluindo a encriptação e decriptação da cédula). Uma vez que os tokens são recebidos, estes podem ser utilizados para diversas eleições, contudo, apenas uma vez por eleição.

4.3 Blockchain

Após verificação, os votos são automaticamente atualizados e adicionados aos blocos que, armazenados em um blockchain permissionado, não podem ser manipulados ou alterados.

É utilizado um blockchain público como arquitetura base do sistema. Esse blockchain público é iniciado no momento em que são utilizados os utility tokens para realizar uma nova eleição. Para cada votação, é criado um blockchain privado respectivo (como se fosse um “ramo” saindo do blockchain público) que terá o saldo total dos votos registrado no blockchain público ao final da eleição. Dessa maneira, a cada votação realizada, um novo Bloco Genesis (primeiro bloco da cadeia) é criado, resultando no surgimento de um novo blockchain (privado).

Para garantir eleições justas, o anonimato deve ser assegurado. Sendo assim, os eleitores têm seus nomes encriptados.

4.4 Confirmação

Quando os votos chegam aos órgãos oficiais, uma cédula de papel é gerada no dia da eleição para cada voto feito pelo aparelho celular que está no registro do blockchain. Isso serve como um mecanismo de monitoramento e backup, que ajuda a verificar a autenticidade da eleição. Desse modo, num período de pós eleições, as cédulas de papel podem ser comparadas com os recibos digitais anônimos gerados pela plataforma no momento da realização do voto.

5. Vantagens e outras aplicações

Esse novo sistema de votação construído em cima da tecnologia blockchain é muito atraente por diversos fatores.

Sem contar com a transparência e segurança (open ledger e imutabilidade, respectivamente) e com o fato de não haver pontos centrais para ataques cibernéticos que a própria tecnologia fornece, o fator das votações poderem ser feitas através de smartphones aumenta significativamente a acessibilidade e integridade dos eleitores. A quantidade de eleitores que votam tem agora capacidade para crescer.

Ademais, já foi provado que as eleições ficam significativamente mais baratas e fáceis de acontecer (o governo da Estônia estima que o i-Voting poupou mais de 11 000 dias de trabalho por eleição, por exemplo). “No mesmo período de tempo em que eu poderia ter aberto e assistido um vídeo no Youtube, eu, na verdade, pude realizar meu dever civil” (Scott Warner). Agora, os eleitores não precisam mais se locomover pela cidade até seus locais de votação, passando por longas filas e esperas. Tudo pode ser realizado instantaneamente, por meio de qualquer aparelho.

http://www.startse.com/noticia/nova-economia/tecnologia-inovacao/53598/eleicao-digital-americanos-poderao-votar-via-blockchai

Finalmente, além da tecnologia blockchain poder ser utilizada durante o período de eleições, facilitando no processo de votação e verificação, ela também tem aplicações interessantes no período de pré-eleição. Para que eleitores não sejam contaminados por fake news, estes poderiam consumir apenas os conteúdos que são classificados como confiáveis por um identificador criptográfico, que tenha sua origem garantida em um blockchain. Porém, isso envolveria toda uma mudança que teria que ser feita nas mídias sociais, em conjunto com governos e meios de comunicação. Dessarte, é algo que ainda está longe de acontecer.

6. Casos existentes

Existem inúmeras companhias trabalhando atualmente com soluções que utilizam blockchain para o sistema de votação, entretanto apenas um pequeno número de empresas foi capaz de construir sistemas que funcionassem com essa tecnologia. Dentre elas se destacam a Voatz, Votem e Smartmatic-Cybernetica.

1º caso: Voatz

Startup estadunidense fundada em 2015 usou sua tecnologia pela primeira vez na eleição federal de 2018 do estado de West Virginia, nos EUA. Utilizou aplicativo celular para votação. Um total de 144 eleitores, de 31 países diferentes participaram do projeto piloto. O Voatz blockchain foi feito utilizando a estrutura Hyperledger.

“Nas eleições do último ano, foram detectadas atividades que poderiam representar uma tentativa de penetrar no processo de votação por celular de West Virginia, (…) entretanto nenhuma penetração ocorreu e os protocolos de segurança que protegem a rede funcionaram como projetados.” (CEO da Voatz)

2º caso: Votem

Em 2017, fãs puderam utilizar a plataforma celular da Votem para votar para o 2018 Rock and Roll Hall of Fame. Foram processados mais de 1.8 milhões de votos, sem fraudes ou ataques hackers de qualquer tipo, marcando o maior uso de votação online utilizando tecnologia blockchain até hoje.

3º caso: Smartmatic-Cybernetica

Empresa com grande experiência em eleições ao redor do mundo. Fez a primeira eleição online utilizando blockchain permissionado para a convenção partidária do partido republicano de Utah em 2016. A plataforma permitiu que 24 486 eleitores, de 45 diferentes países, tivessem seus votos registrados com segurança por computadores, tablets ou smartphones.

Smartmatic também já organizou eleições online, sem a tecnologia blockchain. A Estônia já realiza eleições online desde 2005 utilizando sua tecnologia. São utilizados processos de criptografia para garantir a segurança da rede. Apesar de várias alegações sobre o comprometimento desta, as companhias e governos que utilizaram esse sistema não encontraram nenhuma evidência para as acusações e planejam continuar a usar a tecnologia.

7. Desvantagens e pontos a se pensar

Enquanto defensores do blockchain dizem que a tecnologia poderia aumentar a participação e segurança das eleições, outros dizem que ela deixa os processos de eleição demasiadamente complicados e não mais seguros que outros sistemas online. Eleições online já se mostraram capazes de funcionar sem blockchain. Estônia desde 2005 e Austrália desde 2011 são exemplos disso.

A habilidade de escalar também é questionada. Vários blockchains públicos são lentos em relação à performance e, por isso, inutilizados para eleições governamentais de larga escala. O fato dos blockchains serem permissionados ainda atrai diversas críticas por conta das decisões estarem concentradas nas mãos de um grupo selecionado de participantes.

Por fim, especialistas estão preocupados com a fragilidade na segurança dos aparelhos celulares e com a privacidade do eleitor. Votar em aparelhos pessoais pode resultar em coerção e compra de votos entre os eleitores, pois não há como garantir que o eleitor está sozinho no momento do voto. Em nenhum momento haveria alguém para supervisionar isso, como acontece no sistema eleitoral atual. Portanto, por enquanto não há como assegurar que essa tecnologia não será utilizada por pessoas mal-intencionadas.

Como o próprio Artigo 21° da Declaração dos Direitos Humanos diz, o voto deve ser privado e secreto.

Enfim, preocupações com privacidade e problemas de governança em sistemas baseados em blockchain ainda necessitam análise mais profunda antes de se difundirem mundo afora.

8. Referências

[1] https://techcrunch.com/sponsor/unlisted/can-blockchain-save-the-vote/

[2] https://www.cbinsights.com/research/report/blockchain-election-security/

[3] https://medium.com/bpfoundation/blockchain-applications-election-voting-a1436e7d10cb

[4] https://medium.com/bpfoundation/election-voting-blockchain-case-studies-18321c379529

[5] https://voatz.com/faq.html

[6] https://www.votem.io/#About

[7] http://www.votem.com/wp-content/uploads/2017/04/RRHoF-Case-Study.pdf

[8] https://www.votem.io/assets/docs/wp.pdf

[9] https://www.smartmatic.com/

[10] https://tivi.io/case/utah/

[11] https://followmyvote.com/

[12] https://followmyvote.com/cryptographically-secure-voting/

[13] https://token.democracy.earth/#ico

[14] https://qz.com/1574671/the-fbi-is-investigating-west-virginias-blockchain-based-midterm-elections/

[15] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/11/10/oea-diz-que-eleicoes-na-bolivia-foram-fraudadas-e-recomenda-nova-votacao.ghtml

[16] https://www.unric.org/pt/informacao-sobre-a-onu/direitos-humanos/14

[17] https://www.belfercenter.org/publication/defending-vote-casting-using-blockchain-based-mobile-voting-applications-government

[18] https://thenextweb.com/hardfork/2018/11/05/permissioned-permissionless-blockchains/

Nota: Para quem se interessar e desejar entender mais sobre blockchain, recomendo acessar https://www.coindesk.com/learn/blockchain-101/how-does-blockchain-technology-work

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Marcelo Lisboa de Castro Reis
Blockchain Insper

Mechanical engineering student, Business Analyst at Blockchain Insper and a technology enthusiast.