O custo da violência

Uma experiência de uma vida sem violência

Fernando Baggio
Blog do Baggio
6 min readMar 5, 2018

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Sabe quando alguém te propõe uma brincadeira do imaginário, do tipo: "Imagina um lugar onde não há violência de nenhum tipo? Imagina que ninguém é assaltado, não há homicídios, não há pobreza, fome. Pense num lugar onde você pode deixar seu filho(a) brincar em uma praça enquanto você pode tomar um café o quiosque dessa praça sem precisar ficar de olho nele(a)"?

Pois é, essa é a experiência da não violência que vivi recentemente e me impactou profundamente.

O que significa viver numa sociedade violenta? Ou melhor, numa sociedade que sofre com violência? Talvez nós brasileiros saibamos muito o que isso significa. Mas o que nós não sabemos, certamente, é o que significa viver sem violência. E agregar essa informação (viver sem violência) é também significar de forma mais abrangente o que é viver com violência.

O que chamamos de forma simplista de “o problema da violência” é muito amplo. Não sou especialista em segurança pública, nem em violência urbana. Não preciso bombardear ninguém aqui com nossos horrorosos números da múltipla violência que vivemos. E como já disse, nem só é “o problema” como também não se trata “da violência”. São múltiplos problemas e múltiplas violências.

Por aqui, diariamente discutimos ou vemos discussões sobre a violência, especialmente sobre suas causas e consequências. Mas uma experiência recente mudou minha visão sobre o assunto, bem quando o país parece estar ainda mais dentro dele. Uma viagem de 40 com minha família para Portugal fez saltar um aspecto pouco ou nada sentido aqui: como é e o que implica viver uma vida sem violência.

Para quem quiser conhecer (e comparar) um pouco sobre os índices de criminalidade em Portugal, leia este artigo aqui.

Mesmo que o choque de números seja importante para ressaltar essas diferenças da violência, ainda assim eles não demonstram no que isso torna a realidade tão diferente entre as vidas vividas nesses lugares. A constatação mais marcante é que viver em um lugar sem violência faz com que o dinheiro seja bem menos necessário e importante.

Sim! Esse ponto é o não dito. Ele revela uma outra face que, aqui no Brasil, não sabemos e não sentimos. O valor do dinheiro passa a ser muito maior e mais caro quando se paga pela sua própria vida. Um português precisa bem menos do dinheiro para ter qualidade de vida, lazer, moradia, educação e segurança. Sendo que a violência nos tira mais do que parece tirar.

Eu sei, a violência já nos tira muito. Claro que nada é mais importante do que a vida, do que a vida dos nossos filhos e entes queridos, ou mesmo de um desconhecido. A face que nos é dada e vivida aqui é a pior delas, porque é a pura violência. Aqui a sensação já não é mais "se" passaremos por algum tipo de violência, mas sim "quando" passaremos. Talvez, na melhor das hipóteses, nós "apenas" veremos uma cena violenta, o que já implica em violência por si.

O português vive de outra maneira. Em Portugal o custo de vida é muito inferior ao Brasil, e a qualidade de vida é muito, muito superior. Imagine que você, por exemplo, não precisa escolher onde morar de acordo com a segurança? Aqui no Brasil, especialmente nas grandes cidades, há sempre essa questão envolvida. Para piorar, muitos brasileiros não tem como escolher onde morar, o que significa quase sempre morar em um lugar onde a violência é enorme. Isso porquê a falta de dinheiro nos faz sermos obrigados a morar em lugares mais baratos. Mesmo que o lugar não seja violento, é quase sempre um lugar distante da região central das grandes cidades, periferias, portanto.

Cidades como Lisboa isso também ocorre. O preço muda bastante entre morar em bairros mais centrais e lugares mais periféricos. No entanto, lá é possível se viver com a mesma qualidade de vida na periferia e no centro, ou alterando muito pouco. Um dos fatores (senão o principal) é a violência. Viver em um subúrbio sem violência, onde a infraestrutura é bastante semelhante, revela uma face da violência que demonstra o quanto é caro viver em função dela. Além disso, mesmo na periferia de uma grande cidade portuguesa o transporte público é muito bom, as vias de acesso são suficientes, o trabalho pode estar perto, a escola do filhos é próxima à sua casa e da mesma qualidade que outras localidades, com acesso à cultura, a saúde pública é muito eficiente. Isso só quer dizer que você pode optar em viver com menos dinheiro mas com praticamente a mesma qualidade.

Claro que os portugueses podem até sentir que não é bem assim. Mas tudo é uma questão de referência. Em São Paulo, ou qualquer outra grande cidade brasileira, isso é um sonho utópico. O Mapa da Desigualdade de 2016 mostra que em São Paulo a distância de um raio de 20 quilômetros tem uma redução na expectativa de vida em 20 anos. Isso mesmo: um ano a menos de vida para cada quilômetro periferia à dentro em São Paulo (veja aqui).

Em um país onde você não precisa se preocupar onde morar, ou ainda, morar onde seu dinheiro seja o suficiente, faz com que o dinheiro tenha muito menos peso. Também é pela questão da violência que optamos (quando podemos) colocar nossos filhos em escolas particulares. Infelizmente essa decisão também incluir profundamente a questão da qualidade da educação, com certeza. Mas sem dúvidas, a violência dentro das escolas públicas assusta os pais.

A violência também determina em grande parte nossos hábitos. Por onde caminhamos, o que vestimos, se temos ou não carro, entre outros. Por exemplo, ao optarmos por ter um carro ao invés de andarmos de transporte público, dentro dessa decisão sempre está implícito a questão de segurança. Claro que há muitos roubos e outros crimes envolvendo carros. Porém, é natural a sensação de maior controle e segurança dentro do carro do que dentro de um trem à noite indo para o subúrbio. Mais ainda quando tem que descer na estação e caminhar alguns minutos até a sua casa.

Por fim, mas não menos importante, é a sensação de segurança. Ela é uma sensação única. Coisa que nós brasileiros definitivamente não sabemos o que é até estarmos em um lugar assim. E isso aumenta muito, muito mesmo a qualidade de vida, o bem estar. Você se torna, possivelmente, um ser humano menos individualista, menos agressivo, mais aberto, mais solícito, mais empático até. Isso porque tem que se preocupar menos com sua própria segurança e o "salve-se quem puder" deixar de existir.

Dessa forma, percebi que vivemos de fato em um lugar tristemente inaceitável. Inaceitável viver em um lugar onde se corre risco de vida em qualquer lugar. Em que há tanta desigualdade, e essa desigualdade se revela ainda maior e mais severa ao vermos morrendo gente na periferia como se nada fosse. E vendo tanta gente matando gente. Ver um exército tomar conta da segunda maior cidade brasileira sob o aplauso da maioria, quando acabo de ver que a solução para isso em nada tem a ver com mais violência, mas sim com mais direitos, mais educação, mais equilíbrio social, mais investimentos nas áreas corretas para corrigir um mal ancestral desse país.

O que impacta dentro dessa minha experiência não é o que vivemos dentro da violência, mas principalmente o que deixamos de viver sem ela. Muitos amigos com quem falei tentam argumentar que Portugal é muito menor que o Brasil, ou que é um país europeu e, portanto, de primeiro mundo. Esses argumentos são formas de conformismos que nos acostumamos a usar. Não é uma questão de tamanho, ou uma questão econômica. Nosso país é bem mais rico que Portugal em termos econômicos, arrecada mais impostos (somos a 6ª maior economia do Mundo, enquanto Portugal é "apenas" a 49ª). Sobre Portugal ser "um país de primeiro mundo", na verdade eles construíram essa realidade a partir de 1974, ano da revolução ocorrida lá na derrubada do governo do ditador Antonio de Oliveira Salazar, que durou de 1933 até 1974. Foi desde então que Portugal começou a construir sua realidade atual. Antes, o país era bastante pobre. Sem falar que o país foi fortemente afetado pela crise mundial em 2008.

Assim, pude ver que o dinheiro nesse nosso país é mais um elo da corrente que nos põem escravos de um sistema político-social perverso. Aqui o dinheiro é fundamental para nos mantermos vivos. Lá só é parte, uma parte da vida. Se o dinheiro faltar, ou diminuir para um português, sua vida será muito menos alterada do que o mesmo aqui. O preço que pagamos para uma vida cercada de violência é muito maior do que imaginamos.
Portugal, um lugar onde o valor da vida nada tem a ver com o valor do dinheiro.

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Fernando Baggio
Blog do Baggio

Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.