O Muntu e o Dasein

Ou Permanência na Roça do tio Paulo

Fernando Baggio
Blog do Baggio
8 min readJun 7, 2022

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Os africanos da região centro-oeste, conhecidos como povos Banto, tem um fundamento importantíssimo chamado muntu. O muntu é o conjunto de coisas que compõem o ser e a existência. Muntu também é em quicongo a palavra que designa "pessoa, indivíduo, ser humano". Heidegger no seu clássico “Ser e Tempo”, elaborou conceitos profundos sobre o ser, que chamou de dasein, tudo isso pelo menos 500 anos depois da elaboração centro-africana do ser no mundo. Sem, claro, tirar os méritos da obra genial do pensador alemão.

NTU o principio da existência de tudo. Na raiz filosófica africana denominada de Bantu, o termo NTU designa a parte essencial de tudo que existe e tudo que nos é dado a conhecer à existência. O Muntu é a pessoa, constituída pelo corpo, mente, cultura e principalmente, pela palavra. A palavra com um fio condutor da sua própria história, do seu próprio conhecimento da existência.

Voltando ao muntu, ele se refere não apenas ao ser, mas o ser como algo indissociável do meio. Ou seja, o ser no mundo, o ser para o mundo. O muntu vai além, pois trata também as coisas como sagrado e único. As representações centro-africanas das formas espirituais podem ser a árvore, o animal, a terra, o pássaro. Mas não exatamente qualquer um desses e sim cada um desses. Não é a árvore, mas aquela árvore que é a representação sagrada de uma ancestralidade. Não é a terra, mas aquela terra, onde se faz o ritual, a gira, o encontro. A compreensão de que essas espiritualidades energéticas expressas nesses pontos são parte fundamental da existência, não apenas influenciando essa existência, mas sendo ela própria a existência, confere a esses povos um profundo conceito da forma que existimos.

É sob a análise de Kazadi wa Mukuna, em seu livro “Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira” (1978), que se propõe a análise social de um ponto de vista da sociologia entre uma linha imaginária, entre o “existente” e o “não-existente”, a partir de um sistema de “mutação”. Para entender essa linha se faz necessário compreender o “ser” banto. Dentro da filosofia banto, explica Mukuna, não há o “ser” sem o muntu (cosmos). Sua existência pertence e provém da relação entre o “ser” e seu entorno natural e social. Sua existência (linha da vida que progride) só acontece ao “ser” a partir da interação com grupos sociais e rituais. Esse meio em que o ser existe é único, pois a forma como o povo banto se relaciona com o meio determina sua própria existência. Residiam naquela sociedade os signos e códigos necessários e exclusivos para o ser existir. Através dos espíritos daqueles rios, dos espíritos daquela natureza, dos espíritos daquelas montanhas é que o ser se relacionava com o meio para, só assim, criar sua existência. Por isso a transferência do mesmo ser para o Novo Mundo se faz impossível.

Seja no dasein de Heidegger ou no muntu africano, o ser não é por ele mesmo, nem mesmo é uma coisa só, nuclear, e que escolhe com quem e como quer estar. O ser é algo para além, muito além do limite do corpo. E não apenas num sentido espiritual, como pode-se facilmente pensar. Também em um sentido corporal, físico, material. Existimos por e para outras coisas. Somos uma razão entre somas e mais somas, multiplicações, às vezes subtrações e divisões de coisas. Eu me lembro das enormes árvores, paineiras e seringueiras enormes, que ficavam no sítio do meu tio, onde passei boa parte dos finais de semana e férias durante minha infância. Algumas ainda estão lá. Aquelas árvores participaram da minha infância. Eu ouvia histórias contadas pelo meu pai, meu tio e até minha avó sobre elas. Essas histórias (todas simples, cotidianas) imprimiam uma existência muito anterior à minha daquelas árvores. Algumas vezes elas me assustavam, como se vivessem espíritos nelas, ou como se elas próprias fossem seres para além de árvores. Em dias de chuvas fortes eu tinha mesmo a certeza de que elas eram seres gigantes, vivos como gigantes na terra. Imagina algum tipo de batalha entre esses deuses, o do trovão e o da árvore, como se fossem algum tipo de seres mitológicos. Uma vez, uma delas perdeu a luta ao ser acertada por um raio poderoso. Impressionante! Em dias de sol e pouco vento, elas serviam de abrigo, de lugar de brincadeiras, como pique-esconde, balanço, pega-pega, passa-anel, e por aí vai. Em dias de ventos fortes, elas voltavam a dar seu ar assustador e magnífico ao mesmo tempo.

Hoje, aquelas árvores vão se tornando memória. Algumas de fato caíram, já se foram. Outras ainda lá estão, poderosas. Mas onde elas estão mesmo é na minha existência. A memória é qualquer coisa muito mais profunda que uma fotografia do tempo. Ela é um pedaço da sua vida, da sua existência. Você existe da forma que existe não pelo que você faz, mas pelo que você fez, viveu, pertenceu. Aquelas árvores, bem como aquela sítio, “a roça do tio Zé” (para mim sempre foi muito mais do tio Paulo, meu padrinho e um dos amores da minha vida), são parte do meu muntu. Aquele meu pedaço de muntu incluía ainda muitas pessoas, meus tias e tios, avós, primos, primas, a casa, a escadaria da casa, o banheiro de porta de madeira que não vedava todo espaço, os bichos, as vozes, as risadas, os cheiros (são tantos), as cores, as frutas. Tantas inúmeras vezes que subíamos em goiabeiras, mangueiras para não apenas apanhar frutas, mas para comer lá mesmo em cima do pé. E mais: a ciriguela (uma das minhas frutas favoritas até hoje), a terra, o sol, a chuva, o rio, o nadar no rio… Esse pedaço do meu ser é fragmento desse muntu, sou eu, ainda que eu já não esteja fisicamente mais nele.

Há muitos outros pedaços em mim que compõem esse muntu. Há muitos outros que estão ainda por vir. Mas nem todo lugar em que estive, independente do tempo em que neles passei, se tornaram ou foram muntu. Há lugares que são não-lugares, é um não-estar-aí que alguns lugares, ou momentos são. Nesses, nós próprios nos tornamos, ou estamos, ainda que momentaneamente, um não-ser. A existência, para acontecer, é preciso estar. As coisas precisam ser coisas. A medida em que vamos nos tornando cada vez mais info-sapiens, vai esvaziando mais nosso muntu e o mundo se descorporiza. Não é possível existir um muntu virtual. O conceito de não-coisas do filósofo Byung-Chul Han descreve que não estamos mais nos relacionando com as coisas (coisas para ele são de pessoas à objetos, passando por ritos à natureza). No mundo virtual a coisa se desfaz, e a relação se torna uma conexão.

A existência exige permanência. Aquelas árvores estão lá, mesmo as que já morreram. Eu mesmo ainda estou lá, mesmo que não esteja fisicamente. O mundo virtual atual é um mundo do consumo incontrolável. Ele é fruto do neoliberalismo. Tudo que estabiliza a vida exige tempo. A permanência é uma percepção que se fixa no tempo, necessária para a estabilização da vida. O mundo atual exige mudança em alta velocidade. Não há permanência no tempo. O próprio tempo mudou. A instabilidade e a impermanência destróem o muntu. Sem um olhar longo e lento, a permanência não se faz. Sem permanência não é possível e existência. Pode-se questionar que a existência é qualquer coisa como estar aqui, já que não é possível não existir quando levanta-se todos os dias, se vê no espelho, fala com pessoas, enfim, está fisicamente aqui. Entretanto, o conceito de estar fisicamente no mundo não pode ser confundido com ter uma vida onde a existência se faz presente. Se fecharmos os olhos por alguns minutos e tentar nos concentrarmos nas coisas mais fundamentais e marcantes para nós, veremos que não é um simples estar-aí que importa, como haverá sempre um mundo em permanência dentro do eu, onde nem todo eu é físico, mas jamais será virtual.

Eu estou, mas não estou só. Eu estou naquele sítio, “na roça do tio Paulo”, estou em muitos lugares que permanecem em mim e eu permaneço neles. A impermanência é fundamental para o capitalismo. É preciso destruir, destituir de valor, para se continuar consumindo, sempre em velocidade cada vez mais. Antes era preciso que algo quebrasse para que pudéssemos substituí-la. Então, a industria começou a produzir coisas menos duráveis, mais frágeis. Depois apenas descobriu que poderia criar o desejo do novo nas pessoas. E que para você pertencer era precisa estar atualizado. Atualizar tornou-se um valor importante no mundo. Atualizar significa não estar mais ali como estava. É, portanto, impermanência. O novo sistema operacional não me dá novas ferramentas, ou pelo menos não é isso o mais importante nele. Ele me dá status atualizado. Não é o sistema operacional do meu telefone que está atualizado, sou eu próprio. E assim, penso estar enquadrado em mundo novo. Por isso eu preciso atualizar meu guarda-roupas, meu carro, meus sapatos, meu relógio. A linguagem, local de permanência, também precisa ser atualizada. Já não se trata mais da linguagem ser viva, ela precisa ser atual. Falar como se deve para ser atual. A linguagem tornou-se extensiva, não intensiva. Não nos comunicamos mais para aprofundar, para adentrar nas coisas. Nos comunicamos apenas para estabelecer conexão, sem qualquer intenção de relacionar (criar vínculos, laços, emoções). A intenção da comunicação atual é voltado pra si e não para o outro. É uma comunicação ausente de relação, excessiva em ego. Serve para dizer e mostrar quem eu sou. Por isso, precisa estar atualizada, ser ligeira, superficial. Montamos emojis com a nossa aparência, nos comunicamos por símbolos pobres, mínimos. Não temos interesse em saber.

Pertencer vem do latim pertinere, que pertence à algo. Hoje não pertencemos a nada. Tomamos conhecimento de tudo, sem chegarmos à conclusões. Viajamos por toda parte sem adquirirmos experiência. Comunicamos ininterruptamente sem participarmos duma comunidade. Armazenamos grandes quantidades de dados sem perseguirmos recordações. Acumulamos amigos e seguidores sem nos encontrarmos uns com os outros. O capitalismo da informação representa uma forma intensificada de capitalismo. Também faz do imaterial uma mercadoria. A própria vida humana se torna uma mercadoria. Os afetos humanos são substituídos por likes. Os amigos são sobretudo objetos de contagem. Enriquecem-se os produtos com as micronarrativas (storytelling). A diferença entre cultura e comércio desaparece a olhos vistos. As instituições culturais aparecem como marcas rentáveis. Assim, os "likes transforma-se no novo amém".

No Ubuntu, temos a existência definida pela existência de outras existências. Eu, nós, existimos porque você e os outros existem; tem um sentido colaborativo da existência humana coletiva.

Me vejo longe do meu muntu nos dias atuais. Não porque mudei de país. Claro que isso colabora, mas isso não significa que aqui não irá se tornar mais uma parte da minha existência. Penso que vem se tornando parte do ntu em que vivo (tempo lento para formar a permanência). Muito mais porquê as coisas perderam forma, é a descorporização do mundo. Venho buscando voltar a estar mais no mundo, o mundo das coisas. Estar no muntu, reificar as coisas. Não se pode confundir isso com consumismo material, que está na esfera do vulgar e degenerado mundo neoliberal. Não é consumir, é possuir. Não é conectar, é estar em relação. Quero ter o olhar das coisas, sentir o cheiro, ver as costas das coisas, estar no mundo delas. Sentir que sou em permanência aquilo que fui e que serei aquilo que sou agora. Sou aquela imagem daquelas árvores, sou aquele que sentia medo na descida de um ataque do time adversário, mas que esse medo me movia para uma coragem que não poderia existir sem esse medo. Sou a sensação do sorvete de palito vendido no carrinho de sorvete andante. Sou o circo que chegou na cidade. Sou o sonho adolescente que dava forças para estudar horas e horas em cima da bateria. Sou também um velho grisalho em algum lugar olhando calmamente coisas que apenas reflete a imagem do muntu que está quase a chegar na Luvumba da minha Kalunga.

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Fernando Baggio
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Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.