Uma reflexão sobre “Polícia e Ladrão”: Por que simplicidade não é o oposto de complexidade

André Tokunaga
Try Consultoria
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5 min readDec 5, 2016
Ilustração de 1860 com crianças brincando de pega-pega. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/46/Jongensspelen_10.jpg

Quando criança, uma das brincadeiras mais comuns entre meus vizinhos era “Polícia e Ladrão”: uma pessoa (ou mais) agem como a força policial, devendo correr atrás de várias outras pessoas, os ladrões. A brincadeira era uma adaptação de “pega-pega” e era outra daquelas brincadeiras que ninguém sabe quem inventou, só sabe que existe.

Imagino que tenha sido inventado por crianças sedentárias como eu, talvez por isso achava que era de longe a melhor de todas as brincadeiras ;)

Seus objetivos eram bem simples: Ladrões devem se permanecer livres durante um período mínimo de tempo (muitas vezes, até ouvir os berros das mães chamando seus filhos para o jantar) e policiais devem prender todos os ladrões durante esse período de tempo. Acima de tudo: todos precisam se divertir, e muito.

Ordem

Como toda brincadeira, algumas regras eram estabelecidas antes: Policiais correm atrás de ladrões. Um ladrão tocado é um ladrão preso, e deve se dirigir para a delegacia (algum quadrado imaginário). O ladrão não pode sair da delegacia.

Em contrapartida, um ladrão livre que toque um ladrão preso poderá libertá-lo e o policial deverá correr atrás de todos novamente. O jogo continua assim até todos estarem exaustos ou quando todos os ladrões forem pegos (ou quando a mãe chamava para voltar para casa. Ninguém em sã consciência iria desobedecer essa regra).

Simples, não? De fato, até uma criança de 5 anos consegue entender isso. Entretanto, tal simplicidade, quando analisada um pouco mais de perto, traz uma enorme complexidade.

Complexidade não no sentido de algo difícil de ser compreendido (chamaria isso de complicação, quando nada faz sentido), mas no sentido de integração, com múltiplas possibilidades e conectado a várias coisas ao mesmo tempo (complexo, na raiz da palavra, significa “aquilo que é tecido junto, unido”).

Caos

Não vou questionar a simplicidade da brincadeira, pois é simples mesmo! A complexidade está justamente na total imprevisibilidade de interações no sistema.

O carro que estaciona se torna um esconderijo inesperado, barrancos se tornam becos-sem-saída para prender aquele ladrão mais rápido, até mesmo se fingir de ladrão para os mais desatentos acontecia. Nada previsto em regras, nada previsto em manual.

Polícia e Ladrão adiciona ainda outro fator considerável: pode ser jogado com qualquer número de jogadores, desde que seja maior que 1. Dois milhões de jogadores poderiam jogar este jogo (com esse número variando a todo momento) e ele continuaria funcionando sem grandes problemas com as adaptações necessárias.

Apesar de regras bem claras serem estabelecidas no começo, diversas variáveis (comportamento dos jogadores, objetos no lugar, condições climáticas) fazem com que infinitos cenários sejam possíveis na brincadeira. A imprevisibilidade de tais eventos traz o caos, mas não é um caos ruim: é justamente isso que faz Polícia e Ladrão ser tão divertido!

Complexidade Simples

Árvore de Pitágoras: um sistema de alta complexidade, com regras de interação simples (quadrados são construídos sobre outros, reduzindo a escala com um fator linear de ½√2)

O fator de diversão dentro de um jogo é algo imprevisível: não há como definir que alguma coisa trará diversão, pois ela não vai. Diversão é emergente, surge da interação das diferentes partes do sistema onde o jogador está. Quanto mais interações o sistema permitir, maior será a possibilidade de surgir diversão.

Pode-se afirmar que um sistema complexo é definido por sua curva de interações. Quanto mais as partes podem interagir entre si, mais complexo fica o sistema. Por outro lado, as possibilidades de interação das partes são definidas justamente pela energia usada para interagir com outra parte. Quanto mais difícil for para uma parte interagir com outra, menos ela vai interagir.

Adrian Bejan, professor da Universidade de Duke, estabeleceu em 1996 o que chamou de “Lei Constructal” (mais informações aqui). Bejan identificou que o design de sistemas complexos e dinâmicos seguem um padrão para persistirem e evoluírem:

“Para um sistema de fluxos de tamanho finito persistir no tempo (para sobreviver), sua configuração precisa evoluir de tal maneira a prover um acesso maior e maior em seus fluxos”

Em outras palavras:

A complexidade de um sistema é diretamente relacionada a simplicidade de interação entre suas partes.

Entende como simplicidade e complexidade não se separam?

Vamos imaginar em Polícia e Ladrão o seguinte cenário: Para que pessoa seja considerada “pega” ou “livre”, além de tocar a outra pessoa você precisa berrar o nome dela. A pessoa é considerada pega quando todos os jogadores ouvirem seu nome sendo berrado.

Só de adicionar essa nova complicação, o jogo inteiro quebra, e rápido.

Design de Interação?

Novos serviços e tecnologias possuem objetivos tão intangíveis quanto “diversão”: engajamento, colaboração, inovação, eficiência…todos baseados em probabilidades e que necessitam de sistemas dinâmicos para que possam surgir.

Desta forma, o design de interação assume outra forma: não se trata apenas da interação humano-computador e o projeto de reações de uma tela ao usuário: ela expande além das interfaces computacionais e, arrisco-me a dizer, tornam-se interfaces sociais (interfacear a interação de vários atores, seja humano ou máquina).

Meio longe né? Acho que não.

IFTTT (https://ifttt.com/) é um serviço de automação de tarefas que utiliza dados provindos de diferentes serviços para disparar automaticamente ações em outros serviços conectados. Por exemplo: você pode conectar um serviço de previsão do tempo e lâmpadas inteligentes instaladas no guarda-roupas, como a Phillips Hue. Caso a previsão seja de calor intenso,as lâmpadas ficam alaranjadas.

O serviço permite a integração de milhares de sistemas diferentes, ou seja: é altamente complexo, mas parte de um princípio simples:

Na imagem: Interface do IFTT (If this, Then That). Sistema inteiro é baseado na “programação” de gatilhos e reações. Todos os módulos do sistema seguem uma regra simples: Toda ação (gatilhos) possuem uma reação.
Na imagem: Telefonista opera uma mesa telefônica, conectando fios em um painel. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/43/JT_Switchboard_770x540.jpg

No IFTTT, usuário age como um telefonista: várias conexões de entrada e várias conexões de saída. Somente por meio de uma regra simples (no caso, o uso do fio) é possível que um sistema desta complexidade possa funcionar. No caso do IFTTT, o fio é uma tela única com dois campos para serem escolhidos.

Sistemas de alta complexidade de sucesso só funcionam graças a regras de interação simples: Curtir, Comentar e Compartilhar para o facebook,o botão de “pin” para o pinterest…

Como dito antes, simplicidade e complexidade não são adjetivos opostos, muito menos depreciativos. Em uma realidade repleta de incertezas e inconsistências como o ambiente digital, ter alta complexidade de sistemas e simplicidade de interações é garantir sua sobrevivência, assim como Polícia e Ladrão sobreviveu.

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André Tokunaga
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UX Designer. Obsessed with finding connection everywhere, critic by work and nature. Highly methodic while being humanly sensible.