O fetichismo da elite cultural

A ideologia do "crítico virtuoso" no filme "A Primeira Arte".

Fernando Baggio
Blog do Baggio
17 min readApr 21, 2021

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Assisti e analisei o filme "A Primeira Arte", produzido por uma canal de extrema direita brasileira, conservadora, bolsonarista, a Brasil Paralelo. O filme se vende como um documentário, que evidentemente não é. É um panfleto conservador elitista, com uma defesa de valores alinhados com esse tipo de espectro. Porém, sua pretensão não é demostrar seus valores, mas distorcer e atacar outras ideias. E é aqui que tudo de mais horrendo se revela: racismo, colonialismo, vira-latismo tupiniquim, arrogância. Tudo cercado por distorções, mentiras, ilusões, tornando tudo uma armadilha para quem assiste e um pesadelo para quem sofre com a repressão da burguesia, ou seja, ou mais pobres e periféricos do país.

Umberto Eco escreveu um brilhante livro sobre estética: “Apocalípticos e Integrados” (publicação original 1964), onde ele analisou fenômenos de cultura de massa, suas críticas, seus críticos, suas polarizações, surgimentos de fenômenos e novos mitos. Eco descreve de forma clara a arrogância e a raiva da elite quando esta critica culturas de massa. Ele vai dizer que quando esse crítico faz sua crítica, ele a faz com estranha propensão emotiva carregada de amor e ódio. O que, segundo Eco, faz desse “crítico virtuoso” a primeira vítima desse produto de massa. No tal filme encontra-se cheio dessas vítimas, os “críticos virtuosos”.

Há muito se discute, desde rodas de amigos, passando por publicações e meio universitário, questões acerca da estética musical. A divisão erudito/popular, ou outras como jazz/pop, música instrumental/música cantada, e o que mais quiserem, verte para discussões do que é melhor, pior, mais rico, mais pobre, mais belo, mais feio, mais complexo, mais simples, mais difícil, mais fácil e outras intermináveis categorizações da música. Nenhuma capaz jamais de chegar a algum tipo de vitória nessa pitoresca arena. Em grande medida a arena dessa batalha é o ego e a arrogância de ao menos uma parte desses atores/gladiadores desse tipo de discussão. Sempre carregadas de preconceitos e supervalorização daquilo que defendem, músicos ignoram quase que completamente fatos que ocorrem alheios à música (em seus fundamentos exteriores, sobretudo), mas que interferem nela frontalmente, como o tempo e o espaço, por exemplo. Entretanto, um dos erros mais fundamentais dessas desimportantes discussões é o fato delas serem eurocêntricas e só serem capazes de analizar um período muito curto da história humana, cerca de 500 ou 600 anos, não mais que isso. O outro erra está justamente no agente da crítica/discussão, ou seja, um artista desse tempo, limitado a conclusões carregadas de suposições imaginárias, dada a distância temporal, ainda com a disposição dos dados históricos (esses também carregados de interesses eurocêntricos).

Outro ponto que sempre me chamou atenção é o fato de um ator desse tipo de discussão o fazê-la principalmente para tentar provar sua superioridade em relação aos demais. Reside aqui uma das grandes contradições, gerando uma hipocrisia tão densa que por si desmascara quem quer que seja nesse ato heróico em tentar defender “a grande arte”. O músico parte de um lugar sempre de superioridade e não quer perdê-la. Não por acaso, quem provoca esse tipo de debate é, quase sempre, alguém que julga fazer parte de uma “arte maior”, ou de grande beleza estética, cultural, com reconhecimento internacional, uma elite cultural. Evocando a grandeza dessa arte e tudo que ela proporciona, esse música então parte numa verdadeira cruzada épica para catequizar as pobres almas, ou simplesmente esmaga-las com sua superioridade hermética e condena-las à subalternidade das artes ou da ignorância. Também usam essa superioridade artística para auto intitular-se um ser superior, um super-homem, não o nietzscheano, mas um tipo grego, apolíneo. Não raro, ouve-se da sua boca que ele se tornou um ser humano melhor através da boa música, mais culto, mais elevado, portanto. Não só isso, mas nações inteiras se tornaram mais elevadas e sofisticados onde sua arte superior foi condutora reconhecida da grande cultura daquele povo. Citam então Áustria, Alemanha, França, Itália, etc.

Essa discussão recai sobre e traí muitos artistas em todas as artes. A simples discussão do que é arte e a quê ela serve já traz questões que tapam buracos fundos com folhas secas, ou um labirinto sem luz e sem saída. Mas a idéia de uma “arte maior” vem acompanhada de um “eu superior”, egocêntrico, portanto, medroso sempre, raivoso, por consequência. Traz uma idéia moral quase sempre inalcançável e, por isso, um paradoxo ético entre a comprovação de sua arte elevada e a destruição das demais. Eis aqui um tema recorrente nas elites: o extermínio e o apagamento daquilo que julgam fora dos padrões ou aquilo que roubam e se apropriam mas não querem dar os devidos créditos.

A arte é uma forma de criar, ficcionar o mundo, interpreta-lo, e romper suas limitações. A arte não serve a ninguém ou nenhuma causa por si. Ela, em seu fundamento, é apenas uma funcionalidade estrutural do ser humano, ou do Homo sapiens. Claro que não estou tentando diminuir a arte e seu papel. Mas é justamente por a arte nascer independente de qualquer querer, como o pensamento, por exemplo, a arte é uma função orgânica, muito mais do que racional. E se revela tão poderosa que se torna sedutora como ferramenta desse poder, ou o próprio poder. Dizer que a arte transforma, que ela age quimicamente, fisicamente, neurologicamente em nossos corpos, é tudo verdade e comprovado. Ela também age socialmente, mas é aqui que a coisa pode ficar perigosa. É a discussão que se pretende fazer sobre causalidade: é a arte que molda a sociedade ou a sociedade que molda a arte? Me parece que, a depender de interesses, a resposta muda de acordo com quem está “ganhando”. Se a sociedade, ou determinadas sociedades não têm a aprovação das elites conservadoras, então a arte é para elas o resultado dessa sociedade, igualmente profana, menor, lasciva. Mas se a sociedade tem os modelos requeridos pela elite conservadora, então a arte daquela sociedade é um dos alicerces que produziu aquela própria sociedade. Ou seja, se for uma civilização pobre, a música é produto; se for uma civilização nobre, então a música é produtora daquela civilização. A idéia por trás disso é uma distorção da realidade e do próprio conceito de causa/efeito. Feito que, a arte e a sociedade não são mais do que um resultado constante de trocas entre elas, sendo produtoras e produtos uma da outra o tempo todo. É um fluxo que constitui o imaginário do ser humano. É, portanto, uma estrutura indivisível, una entre ser/arte, sociedade/cultura. Daí o fetiche da elite em crer que uma certa arte superior tem um poder místico de transformar e melhorar uma sociedade. E que seus agentes são, portanto, detentores desses poderes.

No filme referido, a idéia apresentada tem alicerce na extrema-direita bolsonarista brasileira. É preciso compreender um pouco o que isso significa, tanto quanto possível, porque uma das técnicas dessa extra-direita é justamente a narrativa dialética mentirosa com uso frequente de distorção de realidades e técnicas da programação neurolinguística e semiótica. Para não mais cair nessas armadilhas é preciso saber reconhece-las. Como vi muitas pessoas falando dessa produção, chamando até de “documentário”, penso que muita gente, diametralmente opostas às ideias bolsonaristas até, foram fisgadas pelo filme. E eu entendo. Trata-se de uma produção relativamente bem feita, embora seja bem simples. Sua produtora, a Brasil Paralelo, que se orgulha em dizer que não recebe verbas públicas, mas vende palestras e cursos com ministros e outros ilustres bolsonaristas e ainda fazem campanhas de arrecadação milionárias para suas produções.

As bases desse conservadorismo e o ataque colonialista

  • Filosofia Grega
  • Cristianismo
  • Racismo
  • Eurocentrismo
  • Colonialismo
  • Neoliberalismo econômico

Desvendando algumas de suas bases, encontramos uma forte inclinação olavista e sua visão da filosofia grega, sobretudo aristotélica. Que, naturalmente, interpretam essa filosofia a seu bel-prazer, carregada de incorreções e centrada sobretudo na idéia do bom e do belo, a política e a democracia grega mas sem jamais citar que para a Grécia antiga tudo era assim, exceto para todo o resto, que são todas as mulheres, escravos, povos dominados, enfim, tudo que excluísse a quem era atribuído o direito de ser um cidadão. Outra base é o cristianismo, que mistura tanto o neopentecostal (em menos escala), quanto o cristianismo da idade média. Sem nunca jamais tocar no assunto da Santa Inquisição, período esse em que o filme escolhe seus músicos e compositores para defender a “boa cultura”. É assim que no filme algumas vezes é possível ouvir seus interlocutores dizer que Bach e Mozart fizeram músicas sempre para Deus, sem entretanto dizer que nem sequer seria possível fazer diferente, sob o risco de terminar na fogueira ou morrer de fome. Depois, o filme emprega o tempo todo mensagens de pessoas elevadas, família, crianças, cenas épicas sempre para demonstrar o lado superior dessa boa arte.

E são as tais cenas e mensagens que aparecem as muitas mensagens subliminares. Como a mensagem de que música é energia que transforma e dependendo de que tipo de energia ela emana, resulta em um tipo de transformação. Para logo após esse conceito, explicar que crianças aprendem por repetição e que o som é o mais poderoso veículo de mensagem para bebés, e que, portanto, o que eles ouvem influenciam na sua formação social, moral, cognitiva para sempre. Todos esses conceitos são acompanhados de imagens que, se for para reforçar “a grande arte e vida superior”, então é música erudita, se for para reforçar “perigos”, então aparece logo algo ligado ao funk, samba, negros, etc.

E aqui chega no ponto racial, que é um dos fundamentos dessa extrema-direita: o racismo. Toda a produção traz só interlocutores homens brancos. Claro, porque o machismo é também um preceito importante do conservadorismo. Mas é no racismo, da narrativa racista e colonialista, que mais encontramos mensagens neurolinguísticas e semióticas. Durante toda a produção toda e qualquer imagem atrelada a uma fala crítica-negativa de uma cultura ou música, é atrelada imagem com pessoas negras, da periferia, sempre com presença de armas e sexo. É aqui que até os menos iniciados conseguem perceber se tratar de uma grande armadilha. A linha é muito clara: se é bom, é branco, homem, erudito, grego, europeu; se é ruim, é preto, pobre, popular, brasileiro.

A idéia de trazer uma grande transformação através de uma “arte verdadeira e superior” volta a toda instante. Por isso, boa parte da primeira parte desse filme (dividido em três episódios), faz uso de estudos sérios sobre musicoterapia, ou neurocientíficos sobre os benefícios da música no desenvolvimento do cérebro, ou sobre o poder transformador da música em instituições prisionais, todos estudos reais que funcionam como uma cortina de fumaça, ou forma de ocultar os reais objetivos do filme. Todos os estudos são tirados de contexto, mesmo os bons estudos. Claro que todos eles apresentam apenas música erudita. Mas sua função nesse momento é fazer crer “na boa intenção do filme”. Como são estudos reais (alguns muito antigos), faz parecer que o filme se trata de apresenta-los como um documentário. Sem jamais, no entanto, apresentar créditos, ou entrevistar os investigadores, apenas trazendo recortes e edições de antigos documentários. Esse trecho do filme só mostra que pretende manipular quem assiste, criando empatia e aumentando a conexão com os interlocutores. De novo, toda mensagem positiva tem como pano de fundo a música erudita.

E é após esse trecho, já com mais de uma hora de filme, que o filme começa a rumar para o seu lado mais dogmático e ideológico. Um pianista, principal interlocutor do filme (que tem um curso vendido sobre música dentro do próprio filme), começa a dizer que na música o que tem de mais sublime é a melodia e a harmonia. Discorre sobre esses dois alicerces da música durante um tempo, toca exemplos, fala de outros, analisa composições. Mas tudo isso só para ele dizer que a música atual eleva o que tem de mais primitivo e simples na música à categoria de protagonista: o ritmo. Diz ele “a melodia e a harmonia trazem o que tem de mais elevado e sublime na música. São a essência do homem elevado, a racionalidade. Já o ritmo é a um pano de fundo. A melodia e a harmonia são a alma, o ritmo é o corpo”. E segue:

“A batida condiciona e interage com nossos instintos mais primitivos” — nesse momento mostra cenas mais “obscuras”, gente aparentemente drogada, lugares rurais, raves, cenas com danças sensuais, etc.

E vem outra pérola:

“Pancadão, poder sensualista que isso tem! O ritmo mexe o corpo, a melodia e harmonia mexem a alma. Uma música que quer falar para o homem, para a raça humana, que quer se eternizar, falar para o homem verdadeiro, que fala para a racionalidade, é uma música que não coloca seus esforços no aspecto rítmico.”

Essa é a idéia que é amplamente difundida desde a escravidão e colonialismo: ritmo como redução de elementos e experiência tribal da música, transe, mas sem experiência contemplativa. Ritmo é, segunda essa narrativa, primitivo, lascivo, sexual, carnal, pecador. Melodia e harmonia são pura elevação espiritual, o verdadeiro caminhar à Deus. O pianista/interlocutor explica que na “boa música” o ritmo sempre existiu, está lá, mas tem um papel de base, pano de fundo. Que ritmo não pode ser elevado como o elemento principal de uma música. Se o fizer, isso representara a pobreza cultural e estética e é, naturalmente, reflexo da sexualização e dos sentidos mais primitivos do homem. Reforçando a mensagem, alinhando e aprofundando dentro dos valores conservadores, um “filósofo” aparece e diz:

“Se eu encontro essa ordem (ritmo em segundo plano) eu estou elevando meu sentimento ao divino. Senão, o meu corpo, aquilo que move o meu corpo vai determinar meu gosto musical e minha alma vai começar a se desalinhar. E meus hábitos começam a espelhar a desordem que me chega.”

Não podemos ser inocentes em pensar que esses interlocutores desse filme não saibam da importância do ritmo mesmo dentro das obras eruditas. Que é o ritmo que determina a característica da própria melodia (notas de altura soltas não formam qualquer melodia, e é o ritmo que organiza essas notas). Mas não deixa de ser ainda mais importante esse fato para podermos notar o quão forte é a ideologia que esse filme deseja passar. Músicos distorcem conceitos fundamentais e básicos da música por interesses ideológicos. Eu poderia classificar como burrice, mas não é, é mal-caratismo mesmo.

Fico pensando o que seria do Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Camargo Guarnieri, entre tantos outros brasileiros da música erudita, se não fosse a África!

Em um trecho, o tal pianista diz que música popular em si não é sinônimo de baixa cultura, ou "lixo cultural". Para justificar sua fala ele diz que na Áustria (terra de Beethoven) a música popular é justamente Beethoven. Em uma rápida pesquisa que fiz pelos sites MyTurner e Shazan a realidade nem chega perto disso. Nos "top 200" do Shazan, nenhuma única obra de música erudita aparece (clique aqui). No MyTurner, idem, nenhuma música erudita (clique aqui). Esse é o tipo de falsa informação, um fetiche no termo marxista onde a mercadoria nunca consegue justificar o seu valor na prática. A música ouvida na Áustria pouco difere estilisticamente da música ouvida no Brasil, ou aqui em Portugal (onde eu vivo, atualmente).

São quase 20 minutos demonstrando que o ritmo é a causa de todo mal. Mensagens como “o tambor é que movia a guerra”, ou “o ritmo está abaixo da alma humana”, sempre acompanhados de cenas de funk, música pop atual, armas, drogas, entre outras coisas, sempre fora de contexto. Se fosse mesmo um documentário, ainda que tendencioso, poderiam ter entrevistado e analisado outros gêneros com a mesma dedicação que fizeram com os eruditos. Claro que não tiveram a menor intenção disso. E nesse cenário de “caos” é que o tal pianista pergunta: “o que está acontecendo com a nossa sociedade?”, reforçando a velha máxima da “cultura lixo” ser produtora de uma sociedade decadente.

Na segunda parte do filme tem mais de uma hora do que seria uma breve história da música erudita européia. Passa pelas escolas eruditas, eleva grandes compositores, analisa obras, estética, a origem da escrita musical, da harmonia ocidental, numa espécie de cursinho básica e raso da música erudita. Uma enorme bajulação sem nenhuma capacidade crítica ou aprofundamento estético. A parte II é mesmo um grande reforço da “boa cultura”, sempre branca e européia. A única excessão é quando eles falam das invasões árabes — o que gosto é que quando são não europeus que ocupam territórios, é invasão, mas quando são europeus, é descobrimento) — onde dizem que os europeus absorveram e transformaram o uso de alguns instrumentos, trazendo sofisticação a eles. Incrível o nível de pedantismo, apagamento e hipocrisia.

A armadilha está posta e é possível que haja quem queira se atirar nela. O gosto pela elite, a vontade de dominar, o preconceito e a raiva que muitos músicos sentem em relação à músicas das periferias, atraem como abelha ao mel músicos de todos os tipos, de direita, de esquerda, o que quer que seja. A idéia irresistível de ter argumentos para atacar funkeirxs, sertanejos, tecnobregas (odeio esse termo), sambistas, pagodeiros, é melodia para os ouvidos desses tantos músicos. Ao fazê-lo, estão reforçando o elitismo excludente, colonialista, que já domina o Brasil desde sempre (com ou sem PT no poder, inclusive).

Uma resposta

É muito interesse pensar sobre aquilo que esses brasileiros estão a defender como “a grande cultura” tenha sido exatamente o que produziu o Brasil que conhecemos hoje. E mais, produziu o mundo que conhecemos e vivemos (e que estamos a destruir). Porque foi justamente no período que eles mais louvam nesse filme que ocorreram os maiores crimes e horrores da humanidade e contra a própria humanidade. Também foi o Brasil fruto dessa “poderosa cultura”, para onde só rumaram escravos, assassinos da coroa portuguesa e famílias interessadas na exploração e extração do país. E que foi justamente pelas mãos daqueles que mais sofreram (os escravizados) que o Brasil trouxe umas das mais ricas, diversas e poderosas cultura ao mundo. Que influenciou e modificou definitivamente os rumos da música desde o século XIX, juntamente com os negros do jazz e os negros cubanos.

E vem das periferias uma respostas contra a miséria e a marginalidade muito superior ao que se apresenta no filme. Nomes como Audino Vilão, Chavoso da USP, Thiagson, Jones Manoel, Silvio Almeida, Sabrina Fernandes, Juliana Borges, meus manos Thiago Sonho, Fabio Marrone, Tadeu Kaçula, a galera das escolas de samba, terreiros, rodas de samba, e muitas outras pessoas que de fato vão explicar muito melhor a cultura desses locais, inclusive como meio de sobrevivência contra o capitalismo que mói pessoas. Para pensar a sociedade brasileira é preciso ter muito mais Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez, Sulei Carneiro, Abdias do Nascimento, Paulo Freire, Djamila Ribeiro, Nei Lopes, Cartola, Seu Carlão do Peruche, Luiz Antônio Simas, Emicida, do que brancos brasileiros vira-latas querendo ser europeu decadente. Como disse meu amigo Thiago Sonho, baterista que acompanha Mano Brown (aliás, outra grande referência assim como toda a galera do rap):

"Precisamos fortalecer esse lado daqui (periferia), e não gastar energia tentando mudar o lado de lá (branquetude)" — Thiago Sonho

E o canal do Thiagson Funk também traz ótimo conteúdo sobre o funk, e posto aqui um vídeo resposta do Thiagson para um dos interlocutores do filme.

Ainda, um querido amigo, grande músico, pesquisador, Meno Del Picchia, estuda o funk a partir de uma etnografia do fluxo na Zona Leste de São Paulo. Destaco esse artigo (clique aqui) sobre essa sua pesquisa que traz caracterísicas profundas e fudamentos sociais, desprendidos de preconcieto, ao contrário, quebrando esses preconceitos.

O filme ainda terá uma terceira parte, que não sei se irei assistir. É nela que os produtores prometem atacar ainda mais a música atual. Tenho certeza que verei muitos negros pobres periféricos de armas na mão e cigarros na boca. Muita bebida e mulheres seminuas. Tudo será criticado e voltarão a dizer que a música que eles fazem produz mais e mais gente assim. Como já disseram nas duas partes anteriores, onde mostram, por exemplo, uma “família de bem” indo à praia e sendo influenciada pelo rádio e seu “lixo cultural”. O que não irão fazer é questionar outra base fundamental que defendem: o neoliberalismo e o capitalismo. Aliás, na segunda parte do filme, faz elogios aos processos revolucionários que trouxeram as revoluções industriais que “teriam tornado ricos os compositores como nunca antes havia acontecido(qualquer simbolismo do mercado livre aqui não é acaso). Mas é justamente o liberalismo econômico, mais ainda o neoliberalismo e o capitalismo globalizado, grande produtor da sociedade atual. Só que idéia dessa extrema-direita é e sempre será culpar a pobreza pela pobreza, o pobre por ser pobre, jamais o capitalismo por ser a grande máquina de moer pessoas. O que produz pobreza é o sistema capitalismo que visa o lucro e o acúmulo de capital em uma pequena elite.

Ou será que o tal pianista nunca se perguntou porquê esses meninos estão de armas na mão e nunca conseguiram ler livros e ouvir “boa música”? Foi o “lixo cultural” que criou essas criaturas? Ou foi a elite que ele tanto defende? Sambem que o que produz pobreza não é a cultura de massa, mas justamente a elite que eles defendem, não? Como essas grandes e elevadas nações, mesmo com tão grande e elevada arte, produziu Hitler, Mussolini, Napoleão, e outros tantos tiranos? Como tão virtuosa sociedade, com valores morais tão elevados, pode escravizar seres humanos? Um vício com foro de nobreza, para citar Eco.

Não há negros e negras, não há nem mulheres no filme. Eles sabem disso. Jamais poderia haver, sob pena de seus rasos e frágeis argumentos se partirem num único toque de tambor. Sabem que vem da África e da Ásia grande parte da sofisticação musical, instrumentos, melodia, harmonia, ritmo, dança, força, sentimento, união, laços que resistiram a massacres. Da África não vieram “apenas os tambores”, veio tudo. Música complexa e sofisticadas que os ouvidos caretas europeus sequer foram capazes de compreender seus elementos. A complexidade rítmica, a polifonia melódica, a polirritmia, os instrumentos de sopro, cordas e teclas que produziam melodias radicalmente mais sofisticadas do que as europeias do ponto de vista técnico da época, não são jamais citados pelos ideias colonialistas, que precisam diminuir esses povos para operar sua dominação sem culpa e responsabilidade. Afinal, para a “história do bom colonizador” tudo foi um grande favor e trabalho prestado à humanidade para o desenvolvimento dela. Para o colonizado, foi roubo, invasão, estupro, escravidão, sequestro, mortes e, claro, apagamento.

Não é papel dessa gente criticar a música feita na periferia. Aliás, nem eles tem essa inteção. Se tivessem, teriam feito com método que incluíssem os agentes e personagens dessa música. O papel que esse filme se presta, e sua real causa e intenção, é propagar idéias elitistas, racistas, eugenistas, colonialistas. Eles não têm a intenção de melhorar nada nem ninguém que não seja eles mesmos. Tem mais a intenção de afirmar superioridade (que não existe) do que problematizar questões estéticas ou mesmo sociais.

Posso citar, a partir de uma longa experiência pessoal, o que significa ter um músico erudito julgando uma música popular. No Carnaval de São Paulo - onde sou diretor em uma escola de samba, já fui jurado e já coordenei o julgamento deste carnaval- hoje em dia temos "maestros" julgando o quesito bateria. Nem é preciso que eu faça qualquer analogia para comprovar a extrema inaptidão e capacidade desses excelentes músicos em julgar uma bateria de escola de samba. Eles simplesmente não conseguem reconhecer e separar elementos. Todas as suas referências vêm de outra formação, outro tipo de música. Quando eu vejo, então, nesse filme gente branca do universo erudito criticando a música negra e popular brasileira, tenho a mais absoluta certeza de que eles não tem a menor capacidade para fazer isso.

Termino com Umberto Eco, uma vez mais:
“O crítico da cultura encontra-se diante de um dever de pesquisa que não lhe permite nem as reações temperamentais, nem as indulgências neuróticas. A primeira coisa de que ele deve aprender a duvidar é das suas próprias reações, que não dão texto.” (Apocalípticos e Integrados).

Ah, claro:

Marielle vive!
Fora Bolsonaro!

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Fernando Baggio
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Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.