OMB e o Sindicato dos Músicos do Brasil

A trajetória das instituições representativas e normativas da classe musical no Brasil.

Fernando Baggio
Blog do Baggio
18 min readMay 17, 2020

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Breve história

O Brasil tem umas das maiores músicas do mundo. Sua música é diversa, profunda, riquíssima, tradicional e moderna. Nada disso seria possível não fosse a enorme diversidade étnica do Brasil, causada em parte pelo crime da escravidão, em que pessoas eram sequestradas e feitas escravas, trazidas de muitas partes da África. A música brasileira é essencialmente uma música negra, que tem em sua história, e ainda hoje, sangue retinto e muita apropriação cultural indevida.

Com o final da escravidão oficial (1888), a crise do café e a revolução industrial brasileira, a música negra ganhou as ruas, saiu dos quilombos, das fazendas, dos terreiros e dos morros, e foi ganhando ruas, depois as rádios e alcançando a classe média brasileira. Na primeira metade do século XX, a força dessa música foi enorme. A verdade é que a elite brasileira nunca aceitou isso muito bem e sempre teve essa cultura como uma espécie de inimiga, apenas com algumas exceções. Getúlio Vargas (1882–1954), por exemplo, obrigou a todos os compositores de samba de enredo a comporem músicas ufanistas, nacionalistas, proibindo qualquer crítica ao governo e a exaltação de qualquer outra cultura que não fosse sua própria visão de cultura nacional.

Também foi nesse contexto que surgiu a Rádio Nacional, maior e mais importante rádio do Brasil durante anos. A Rádio Nacional da era Vargas trazia a música brasileira popular com força e protagonismo, mas os personagens eram rigorosamente dosados. Maciçamente brancos e brancas, as estrelas da época não eram exatamente os compositores e artistas do morro, esses com pouco espaço, mas sim intérpretes que atendiam a um modelo da branquitude. Um produto criado nessa época foi o Samba Canção, uma mistura de samba com bolero (música de enorme sucesso à época). O Samba Canção solucionava um problema da elite: era samba, mas não era feito por sambistas, negros e pobres, portanto.

Na era JK (de Juscelino Kubitschek, 1902–1976), viu-se o surgimento da alcunha MPB (Música Popular Brasileira). Mais uma vez, essa música era quase que inteiramente sinônimo de uma outra música, a Bossa Nova. Não por acaso, foi nesse período que muitos artistas, compositores e músicos dos morros e periferias perderam ainda mais o já pouco espaço que tinham. A Bossa Nova era branca, zona sul, rica, descolada. É muito importante ressaltar que os artistas, de todas as épocas, nada tiveram a ver com a intenção e o uso que deles era feito. Aliás, Tom Jobim, Nara Leão e Vinícius de Moraes, entres outros, jamais procuraram ocultar ou apagar suas influências da música negra. Falo do Estado e das elites que faziam muito uso disso para controlar a força do morro.

Falando em controle, foi no ano de 1960, no governo JK (1956–1961), que foi criada a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), através da lei nº 3.857. A controversa instituição atravessa gerações criando dificuldades e operando como ferramenta importante de controle, a serviço das elites e interesses políticos.

Voltemos um pouco para entender a origem dos mecanismos de controle por parte de governantes contra artistas (usarei o “contra” para clarificar). A primeira vez que o músico foi declarado profissional no Brasil foi através do Rei D. João VI, em 1814. Mas só eram considerados músicos profissionais os músicos militares, das bandas militares. Todo o resto era considerado amador e não tinha autorização para tocar em locais públicos. Essa ideia inquisitória e controladora se manteve nas raízes da OMB.

Em 1964, logo após o Golpe Militar, a OMB se tornou imediatamente órgão de fiscalização e controle dos músicos no Brasil. Os militares diziam temer a tomada da OMB por comunistas infiltrados e promulgaram uma portaria (nº 72 da Delegacia Regional do Trabalho), que designou intervencionistas na OMB. Wilson Sandoli foi nomeado interventor. Advogado, ex-músico, ganhou então o título de Delegado. Com o AI-5, Sandoli ficou incumbido de vigiar e punir qualquer manifestação que fosse contra o governo militar. Foi durante o governo militar que os fiscais da OMB ganharam o status de polícia, inclusive com o poder de andar armados e prender músicos. Eram muitas história de prisões e apreensões feitas em shows interrompidos no meio.

A gestão Sandoli durou muito mais do que os governos militares no Brasil. Sandoli só foi deposto do cargo de presidente da OMB depois de muitas lutas de muitos músicos e instituições. Ele ficou quase 42 anos no poder. Só é obrigado a deixar a presidência da OMB em 2006.

Outra faceta desse tirano foi que ele presidiu, ao mesmo tempo, a OMB, o Conselho Regional e o Sindicato dos Músicos, o que é uma aberração. Ordem, Conselho e Sindicato tem áreas de atuação e atribuições distintas, e muitas vezes, conflitantes. Sandoli concentrava poder e cargos, e esse acabou sendo um dos motivos de sua queda, depois de anos de lutas.

Depois disso, o que se viu e se vê é uma série de disputas e tomadas de poder, tanto na OMB quanto nos Sindicatos. Atualmente, há um grupo que divide os comandos da OMB, Conselhos Regionais e Sindicatos Estaduais, pessoas que fizeram esse arranjo e seguem dentro dos mesmos interesses. Gerson Tajes “Alemão”, atual presidente da OMB (Conselho Federal) [Alemão agora está afastado e quem assume é Mauro Almeida, vice-presidente]; Márcio Teixeira, presidente do Conselho Regional da OMB-SP; e Adelmo Ribeiro (Dudé Ribeiro), presidente do Sindicato dos Músicos de São Paulo, são do mesmo grupo. O “Alemão” saltou de presidente do Sindicato para presidente nacional da OMB. Adelmo era Diretor Social do Sindicato e saltou para a presidência. No Rio de Janeiro, Mauro Almeida, que também é desse grupo, foi do sindicato para a presidência da OMB-RJ, e atualmente ocupa a presidencia do Conselho Federal. Desde 2014 eles fazem uma troca de cadeiras entre si, e assim vão mantendo o controle das instituições, bem como a íntima ligação entre elas.

Mesmo a após a desobrigação das filiações, tanto na OMB quanto nos Sindicatos, esses órgãos tinham, até pelo menos 2016, rendimentos fantásticos, já que, pela lei federal que os regula, há um dispositivo que transfere 5% da renda dos shows internacionais para eles (tanto para a OMB quando para os Sindicatos). Ou seja, mesmo sem o pagamento das anuidades, ou mesmo com a queda desses pagamentos, essas instituições ainda recebiam muito dinheiro.

Em Outrubro de 2019, o STF julgou a ADPF 183, que desobrigou, de uma vez por todas, qualquer obrigatoriedade por parte dos músicos em relação à OMB. Veja aqui um artigo completo sobre isso.

O artigo 53?

“O ARTIGO 53 DA LEI 3857/60 que criou a Ordem dos Músicos, determina que todos os contratos celebrados com músicos estrangeiros somente serão registrados no Órgão competente do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, depois de provada a realização do pagamento pelo contratante da taxa de 10% (dez por cento) sobre o valor do contrato e o recolhimento da mesma ao Banco do Brasil, em nome da Ordem dos Músicos do Brasil e do Sindicato local, em partes iguais.

Parágrafo Único: No caso de contratos celebrados com base, total ou parcialmente, em percentagens de bilheteria, o recolhimento previsto será feito imediatamente após o termino de cada espetáculo”.

Ao que parece esse artigo já não tem mais validade e a OMB já não mais arrecada essa porcentagem de shows internacionais.

Ainda em 2014, o site Músico Empreendedor (http://www.musicoempreendedor.com.br/), denunciava a falta de transparência da nova diretoria e o sumiço de mais de 4 milhões de reais (veja aqui)

Conselho Federal para artes é algo plausível?

Não. Delimitar o que é ou não é arte é absolutamente arriscado. Por esse motivo, a maioria dos países não tem Conselhos que regulam quem pode ou não exercer a profissão. Há, em muitos países, leis que reconhecem artistas como profissão, mas não delimita e nem delega a alguma instituição dizer quem ou o que é preciso para exercer essa profissão.

Claro que há pontos negativos e positivos nisso. A precariedade, a instabilidade e a insegurança nessas profissões no mundo todo é enorme. Como não há normas que delimitam quem pode ou quem não pode exercer essas profissões, há também uma enorme entrada de pessoas que se aventuram pelas artes como uma forma de diversão e/ou complemento de suas rendas.

Mas o problema de se criar um órgão de controle é absolutamente maior do que o não de se ter um. Há uma linha tênue entre regular uma profissão e regular um profissional, fiscalizar ou censurar um artista. A história recente comprova que ter uma instituição com poder de polícia implica ter uma força repressora, censora e opressora.

Para se compreender um pouco sobre a dimensão da Arte, é fundamental a discussão estética, mas também política, comercial e de interesses. É importante considerarmos a própria instabilidade política do país e sua própria formação sócio-cultural que, no caso no Brasil, é bastante elitista e com fundamentação ainda escravocrata. A questão não é definir só o que é Arte e quem pode exerce-la, mas sim quem decide isso. E, de novo, seja o caudilho Vargas, o “bondoso” Juscelino ou os autoritários dos governos militares, sempre ficaram de fora do centro das Artes os mais importantes artistas brasileiros.

A UNESCO, em 1980, traçou um estudo sobre o que é ser artista em seu Recommendation concerning the Status of the Artist (“Recomendações sobre o status do artista”, disponível aqui), e apresentou uma possível definição. Considera artista qualquer pessoa que cria, dá expressão criativa ou recria obras de arte, que considera ser a criação artística uma parte essencial de sua vida, contribuindo desta forma para o desenvolvimento da arte e da cultura, que é ou pede para ser reconhecido como artista, estando ou não vinculado a qualquer relação de emprego ou de associação.

Nessa carta, a UNESCO cria caminhos para trazer mais segurança e amplitude transversal quando um artista se propõe a trabalhar com sua arte no âmbito comercial ou de difusão. A preocupação dessa instituição está, sobretudo, não em estabelecer quem é ou não é um artista, mas sim em garantir os direitos fundamentais e constituir base para campo de trabalho. Ou seja, a preocupação está em estabelecer segurança e qualidade na vida de um artista que trabalha nessa área, mas jamais dizer quem pode ou não trabalhar nessa área.

Além da UNESCO, muitas outras instituições trabalham incansavelmente mundo afora para assegurar direitos e condições melhores aos artistas, como assegurar acesso à Seguridade Social, Seguros de Saúde e planos de pensões para aposentadoria dessas profissões.

Um exemplo disso vem da França. Em 2015, o Sindicado dos Músicos francês (https://www.snam-cgt.org/) criou o Relatório-quadro que propôs-se a disponibilizar aos parceiros sociais e ao Estado um método para a resolução dos problemas enquadrados em vários eixos, e que teriam de ser trabalhados em conjunto, a saber:

1. Construir uma política de emprego em entretenimento ao vivo e gravado;

2. Com o estabelecimento de um novo método de diálogo social, garantir a consagração legal de um sistema de compensação de desemprego adequado às profissões do espetáculo que aumente a proteção social adequada à descontinuidade do emprego, nomeadamente adaptando as condições de acesso às prestações;

3. Garantir as condições necessárias para que os artistas se mantenham na profissão;

4. Reforçar a supervisão da legalidade dos contratos de trabalho a termo.

Foram convidadas as organizações interprofissionais das entidades que gerem o subsídio de desemprego, sindicatos profissionais e organizações representativas de trabalhadores e empregadores, a União Federal de Intervenção de Estruturas Culturais (UFISC), a Coordenação dos Intermitentes e dos Precários (CIP), o Estado e as organizações que representam as autoridades locais para debater o assunto.

Estes são alguns exemplo de como se pensa a profissão de artes. Quase sempre, a idéia de dizer quem pode ou não exercer uma profissão é uma idéia ditatorial. Não por acaso, as tentativas de colocar essa idéia em prática advém de países que foram ou são governados por ditadores. Não por acaso, a repercussão da fala do então Secretário da Cultura de Jair Bolsonaro, Roberto Alvim, gerou tanto pavor, quando ele reproduziu ipsis litteris a frase do chefe da propaganda nazista Joseph Goebbels (1897–1945), finalizando com “ou não será nada”.

Sindicato

Sindicato é uma associação de trabalhadores. Nasceu no contexto do capitalismo, durante a Revolução Industrial (séc. XVIII-XIX). É um órgão que cuida dos interesses dos trabalhadores. Luta por melhores condições de trabalhos, por justiça laboral e busca proteção para o trabalhador. Também defende os direitos do trabalhador e busca protege-lo de distorções ou incumprimento de leis. Alem disso, o sindicato participa de negociações com órgãos patronais, privados ou do Estado, com a finalidade de proteger os interesses do trabalhador.

O sindicato é também o órgão que reclama o melhor cumprimento das leis e denuncia o seu não cumprimento. Pode, inclusive, denunciar lacunas e imperfeições de leis para cada setor. É, sobretudo, uma instituição que busca trazer tranquilidade e estabilidade para a vida do trabalhador.

Foi por meio dos sindicatos que o mundo assistiu à regulamentação das leis de trabalho que proibiu grandes cenários de exploração. Lutas que trouxeram conquistas importante, como o máximo de oito horas de trabalhos semanais, o pagamento por hora-extra, o seguro desemprego e tantas outras condições que trouxeram qualidade à vida das pessoas. Tudo isso foi conquistado graças a uma organização centralizada e maciça que só uma força sindical é capaz de gerir.

É também por meio de sindicatos que os setores podem alcançar uma forte interlocução com o poder público, o Estado e os políticos, abrindo caminhos para se discutir a realidade das categorias e criar leis que protejam ou melhorem as condições de trabalho. É o sindicato, portanto, um importante porta-voz de uma categoria.

Não por acaso, nos governos militares os sindicatos foram submetidos a leis que os tornavam submissos ao Estado, na tentativa de se estabelecer uma hierarquia e comando sobre eles. Ironicamente, foram justamente os sindicatos os maiores responsáveis pela queda do Regime Militar no Brasil. Sindicatos não podem ficar submetidos ao Estado, muito menos a órgãos patronais.

Brasil

No Brasil o Sindicato dos Músicos é dividido em sindicatos regionais, sem que haja um sindicato central, ou uma central única dos sindicatos dos músicos. Essa separação, se por um lado se faz necessária, dadas as dimensões e regionalismos de um país de proporções continentais, por outro enfraquece a luta pelos interesses únicos, como regulamentação de contratos de trabalho específicos para o setor.

Mas não apenas isso. Os sindicatos dos músicos de cada Estado têm ações mais parecidas com as de ONGs do que com forças sindicais. Oferecem dentistas e cabeleireiros, mas não há ações regulares em busca de melhores condições de trabalho. Além do mais, ficou submetido por anos, e ainda hoje o é, à OMB, numa relação promíscua em que já chegaram a ter o mesmo presidente, conforme já disse acima.

Os sindicatos dos músicos no Brasil pouco conhecem sua categoria. Jamais criaram campanhas ou trouxeram grandes estudos sobre seus profissionais, de forma a oferecer matéria para argumentar e progredir quanto a melhorias para a categoria. Nunca houve uma greve de músicos contra nada. E olha que há motivos para isso. Claro, como me lembrou André Carvalho, fora do Brasil já houve greves, como a famosa greve dos roteiristas de Hollywood. São donos de bares que passaram a pagar cada vez pior os músicos, donos de escolas de música que enriqueceram muito sem nunca pagar direitos trabalhistas aos seus professores músicos, empresários de shows que não pagam os direitos dos músicos.

Ainda não há no Brasil um desenho específico para que se crie uma lei trabalhista voltada para a categoria, como em muitos países. O Sindicato dos Músicos do Brasil é uma instituição tomada por interesses pessoais e que nada produz, de fato, a não ser um tipo de assistencialismo barato e insuficiente.

Há ainda equívocos, para se dizer o mínimo, cometidos pelo Sindicato de São Paulo. Em sua página, na parte “Institucional”, para relatar o Período Militar, o sindicato usa um termo de cunho racista quando diz “A Era Negra do SINDMUSSP”. Hoje é sabia que associar a palavra “negro” a algo negativo é notadamente uma associação racista. Pode até não ser intencional, mas denota a enorme falta de consciência quanto às lutas raciais, tão intimamente ligadas à própria construção da música no Brasil.

Ainda no mesmo local da página, o SINDMUSSP diz que a regulamentação da profissão de músico foi uma conquista. É preciso dizer que o reconhecimento de músico como profissão é uma conquista, mas jamais a regulamentação, com todas as problemáticas já aqui expostas sobre isso.

Sindicatos x Conselhos

No Brasil, como eu disse aqui, a Ordem dos Músicos e o Sindicato dos Músicos de São Paulo tiveram o mesmo presidente por anos. Aliás, ocupavam o mesmo prédio e o mesmo andar. Mas os dois órgãos têm funções ou atribuições parecidas?

A resposta é não. Como descrevi também aqui em cima, creio que a OMB não devesse existir em tempo algum. Ela nasceu para regulamentar a profissão, mas sempre foi um órgão que apenas regulamentou o profissional, pautado apenas pela ideia de vigiar o músico e ainda tirar dele algum dinheiro. Ao contrário do que acontece em boa parte da Europa, como Portugal, Espanha, França, Itália, Inglaterra e Finlândia, entre outros, os artistas não têm regulamentação trabalhista própria. Mas tem obrigatoriedades para exercer as profissões sob pena de não poderem fazê-las.

Já os sindicatos, são órgãos que defendem diretamente a classe dos trabalhadores apenas enquanto trabalhadores. Ao contrário de Conselhos Normativos Federais, como a OMB, os sindicatos de trabalhadores não criam leis normativas, mas lutam por melhor qualidade e segurança de suas categorias. Não é função dos sindicatos dizer quem pode ou não pode exercer uma profissão, nem dizer criar leis. É função dos sindicatos conhecer profundamente as demandas de suas categorias para, aí sim, propor juntos aos poderes legislativos a criação de normas e leis, ou o que for necessário para conquistar melhorias para os seus trabalhadores.

Conselhos têm mecanismos de avaliação e validação de profissionais. É uma forma de estabelecer padrões e parâmetros de algumas profissões, e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA) são exemplos. Mas não acho que seja o caso das Artes, dada a subjetividade de suas naturezas.

Sindicatos devem proteger os profissionais da categoria como princípio básico de sua existência. Sindicato luta por direitos, por estabilidade, por leis que ajudem um cidadão a desenvolver plenamente sua profissão. Imagina se um conselho cria uma norma que exclua ou prejudique uma parte dos trabalhadores? Quem deve dar uma resposta à altura a esse Conselho é uma força sindical.

Por essa razão, sindicatos tem função independente de conselhos. O sindicato é considerado um agente de negociação. Mesmo assim, para você ser sindicalizado no Brasil, é preciso estar inscrito na Ordem dos Músicos, norma que veio do período do Governo Militar e perdura ainda hoje.

Idéias acerca desse cenário

O Brasil vive um período terrível, mais uma vez, para as artes, bem como para o restante do país. Desde a Reforma Trabalhista, criada e aprovada no governo Michel Temer, após o impeachment de Dilma Rousseff, e sua mini reforma aprovada já no Governo Bolsonaro, os direitos trabalhistas vêm sendo perdidos. Também como um projeto para enfraquecer sindicatos, a Reforma Trabalhista de Temer desobrigou a contribuição sindical por parte dos trabalhadores.

Jair Bolsonaro quer ir além, e diz repetidas vezes que “ou se tem trabalho sem direitos, ou direitos sem trabalho”. Fazem disso uma falsa promessa de gerar empregos, mas com a intenção real de gerar mais riquezas e lucros aos poderosos das elites brasileiras. Os sindicatos deveriam ser seus maiores entraves, mas perdem força e adesão à medida que as narrativas de luta contra o comunismo e o marxismo ganham força entre as classes trabalhadoras, muito influenciadas também pelas religiões neo-penteconstais que invadiram as zonas mais pobres, e também trabalham a serviço dessas elites. Infelizmente, parte das igrejas são hoje usadas como ferramentas de políticos e são base importante do bolsonarismo. Não por acaso, OMB e Sindicato dos Músicos vem estreitando relações cada vez mais com essas igrejas neo-pentecostais.

Na música, o grupo que hoje toma conta da OMB e dos principais sindicatos dos músicos, nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, são declaradamente bolsonaristas. Mas é bom lembrar que, além de suas posições trabalhistas, Bolsonaro é notoriamente um inimigo da classe artística. Ele extinguiu o Ministério da Cultura, transformando-o em pasta; nomeou Roberto Alvim para tomar conta da pasta, que foi destituído por citar Goebbels; e então nomeou Regina Duarte, que foi do “pum do palhaço” à “morrer, todo mundo morre” em menos de dois meses de gestão.

O presidente da OMB-SP, Márcio Teixeira, lamentou que os fiscais da OMB já não tem mais poder de polícia. A sede por poder é a mesma da época de Sandoli.

Durante a pandemia, tanto OMB quanto Sindicatos tem se limitado a fazer arrecadações de cestas básicas, continuando com sua operação que se confunde com as de ONGs sociais. Não que não tenham que fazer, ou que não seja importante. Mas órgãos federais e representativos como esses deveriam, e devem, nesse momento de crise, tanto por conta do coronavírus quanto por conta de um governo fascista instalado, analisar e discutir como fazer para que a categoria não sofra mais danos, propondo diálogo para que se criem leis que diminuam a precariedade dessas profissões. Se nós, músicos, somos tão frágeis e sabemos tão pouco sobre nossa própria profissão, isso tem a ver com a falta de organização, de representação e de proteção que temos.

Mas Gerson Tajes, que se autodenomina “Alemão Presidente” em suas redes, fez postagens que convocavam pessoas para uma manifestação pró-Bolsonaro e contra o isolamento social no dia 15 de Abril. Ele ainda postou fotos dele e sua esposa na manifestação, vestidos devidamente com o famoso verde-amarelo.

Também a OMB divulgou orgulhosa um ofício encaminhado à presidência da República para incluir os músicos no auxílio de 600 reais criado e aprovado na Câmara. Exibem a resposta do presidente da República, que diz que os músicos estão contemplados no programa. Mas o que não dizem é que não são os músicos que estão contemplados, mas sim as condições socioeconômicas que já estavam aprovadas que contemplam músicos. Ou seja, não é por causa da OMB que alguns músicos hoje conseguiram o auxílio emergencial, mas é pela lei aprovada (Veja aqui).

O que me preocupa é que, além da direção desses órgãos, o afastamento da própria classe dessas instituições gerou uma ignorância do que esses órgãos de fato são, representam e que atribuições lhes são conferidas. É comum ver músicos experientes confundindo as atribuições dessas instituições e nem mesmo estranhando a imoralidade da conexão que existe entre elas.

Tempos atrás, ainda na época das eleições presidenciais que acabaram elegendo Bolsonaro, discuti com um músico baterista que declarava voto em Bolsonaro. Esse sujeito postava todos os dias algo sobre homens de bem, moralismos baratos, etc. Mas ele não tem essa moral toda, e eu sabia que não tinha. Pois bem, hoje em dia vejo esse mesmo sujeito reclamando da Ordem e do Sindicato, cobrando que sejam melhores, mais funcionais, etc. E continua a ser bolsonarista.

Há ainda um outro baterista, com quem também discuti, que fala em “tomar o sindicato”. Só que é outro bolsonarista, que tem como modelo a meritocracia e o neoliberalismo econômico como modelo de mundo. Adora falar em gestor, mas quebrou um contrato comigo só porque ele mesmo errou e não quis admitir. Esse é o tipo de gente que, agora, acha necessário o sindicato, mas nem tem idéia da base sindical, trabalhista.

Eu acho muito necessário o sindicato. Não acho nada necessário a OMB. Mas o sindicato precisa ter consciência sindical, no sentido mais profundo da palavra. É muito necessário um sindicato que saiba ser um sindicato, que se aprofunde nas questões da categoria, que chame a categoria, que crie estudos e dados para compreender o complexo e gigantesco terreno que é a profissão de músico.

O músico no Brasil nunca ou pouco se interessou por isso. Poucos sabem o que é e para que serve um sindicato. A maioria acha que é um lugar que oferece dentista, umas aulas de música, ou algo assim. Mas não entendem que todas as reclamações de tantos problemas que fazem em conversas e mais conversas entre colegas seriam melhor resolvidas se houvesse uma organização da força sindical. Pior ainda é ver bolsonaristas comandando o Sindicato e a Ordem, e outros bolsonaristas tentando toma-los. Não é compatível sindicato com extrema direita. E é extremamente perigoso que a Ordem fique nas mãos da Extrema Direita. Já imaginaram se Bolsonaro começar a agir através da OMB e traçar normas para exercer a profissão que os beneficiem? Isso já aconteceu antes no Brasil, e foi durante a Ditadura Militar que, sabemos, Bolsonaro ama.

Como disse, os músicos no Brasil se distanciaram dessas estruturas. Também se distanciaram da política. Não é culpa da categoria. A verdade é que são gerações e mais gerações que nunca tiveram uma representatividade, dado o enorme desmantelamento das atividades organizadas que vem desde há muito tempo. O que aconteceu foi um desmantelamento da categoria, gerando falta de unidade, fazendo-a perder força e, desta forma, não sendo capaz de reivindicar nada, nem saber como fazê-lo, e ser desencorajada para tais atitudes.

O Estado sempre trabalhou para controlar a arte. Algumas vezes mais, outras menos. Apenas nos governos petistas houve maior democratização das artes. Mas, em relação aos sindicatos, não houve nenhum avanço em tempo algum. Assim como esse vergonhoso Conselho Federal chamado OMB. Isso preciso ser extinto e enterrado, pelos perigos que traz. A OMB é essencialmente um órgão de controle das artes pelo Estado. Não há razão de existir em um país livre e democrático.

Se você chegou até aqui nesse longo texto e está se questionando sobre minhas posições, sobretudo quanto a eu achar que realmente qualquer um que deseje exercer a profissão o possa fazer, lhe digo: sim! E lute por isso! Lute por um músico medíocre tentando ganhar seu espaço, mesmo que isso traga complicações, mesmo que isso traga uma concorrência ruim e bagunce o mercado. Lutar pelo livre direito de se expressar é uma obrigação de qualquer artista. Se há problemas e distorções, que elas sejam postas e discutidas em termos de mercado de trabalho, mas jamais em termos de ser ou não ser arte, ou de quem pode ou não ser artista.

Lembra da frase nazista de Goebbels usada por Roberto Alvim? “A arte brasileira da próxima década será heróica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa […] ou então não será nada”.

Para mim precisa ser tudo, menos nazista.

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Fernando Baggio
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Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.