O Esvaziamento da Humanidade

A natureza que precisa ser nutrida é a da criação e não a da violência

Fernando Baggio
Blog do Baggio
10 min readJun 8, 2018

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Dia 29 de outubro já saberemos quem será o novo presidente (a) do Brasil para os próximos 4 anos. Mas, ganhando ou perdendo, Bolsonaro já nos mostra o que estamos perdendo: nossa humanidade.

É irônico pensarmos que em busca da uma sociedade melhor estejamos caminhando para trás. Em nome de um deus pregado entre paredes, estejamos desejando morte, castigo, punição. Assim como aconteceu na Idade das Trevas, a Idade Média, quando padres caçavam o que chamavam de bruxas e hereges.

É medonho ver a história da ditadura militar sendo forjadamente reescrita diante de tantos jovens, ou mesmo os mais velhos que, mesmo tendo vivido nessa época, estavam sendo conduzidos feitos ovelhas para hoje serem capazes de perceber o mal causado à época. Agora voltam-se para os militares como a nova solução.

Mas não é difícil entender o que nos trouxe até aqui.

A humanidade luta contra sua própria natureza. Ao buscarmos superar nossos limites, estamos lutando contra a nossa natureza. Compreende-la seria um caminho mais seguro. É como ter uma doença incurável, porém tratável. No entanto, como qualquer doença é necessário duas coisas: diagnóstico e aceitação. Sem ambos nada funciona.

Nossa doença é parte do que somos, parte da nossa própria natureza. Mas nosso mal é outro: é não reconhecer, não aceitar, não lidar e, portanto, não tratar.

O capitão sugere a morte ou o isolamento em jaula. O resto aplaude efusivamente, sentindo-se seguros, sem perceber que estão prestes a caiar nas mesmas armadilhas. Não é raro. O fim da liberdade de um grupo é o fim da liberdade de todos os outros. Só uma questão de tempo.

De todos os diagnósticos que nos faltam, talvez o pior deles é que não estamos criando. A criatividade é parte da nossa natureza. Também é intuitivo em nós criarmos. Assim como a violência, a criatividade precisa de e estímulos. É óbvio que estamos recendo muito mais estímulos para atacar (e destruir) do que para criar. E isso não é um mal do brasileiro, mas da humanidade.

A arte é a grande liberdade. É nela que se vive a força criativa mais poderosa da mente humana. A arte alimenta a ciência desde sempre e a criatividade é a mãe de todas as ciências. Imaginar, transpor, vazar, transbordar a própria vida. Essa essência vital que trará — assim como sempre trouxe — luz à caminhada.

Mas ela ameaça. Ameaça quem quer permanecer no poder. Se a criatividade rompe e inova, toda estagnação é ameaçada, inclusive a de líderes. E quanto mais autoritário esse líder é, mais ameaçado ele se sente. Então ele propõe suas próprias soluções. Todas elas, claro, baseadas em medidas retrógradas conservadoras.

Para convencer os seus, esses que usam da força tem hoje a seu favor a história recente da formação do seu povo. Com um povo mal educado, brutalizado, mal informado, descrente e totalmente impaciente, sugerir soluções rápidas pela força e pela violência sempre parece certo.

E aqui, nas linhas acima, está o segundo diagnóstico: a formação.

Dominar o que se ensina, de que forma se ensina, e quem ensina, produz gerações inteiras que pensam de forma bastante parecida. A assunto educação é muito complexo. Vai muito além do que dizem e penetra em todas as camadas da sociedade.

Da idéia de que ter é mais do que ser, ou que é preciso ter para ser, ou que é preciso ter para ser aceito, nasce o conceito do ensino que molda gerações. Darcy Ribeiro disse que o problema da educação no Brasil não é um problema, mas um projeto. É fácil notar, por exemplo, como a educação é alterada tanto no conteúdo quanto na forma (metodologia e didática) de tempos em tempos para ajustar aos interesses de quem manda. De forma que não é acidente que não se estude profundamente tudo que privilegia o pensamento, o saber e a arte. Não se estuda artes, não se estuda filosofia, nem sociologia.

O modelo de ensino é também voltado para decorar. Além disso, há um enorme carga de conteúdos que não servem para nada ou para pouco servem, especialmente na forma com que são aplicados e dispostos. Tudo isso desestimula o aluno a estudar, aprender e, principalmente, aplicar. Quando, por exemplo, eu dou a primeira aula de teoria para meus alunos de bateria, começo explicando alguns conceitos matemáticos usados na música. O olhar assustados dos alunos ao perceberem que estamos tendo uma aula de matemática é imediato. Mas ao perceberem que a aplicação lhes faz sentido, isso estimula o saber da matemática. Ou seja, não é o conteúdo, é o sentido, a finalidade. Há muitas formas de se ensinar e há muitos “porquês” para um conteúdo.

Formas de aprender, o quê aprender e para quê aprender. Se eu sei disso, muitos com mais capacidade e conhecimento que eu também sabem. Porém, o que está por trás desse tipo de educação falida aqui empregada não é isso, mas sim os interesses dos poderosos em educar exatamente dessa forma. Isso dá a eles o que precisam para manipular e convencer uma enorme quantidade de pessoas.

A armadilha é, no entanto, perigosa. Todo projeto investido contém riscos. O risco desse projeto é justamente um povo bruto sair do controle. Exato, você leu controle. As ferramentas de controle são muitas. Uma delas é a lei. Foucault produziu obra brilhante sobre essa ferramenta. Um de seus clássicos, a obra “Vigiar e Punir”, ele detalha como o estado molda e controla uma sociedade por critérios baseados em interesses do estado, e não só do cidadão e da sociedade. A idéia central é manter o establishment.

É nesse ponto que é preciso ser dito que se o estado precisa vigiar e punir é porque não cumpriu outros de seus papeis fundamentais, como educação e renda. E quando falo que renda é papel fundamental do estado, é preciso que se entenda que é papel mesmo em sistemas econômicos liberais. Se a riqueza ruma para concentração de renda e gera desigualdade, é papel do estado, a serviço dos interesses de todos, intervenha de alguma forma para trazer equilíbrio. Isso não é um preceito marxista, nem mesmo socialista. É um óbvio de função de uma gestão de pessoas. Corrigir injustiças de todos os tipos.

Quando esse estado trabalha para os interesses de grupos poderosos que querem justamente obter mais e mais lucro, então há uma subversão desse valor que o estado deveria ser tutor: igualdade. O problema é que esses grupos poderosos financiam os políticos. Essa interferência acaba por produzir distorções, como o estado produzindo leis que beneficiam poucos poderosos, concentram renda, esmagam trabalhadores, precarizam o trabalho, retira direitos, e cria punições para quem reclama.

Passa a fugir do controle quando o ser humano já não tem rumo nem esperança. Quando vê morrer e vê matar, e se vê matando para sobreviver. O estado ainda tenta o golpe de misericórdia, ao condenar àqueles que observam isso que lutam não apenas pelos que morrem, mas pelos que matam por desespero ou destempero. O ataque e a força para distorcer e manchar a imagem de grupos como “Direitos Humanos” é uma das formas de controle. Ao dizer que não existem vítimas da sociedade, o estado apenas faz algo para eximir-se de culpa. Mas a violência avança e chega às portas das casas dos poderosos.

É aí que entram grupos ainda mais radicais. Sem que o estado dê soluções, e suas armas constitucionais ou mesmo institucionais começam a falhar, entram em cena os justiceiros. Aparecem como heróis. Culpam a lei, o estado, a política, mesmo quando são parte dela. E dão como única solução a violência. São aplaudidos. Onde há falta de criatividade, de saber, de pensamento, ausência de história, esse tipo de ditador nada de braçada. Com a confiança e o orgulho ferido, e com o medo implantado na espinha dorsal de cada ser, é fácil o desejo de que pareça o salvador.

Nietzsche diz que nosso senso de sobrevivência nos levou a formar grupos, viver de forma gregária. E a gregaridade trouxe a necessidade de liderança, aquele que conduz e salva, que protege, que decide. Milênios se passaram e esse senso aqui está mais latente que nunca. Nietzsche nomeia essa forma que vivemos como “rebanhos”, sempre ávidos por sermos servos, escravos de um algo maior, seja um líder, seja um estado, seja um deus, seja uma religião. E o que nos mantém assim é o senso de sobrevivência. Mas sobrevivência contra o quê?

O inimigo é mais perigoso quanto mais desconhecido for. Quanto menos sabemos sobre usas armas, como ele ataca e quanto poder ele tem, mais tememos. Quanto mais medo, mais chance de aparecer um salvador. Somos esculpidos em frases e verdades contadas por homens cheios de interesses obscuros. “Situações extremas exigem medidas extremas”, quem não ouviu isso? Essa frase é uma remodelagem do conceito”olho por olho, dente por dente”. E se pesquisarmos, encontraremos paralelos em todos os tempos e lugares.

O inimigo é o bandido medonho, a empresa gigante, o estado autoritário, o partido dos comunistas, talvez o dos capitalistas, os que estão do outro lado do muro, os da bandeira vermelha, os da camisa da seleção. O que importa é o medo que ele causa.

Assim, todos esses sabem o que o medo produz. Plantar o medo, ou mesmo causar o horror para que o medo surja, é arma constante comprovado na história. Não é à toa que Bolsonaro diz: “o ser humano só respeita o que teme”. Ele sabe que diz isso tanto para dizer que irá salvar os seus dos inimigos, mas também diz que os seus deverão respeita-lo sob a condição de se tornarem seus próximos inimigos.

A violência é parte da nossa natureza. Se estimulada, ela aparece sem limites. Mas ela não é, entretanto, a parte maior da nossa natureza. É a propriedade de pensar, exclusivo da natureza humana, que é a parte maior que nos caracteriza. Quando a violência aparece, animalesca e pulsante, a razão desaparece.

Ganhando ou perdendo, Bolsonaro terá nos deixado um marca na alma, uma lembrança do que somos também capazes enquanto seres humanos. Marca já deixada em tantos outros capítulos da nossa tropeçante história, como a Santa Inquisição, o fascismo, o nazismo, as ditaduras comunistas, entre tantas outras. Essa marca estará estampada na porcentagem revelada nas urnas. Ela representa o desejo de vingança, de violência, de morte, de autoritarismo, da violência racial, da violência contra a mulher, contra os homossexuais, da violência contra as religiões, a marca da violência. Se ele ganhar, apenas haverá mais violência por um tempo que não teremos certeza do quanto durará.

Fazendo o uso de um deus e do exército armado, o capitão estará à frente de um projeto de poder para conter os revoltados e desesperados. Superarão então já o número recorde de negros mortos no país. Um número que cresce 23% no último ano, ante a um recuo de 7% de mortes de pessoas brancas. O “salvador” apenas fará de tudo para manter as hegemonias. O diagnóstico de sua eleição é a soma de muitas coisas, como algumas poucas ditas acima. Sobretudo, por sermos agora uma população ignorante, brutalizada, hostil, dividida, sem educação, e sem a história recente para nos lembrar que o caminho proposto já foi feito e deu errado.

A esperança está naqueles que pensam e criam, nos verdadeiros artistas, que se livram dos covers, se livram do mercado, apenas para serem livres e criar. O que criam não criam para salvar o mundo, mas para se manterem vivos. Isso acaba por criar um outro mundo. Como poderia a poesia ser mais forte e penetrante que uma metralhadora? É! Ela é muito mais profunda pois fala com um porção da nossa natureza maior que a natureza da violência. O homem, enquanto natureza, que constrói a arma de fogo, ou mesmo se empenha em planos para manter o poder, é também o homem que compõe sinfonias, poesias, e produz pensamentos que mudam o mundo.

Essa parcela bruta que hoje comemora cada frase nefasta e fascista de Bolsonaro, estará sempre por aqui, em maior ou menor número. Depende das ações da outra parcela para jogar luz e esclarecer que a violência não produz solução, apenas reação. É chocante sim ler uma nova entrevista do fascista, mas é ainda mais dolorido ler que a cada frase dele há um comentário abaixo de apoio, algo como “ganhou meu voto”, ou “é disso que precisamos”. Sem perceber que não precisamos de uma pessoa para nos salvar de nós mesmos. Precisamos é que cada um de nós exercite o pensamento, natureza que nos pertence. O salvador está dentro de cada um, dentro da sua própria natureza. A paz não vem com a guerra, e talvez a paz nem mesmo exista. Entender que o caos faz parte e ele não significa violência, mas sim existência. O que existe é a existência, e a guerra só põe fim a várias delas.

Termino esse texto crítico e reflexivo com duas obras do artista Maurits Escher (1898–1972). Ele foi um mestre em criar ilusões, trazendo com elas profundas reflexões da realidade. Ao deparar com uma de suas obras, é natural ficar por horas analisando-as. Elas acabam por nos trazer análises metafóricas sobre nossas próprias vidas. A arte que transforma, que nos transpõe, nos transtorna. Na primeira imagem, o reflexo da esfera, que nos leva a nos enxergar com uma perspectiva, ampliada e ao mesmo tempo, distorcida. Para mudar a realidade é preciso vê-la de várias formas. Na segunda imagem, sua obra chamada "Metamosphose". A mudança constante e cíclica.
A arte não muda o mundo da forma mais visível, talvez. Mas ela mexe com a essência de uma forma que nenhuma outra coisa faz. Essa mudança, longa, vagarosa e profunda, é que precisamos. Para recuperarmos nossa humanidade teremos que obrigatoriamente passar pela arte.

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Fernando Baggio
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Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.